A liberdade humana e a obediência a Deus e à sua Lei eterna
A constatação da ideia de liberdade humana como um bem em si mesmo
Há 40 anos, quando ainda eram ardentes os conflitos entre revolucionários marxistas e regimes militares liberais por toda a América Latina, e surgia no interior da Igreja deste continente a teologia da libertação, Roma emitiu um documento tratando sobre os conceitos de liberdade humana e libertação, que necessitavam ser corretamente compreendidos. Não será difícil perceber como, nos dias atuais, ambas as ideias continuam prejudicadas por visões ideológicas de direita e de esquerda, e portanto, compreendidas pelos católicos ainda em contradição com a doutrina tradicional.
A Instrução Libertatis Conscientia traça uma linha do tempo para demonstrar as diferentes ênfases que a ideia de “liberdade” assumiu desde o início da Idade Moderna (cf. nn. 5-19). Demonstrando ao longo do percurso que “graves ambiguidades acerca do sentido mesmo da liberdade, já desde a sua origem, corroíam por dentro esse movimento” (n. 10), conclui finalmente que este movimento de libertação “permanece ambíguo, porque foi contaminado por erros mortais acerca da condição do homem e da sua liberdade. Ele carrega, simultaneamente, promessas de verdadeira liberdade e ameaças de mortais servidões” (n. 19). Portanto, a ideia de liberdade precisa ser corretamente compreendida, sob o risco de causar graves ilusões ou escravidões.
Ora, uma ideia hoje massivamente difundida a respeito da liberdade humana é a de que sua definição consiste na possibilidade de o homem fazer ou escolher qualquer coisa que queira, independentemente de preceitos ou normas. Neste sentido, em busca de liberdade e de viver segundo seus ideais, os jovens deixam a casa de seus pais, os adeptos de ideologias liberais apregoam uma sociedade parcial ou totalmente livre do Estado, e mesmo entre os católicos há quem defenda a superação de certos dogmas e normas disciplinares da Igreja. Dessa forma, tal corrupção do verdadeiro sentido de liberdade, que na verdade representa a ideia de licenciosidade, afeta as três sociedades constituídas, e as suas correspondentes autoridades: a família, o Estado e a Igreja. Portanto, o problema da liberdade humana tem para nós um grande impacto e conhecer-lhe realmente, as verdadeiras respostas entre tantos erros, é de grave importância.
Bem, aprofundando-nos um pouco mais nas consequências de tal ambiguidade, o mesmo documento constatava que “‘esforço para libertar de seus limites o pensamento e a vontade chegou ao ponto de considerar que a moralidade como tal constituía um limite irracional que o homem, decidido a se tornar senhor de si mesmo, devia ultrapassar” (Libertatis Conscientia n. 18).
De fato, a ideia de que ser livre corresponde a viver separado de vínculos aos quais o próprio indivíduo não tenha decidido se ligar conduz diretamente à ideia de que, não somente as autoridades constituídas do pai, do governante e dos sacerdotes são obstáculos à liberdade, mas as mesmas regras morais decorrentes da lei natural são relativas e devem ser submetidas ao juízo particular da razão humana. A lei natural, inscrita nos corações de todos os homens por Deus, deve agora ser validada pelo juízo individual daqueles que com ela concordarem, antes de ser por eles seguida. Conquanto não sejam cometidos crimes contra a liberdade do próximo (como a fraude, o roubo, o assassinato), todos têm o direito de se permitir… É a promulgação do abuso da liberdade!
Ora, ou se vive conforme se pensa, ou se pensa conforme se vive. Em outras palavras, a relativização na ordem moral leva à relativização na ordem intelectual. Por isso, não mais existe a verdade objetiva, aquela contra a qual tudo o mais é erro, aquela que mostra claramente o certo e o errado. Também os princípios norteadores da nossa ação, as máximas de vida e de virtude, a doutrina que aprendemos de nossos pais, sobretudo em âmbito religioso, devem agora ser submetidos às escolhas dos indivíduos: cada um tem a sua verdade!
