O Sacrifício da Nova Aliança: O Tesouro Escondido da Santa Missa Tridentina – Parte II

A seguir, veremos como a doutrina do sacrifício da Santa Missa está profundamente enraizada nos aspectos exteriores do altar, por exemplo. É possível ler aqui a primeira parte deste artigo.

2. OS DEGRAUS DO ALTAR E A RELAÇÃO ENTRE DEUS E OS HOMENS

2.1. Principium et radix humilitatis reverentia ad Deum

A virtude de religião é o vínculo que liga o homem a Deus, como princípio de todo bem, e uma perfeição da vontade, que se agrada com a relação de dependência do homem para com Deus. Os atos próprios da religião são todos os que por sua natureza manifestam e confessam esta dependência: a oração e a devoção, como atos interiores; a adoração e o sacrifício, dentre outros, como atos exteriores. Pode, além disso, a virtude da religião ordenar para o mesmo fim atos de outras virtudes, como a humildade.

Depois das teologais é a virtude mais elevada. Porque, entre todas as virtudes morais, cuja finalidade é disciplinar os atos do homem para dirigi-lo à conquista de Deus, nenhuma tem objeto mais elevado e próximo do último fim:

As outras virtudes regulamentam os atos e deveres do homem para consigo mesmo ou para com as outras criaturas; a religião ensina-lhe as suas obrigações para com Deus, a reconhecer e acatar a sua soberana majestade, a servi-lo e honrá-lo como servido e honrado quer ser Aquele cuja grandeza e perfeição excedem com diferença infinita, à de todas as criaturas. 1

Assim, por direito natural o homem estava obrigado a render a Deus um culto de homenagem em reconhecimento de sua submissão e total dependência:

A razão natural dita que devemos obedecer a um superior por causa das deficiências que trazemos em nós, e que nos impõem a necessidade de sermos ajudados e dirigidos por ele. E qualquer que ele seja, todos lhe dão o nome de Deus. Ora, assim como na ordem da natureza. os seres inferiores estão naturalmente sujeitos aos superiores, assim também um ditame da razão natural inclina o homem, naturalmente, a sujeitar–se e honrar, a seu modo, ao ser que lhe é superior. Ora, o modo natural de o homem se exprimir é usar de sinais sensíveis; pois, das coisas sensíveis é que tira o seu conhecimento. Consequentemente, a razão natural o leva a tomar certas coisas sensíveis e oferecê–las a Deus em sinal da sujeição e honra devidas, à semelhança do servo que faz ao senhor oferendas em reconhecimento da dependência em que está deste. Ora, é isto que constitui essencialmente o sacrifício, Logo, oferecer sacrifício é exigência do direito natural. 2

Enquanto submisso, o homem rende um culto de adoração ao Deus que é seu princípio e seu fim; enquanto dependente totalmente, o homem rende um culto de ação de graças e de súplica ao Deus que lhe provê todos os bens, passados, presentes e futuros. A forma exterior mais perfeita destes cultos eram os sacrifícios latrêutico, eucarístico e impetratório.

2.2. Doutrina sobre o pecado original

Ao cometer o pecado original, Adão perdeu o estado de justiça e santidade no qual fora criado, contraiu para com Deus uma dívida de valor infinito, a qual não teria jamais condições de pagar, perdeu a graça, a vida da alma, fez-se escravo do demônio e contraiu a ferida da natureza tanto na alma como no corpo 3. Após contrair esta dívida e incorrer na ira e na indignação de Deus, o homem estava obrigado a render a Deus um culto de reparação pela ofensa, que o fizesse voltar a ser propício; sua forma exterior, portanto, era a de sacrifício expiatório.

Este único pecado em sua origem, bem como todas as suas consequências, foi transmitido a todos os homens por propagação. Em outras palavras, o homem herda de Adão a natureza humana ferida pelo pecado, sujeito de uma dívida tremenda para com Deus a qual não tinha condições de pagar 4. Nisto se funda a necessidade do sacerdócio entre os homens.

3. O ALTAR E A PERFEIÇÃO DO SACRIFÍCIO

3.1. Sacrum facere

O sacrifício manifesta sensivelmente o movimento interior de elevação da alma até Deus. E porque Deus revelou-se a Si mesmo como o Único Senhor, condenando com particular rigor a idolatria e pecados a ela semelhantes, também os objetos sacrificados não poderiam mais ser utilizados com outro fim:

Os sacrifícios propriamente ditos implicam em alterarmos [privação física ou moral] coisas oferecidas a Deus, como quando matamos os animais, rompemos o pão, comemo–lo e benzemo–lo. E o próprio nome o exprime; pois, sacrifício vem de fazermos com que alguma coisa seja sagrada. 5

A seguir, comentaremos brevemente apenas algumas das principais espécies de sacrifícios da Antiga Lei, buscando as principais figuras do Santo Sacrifício da Santa Missa. Para tanto, dividimos em duas pequenas seções, os sacrifícios em que haviam derramamento de sangue e os sacrifícios não cruentos.