E o próprio Deus, autor das sociedades, princípio e fundamento de toda a autoridade, de toda a lei… Agora o próprio Deus é considerado um conceito que admite várias interpretações: cada um tem o seu Deus — ou dito de outro modo, para não parecer tão agressivo, mas com o mesmo significado — Deus é um só, mas cada um tem a sua religião! Porque algumas interpretações de Deus corresponderiam a certas cadeias morais, a estas caberia recusar, ao menos publicamente. Afinal, “‘para muitos, é o próprio Deus que seria a alienação específica do homem. Entre a afirmação de Deus e a liberdade humana haveria uma radical incompatibilidade. Rejeitando a fé em Deus, o homem, enfim, tornar-se-ia livre” (Libertatis Conscientia n. 18).
Dado o exposto, fica claro como um pequeno erro no princípio conduz a conclusões catastróficas, erros grosseiros. Uma vez conhecido o erro e as suas últimas consequências, agora devemos nos perguntar sobre sua origem. Afinal, qual teria sido o caminho percorrido por essa falsificação do sentido da liberdade até chegar a nós?
Parece óbvio que, sendo o Estado — principalmente após sua separação definitiva da Igreja — a sociedade mais exposta aos princípios mundanos, que podemos também entender como a mais sujeita às novidades e menos propensa a guardar os costumes das gerações anteriores, tenha sido nele que a ideia de liberdade fora corrompida e por ele tenha entrado no seio das outras duas sociedades. Mas infelizmente devemos admitir que um segundo meio para a atenuação do sentido católico da liberdade e a sua invasão no seio das famílias católicas tenha o instrumento mesmo que o deveria preservar. Como tentaremos demonstrar, os homens da Igreja não apenas não fizeram uso de meios eficazes para conservar e transmitir inalterada esta correta visão sobre a natureza da liberdade humana como também colaboraram com a sua ambiguidade.
Nova ideia de liberdade humana: fruto da imprecisão terminológica e da linguagem, em certo sentido “poética”, e dos princípios adotados nos documentos do Magistério recente.
1. O princípio personalista
Tendo a liberdade dois aspectos pelos quais deve ser entendida, isto é, nas ações individuas e sociais, ela é parte integrante da Doutrina Social da Igreja. Por isso, um outro documento recente do Magistério ordinário que vale à pena considerar é o Compêndio da Doutrina Social da Igreja.
Antes de tratar propriamente da liberdade nos atos humanos, o Compêndio enuncia o seu fundamento: “O ser humano é um ser pessoal criado por Deus para a relação com Ele, que somente na relação pode viver e exprimir-se e que tende naturalmente a Ele” (n. 109; Cf. João Paulo II, Carta encíclica Evangelium vitae, 35). Para não mencionar a ambiguidade desta afirmação sobre a finalidade humana, em que se confundem as ordens natural e sobrenatural, vamos nos deter na definição do ser humano como pessoa. Este termo — tomado da filosofia personalista — é ao mesmo tempo ponto de partida e fim de toda a reflexão. O homem ou a pessoa humana é o próprio caminho:
“O homem, na plena verdade da sua existência, do seu ser pessoal e, ao mesmo tempo, do seu ser comunitário e social — no âmbito da própria família, no âmbito de sociedades e de contextos bem diversos, no âmbito da própria nação, ou povo (e, talvez, ainda somente do clã ou da tribo), enfim no âmbito de toda a humanidade — este homem é o primeiro caminho que a Igreja deve percorrer no cumprimento da sua missão: ele é a primeira e fundamental via da Igreja, via traçada pelo próprio Cristo e via que imutavelmente conduz através do mistério da Encarnação e da Redenção” (João Paulo II, Carta encíclica Redemptor hominis, 14).