3.2. Sacrifícios não cruentos

3.2.1. Produtos da terra

Consideremos o sacrifício dos lavradores, como Caim. Podemos observar sobretudo os três primeiros caracteres de adoração, ação de graças e súplica no oferecimento destes bens. Pela qualidade do sacrifício exterior se pode observar as disposições interiores, por isso o sacrifício de Caim foi rejeitado por Deus, o qual prescreve normas específicas a fim de que o sacrifício seja reflexo de Sua divina perfeição:

Quando alguém apresentar ao Senhor uma oblação como oferta, a sua oblação será de flor de farinha; derramará sobre ela azeite, ajuntando também incenso. E a levará ao sacerdote, filho de Aarão, o qual tomará um punhado de flor de farinha com azeite, e todo o incenso, e os queimará sobre o altar como um memorial. Esse é um sacrifício consumido pelo fogo, de agradável odor ao Senhor (…) Salgarás todas as tuas oblações; não deixarás faltar à tua oferta o sal da aliança de teu Deus. Porás, pois, sal em todas as tuas ofertas. Se fizeres ao Senhor uma oferta de primícias, oferecerás espigas tostadas ao fogo, grão tenro moído como oblação de tuas primícias. Derramarás azeite por cima, ajuntando também o incenso; essa é uma oblação. O sacerdote queimará como memorial uma parte do grão moído e do azeite, além de todo o incenso. Esse é um sacrifício feito pelo fogo ao Senhor  6

São Tomás de Aquino oferece um comentário perfeitíssimo aos sacrifícios da Antiga Aliança. Sobre este sacrifício dos bens da terra, em particular, nota sua representação da totalidade da vida humana – de suas necessidades e seus trabalhos – e suas figuras eucarísticas:

Os produtos da terra, de que o homem lança mão, ou lhe servem de comida, e desses se oferecia o pão; ou de bebida, dos quais se oferecia o vinho; ou de condimento, e dentre esses se oferecia o azeite e o sal; ou de remédios, e dentre esses se oferecia incenso, que é aromático e fortificante. — Ora, o pão figurava a carne de Cristo; o vinho, o seu sangue, que nos remiu; o azeite, a graça de Cristo; o sal a ciência; o incenso, a oração” 7.

3.2.2. Bode expiatório

Consideremos agora o sacrifício dos pastores, como Abel. Podemos observar sobretudo o caráter expiatório, como indica o nome deste sacrifício:

Depois [Aarão] pegará os dois bodes e os apresentará diante do Senhor na entrada da tenda do encontro. Lançará a sorte sobre os dois bodes: um será para o Senhor e o outro para Azazel. Pegará o que tocou por sorte ao Senhor e o oferecerá como sacrifício expiatório. Aquele que tocou por sorte a Azazel, ele o apresentará vivo diante do Senhor, fará a expiação por ele, e depois o mandará ao deserto, para Azazel 8

A vida é o maior bem de que dispõe o homem, e certamente seria o bem de maior valor o mais adequado para ao menos indicar a disposição em saldar uma dívida infinita. O homem não dispunha de poder sobre sua própria vida, mas apenas sobre as demais criaturas da terra. Então, como não era lícito ao homem tirar a sua própria vida, ele deveria oferecer a vida de um animal em substituição.

Neste sacrifício podemos observar ao menos três figuras muito importantes. A primeira se deu após o Batismo de Nosso Senhor, após ouvir do Pai: “hic est Filius meus dilectus in quo mihi conplacui – Eis o Meu Filho muito amado, objeto de minhas complacências” 9; foi “levado pelo Espírito Santo ao deserto para ser tentado pelo demônio” 10, e lá o venceu. A segunda figura se deu por ocasião de Sua Paixão, após ouvir de Pilatos “Ecce homo (…) Ecce Rex vester” 11; desta vez foi Barrabás conduzido pela licenciosidade para o deserto do pecado cujo fim é o encontro com o diabo; Nosso Senhor foi entregue ao sacrifício expiatório. Por fim, a terceira figura diz respeito ao Canon da Missa, à oração Hanc Igitur, logo antes da consagração.

3.3. Sacrifícios cruentos

São Tomás explica a hierarquia entre os sacrifícios da Antiga Lei, conforme os caracteres de adoração, satisfação, ação de graças e súplicas:

O holocausto era o principal dentre todos os sacrifícios; porque a vítima toda era queimada em honra de Deus e nada dela se comia. — O segundo lugar, na santi­dade, tinha-o a vítima pelo pecado, comida só no átrio, pelos sacerdotes, no dia mesmo do sacrifício. — O terceiro, era o da vítima pacífica, em ação de graças, comida no mesmo dia, mas em todos os lugares de Jerusalém. — O quarto, o da hóstia pacífica, em virtude de voto, cujas carnes podiam ser comidas no dia seguinte. — E a razão desta ordem é que o homem tem obri­gações, para com Deus, sobretudo, por causa da sua majestade; em segundo lugar, por causa da ofensa cometida; em terceiro, pelos bene­fícios já recebidos; em quarto, pelos benefícios esperados. 12