Neste sentido, o Concílio Vaticano II afirmou que Cristo, o Filho de Deus, “‘com a Sua encarnação, num certo sentido, se uniu a cada homem” (Constituição pastoral Gaudium et spes, 22). Afirmações como essas preparam o entendimento de que o indivíduo tem primazia sobre a sociedade. “A sociedade humana é objeto da doutrina social da Igreja, visto que ela não se encontra nem fora nem acima dos homens socialmente unidos, mas existe exclusivamente neles e, portanto, para eles” (Congregação para a Educação Católica, Orientações para o estudo e o ensino da Doutrina Social na formação sacerdotal, 35). Ora, então não é o indivíduo que deve estar ordenado à sociedade, mas a sociedade que está ordenada ao indivíduo! E o Compêndio da Doutrina Social da Igreja reforça essa ideia ao citar Pio XII: “‘longe de ser o objeto e o elemento passivo da vida social”‘, o homem, pelo contrário, “é, e dela deve ser e permanecer, o sujeito, o fundamento e o fim”‘ (Radiomensagem de 24 de Dezembro de 1944, 5). E dessa forma o princípio personalista prepara a imprecisão terminológica sobre a dignidade da pessoa humana.
2. A imprecisão terminológica sobre a distinção no homem da Imagem de Deus
O mesmo documento, após exaltar a figura do homem, afirmará que a sua dignidade está firmada sobre o fato de que Deus o criou à sua própria imagem e semelhança. Neste sentido, assim como Deus realizou a obra da Criação por ato livre de Sua vontade, e as criaturas manifestam a Sua glória, também o homem — e principalmente ele — dá glória a Deus ao agir conforme à sua natureza, isto é como imagem de Deus, um ser pessoal cuja dignidade exige a liberdade na ação. Aqui está, portanto, a negação do valor da coação externa como um meio legítimo de encaminhar o homem ao bem e o afastar do mal:
“O homem pode orientar-se para o bem somente na liberdade, que Deus lhe deu como sinal altíssimo da Sua imagem (Cf. Catecismo da Igreja Católica, 1705). Deus quis “deixar o homem nas mãos do seu desígnio” (cf. Eclo 15, 14), para que ele procure espontaneamente o seu Criador e, aderindo livremente a Ele, consiga a plena e bem-aventurada perfeição. A dignidade humana exige, portanto, que o homem atue segundo a sua consciente e livre escolha, isto é, movido e determinado por convicção pessoal interior, e não por um impulso interior cego, ou por mera coação externa” (Compêndio da Doutrina Social da Igreja n.135; Concílio Vaticano II, Const. past. Gaudium et spes n. 17).
Ora, não é a liberdade, mas a razão o verdadeiro elemento constitutivo da imagem de Deus no homem, reflexo da Inteligência Divina. A liberdade é uma potência que decorre da faculdade da razão. É falso, portanto, que seja contrário à dignidade humana o ser movido por mera coação externa. Porque, como ficará claro no próximo artigo desta série, decorre da própria natureza humana, manchada pelo pecado original e suas consequências, a necessidade de ser auxiliada na prática do bem e na vitória sobre o pecado.
Mas as leis humanas, decorrentes da lei natural são meios legítimos para encaminhar o homem ao bem e afastá-lo do mal, inclusive na sanção de penas contra os atos moralmente maus. Mas, como é evidente pela experiência cotidiana, nem sempre os homens agem bem moralmente ou aceitam as devidas penas “por convicção pessoal interior”. Aqui está a contradição que não se pode superar: ou se afirma a “liberdade” do indivíduo, enquanto possibilidade de escolher a seu próprio juízo, ou se afirma a necessidade da autoridade e da lei moral para se exercer a liberdade, entendida como potência de praticar ou escolher o bem moral, conforme à reta razão.
De outro modo não se poderia entender uma afirmação corretíssima do mesmo magistério recente: “Os fiéis são obrigados a professar que existe uma continuidade histórica — radicada na sucessão apostólica — entre a Igreja fundada por Cristo e a Igreja Católica” (Declaração Dominus Iesus, sobre a unicidade e a universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja, n. 16). Ora, esta obrigação de crer pode perfeitamente agir como uma coação externa, contra uma convicção pessoal, se a razão não estiver bem formada. Isso nos ajuda a perceber que é um erro grave afirmar a liberdade como um bem si mesma, e não como a potência ou capacidade de realizar o bem.
Não é a liberdade, mas a razão humana a característica constitutiva de sua verdadeira dignidade. É a sua alma racional o bem que Deus concedeu ao homem e que o coloca muito acima das outras criaturas materiais; é a razão a verdadeira imagem da Inteligência divina no homem e, como tal, deve se submeter à Autoridade da Sabedoria Divina, que não pode enganar nem enganar-se; e uma vez aderindo à verdade, a razão deve aperfeiçoar a liberdade mostrando-lhe o bem o dirigindo-a até ele.
O mesmo Compêndio parece mudar de ideia, ao afirmar as potências da alma racional humana antes de sua liberdade, como os elementos constitutivos de sua dignidade, no parágrafo a seguir: “Portanto, por ser à imagem de Deus, o indivíduo humano tem a dignidade de pessoa: ele não é apenas uma coisa, mas alguém. É capaz de conhecer-se, de possuir-se e de doar-se livremente e entrar em comunhão com outras pessoas, e é chamado, por graça, a uma aliança com o seu Criador, a oferecer-lhe uma resposta de fé e de amor que ninguém mais pode dar em seu lugar”(Compêndio da Doutrina Social da Igreja n.108; Catecismo da Igreja Católica n. 357). Mas aqui fica patente o terceiro elemento de ambiguidade, que é comum a outros temas da doutrina católica fora à liberdade, a imprecisão na linguagem, que notavelmente foi inaugurada pelo Magistério recente, como um divisor de águas.
3. A adoção de uma linguagem “poética” em detrimento à precisão no sentido de suas definições
Voltando ao texto com o qual iniciamos este artigo, apesar de ter um tom mais objetivo e acadêmico na linguagem, também carrega os traços da imprecisão na linguagem e da consequente ambiguidade semântica. Tomemos a definição de liberdade que se lê a seguir:
“A liberdade não é liberdade de fazer não importa o quê; ela é liberdade para o Bem, o único em que reside a Felicidade. O Bem é também a sua finalidade. Por conseguinte, o homem torna-se livre na medida em que tem acesso ao conhecimento do verdadeiro e que este último conhecimento, e não qualquer outra força, guie a sua vontade. A libertação em vista de um conhecimento da verdade que – única – dirige a vontade é condição necessária para uma liberdade digna desse nome” (Libertatis Conscientia, n. 26).
Aqui vemos uma definição que, embora não claramente, afirma ser a razão reta, isto é submetida à verdade, o fundamento da verdadeira liberdade. Embora não negue o benefício da lei moral para o aperfeiçoamento da liberdade, ao especificar “e não qualquer outra força” pode dar a compreender que, ao praticar o bem por obediência à uma autoridade e suas ordens, o homem não seria ainda livre. Ora, dada a ferida da natureza humana após o pecado original, todo homem tem necessidade do auxílio da lei moral e da graça divina para praticar o bem. Logo, não seria possível uma verdadeira liberdade nesta terra, mas apenas no céu.
Recapitulando, desde o Concílio Vaticano II os homens da Igreja rejeitaram a prática de condenar os erros do espírito do mundo, em favor de um diálogo, no intuito de reapresentar a doutrina católica, numa linguagem com a qual os homens modernos estejam mais familiarizados, na esperança de que, compreendendo melhor a mensagem da Igreja, a ela adiram. No caso particular do conceito de liberdade, vimos que três elementos colaboraram para a sua deturpação.
Em primeiro lugar, adotou-se o princípio personalista, segundo o qual o bem da sociedade está ordenado ao bem do indivíduo, e é nele, portanto, que se deve concentrar a missão da Igreja: o homem é a sua via. Em segundo lugar, para conferir-lhe fundamento teológico, admitiu-se a liberdade – e não a razão – como a característica constitutiva da imagem de Deus no homem; e como toda criatura deve naturalmente glorificar a Deus naquilo em que lhe é próprio, segue-se que o homem deve estar livre de qualquer princípio de coação externa, seguindo unicamente o seu conhecimento da verdade na prática do bem. Finalmente, a imprecisão na linguagem adotada impede a resolução da contradição entre a plena liberdade humana e a obediência à autoridade e às leis, causando a ambiguidade no sentido de liberdade humana, que pode levar a tão monstruosas consequências.
O próximo artigo desta série será um resumo da primeira parte da Carta Encíclica de Leão XIII, Libertas Praestantissimum, de 20 de junho de 1888, sobre a liberdade humana.
Por um congregado mariano, grifos nossos