3.3.1. Hóstias pacíficas – impetração e ação de graças

Vejamos cada um dos três gêneros de sacrifícios cruentos. “O terceiro sacrifício era o chamado hóstia pacífica, oferecido a Deus, ou em ação de graças, ou pela saúde e prosperidade dos oferentes, como dívida do benefício a receber ou já recebido”. Cada espécie de sacrifício era dividida em certas partes, conforme a finalidade, em cujo número podemos entrever uma certa hierarquia de santidade: “estes sacrifícios continham três partes, das quais, uma era queimada em honra de Deus; a outra cedia-se para ser comida pelos sacerdotes; a terceira, enfim, para ser comida pelos oferentes”. E assim S. Tomás explica a figura: “Isto tudo para significar que a salvação do homem vem de Deus, sob a direção dos seus ministros, e com a cooperação dos próprios homens que são salvos”.

3.3.2. Sacrifício propiciatório – satisfação que paga – (sangria da vítima)

O segundo gênero “era o sacrifício pelos pecados, oferecido a Deus, pela necessidade de os remir”. Este sacrifício “continha duas partes, das quais, uma se queimava e cedia-se a outra para ser consu­mida pelos sacerdotes, para significar que a expiação dos pecados se faz por Deus, pelo ministério dos sacerdotes”.
Diz S. Tomás que havia uma exceção para essa divisão “quando o sacrifício era oferecido pelo pecado de todo o povo [na Festa da Expiação, pelo Sumo Sacerdote], ou especialmente, pelo do sacerdote”. Neste caso “as vítimas eram totalmente queimadas”. Explica o Santo Doutor pela inconveniência de os sacerdotes se alimentarem de uma oferta em expiação dos próprios pecados, e de algo pecaminoso.

3.3.3. Holocausto – latria (adoração e dependência): Isaac

O primeiro gênero de sacrifício em ordem de hierarquia “era aquele em que se consumiam totalmente as vítimas; e por isso se chamava holocausto, que significa queimado totalmente”. A razão de ser deste sacrifício era “reverenciar a majestade e o amor da sua bondade”. A figura deste sacrifício ensina que, “assim como o animal todo, resolvido em vapor, sobe aos ares, assim também o homem todo, com tudo o que lhe pertence, está sujeito ao domínio de Deus, a quem deve oferecer-se”.

3.4. O Sacrifício da Ssma. Eucaristia

Diz S. Tomás: “E como do figurado se deduz a razão de ser da figura, as razões dos sacrifícios figurativos da lei antiga devem-se deduzir do verdadeiro sacrifício de Cristo”. O Catecismo Romano distingue ainda mais as figuras da Ssma. Eucaristia:

Ademais, antes e depois da promulgação da Lei, foi este Sacramento prefigurado por várias espécies de sacrifícios; pois todos os bens da salvação, significados por por aqueles sacrifícios, estão contidos neste único Sacrifício, que constitui, por assim dizer, o remate e a consumação de todos os outros. Entre eles, porém, não se pode considerar uma figura mais expressiva do que o sacrifício de Melquisedeque 13[Catecismo Romano II, IV, 73].

O capítulo XVI do Livro de Levítico apresenta a Festa da Expiação, cuja figura do sacrifício da Missa é muito eloquente. Tentaremos observar algumas figuras. Em primeiro lugar, as precisões a respeito da data e do local no Templo: sancta sanctorum, em que podemos entrever a plenitude dos tempos — In Illo Tempore — e a terra santa. Em seguida, as vestes sagradas de linho que o sumo sacerdotes deveria vestir exclusivamente para o sacrifício, figura da sagrada e adorável humanidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, com a qual se vestiu para o sacrifício do Calvário, e das espécies eucarísticas sob as quais se esconde no sacrifício da Santa Missa.

Em seguida, o documento da Antiga Aliança, sob a tampa da Arca, figura de Seu preciosíssimo Corpo no ventre de Nossa Senhora, desde a Encarnação, e no tabernáculo sob as espécies eucarísticas, documento que constitui a Igreja e a Nova Aliança. Em seguida, a aspersão do sangue da vítima, figura do sangue e água que jorraram de seu lado no Calvário, de Seus méritos aplicados às nossas almas, de Suas graças distribuídas na Santa Missa.

Aqui podemos observar a relação estreita entre Encarnação e Transubstanciação: Na Encarnação o Verbo se fez carne. Na Transubstanciação, o Verbo Encarnado faz do pão a Sua Carne e do vinho o Seu Sangue.

Mas é uma ordem sacerdotal distinta da de Aarão que apresenta a melhor figura de Nosso Senhor: “Tu és sacerdote perpétuo segundo a ordem de Melquisedeque” 14:

Ademais, antes e depois da promulgação da Lei, foi este Sacramento prefigurado por várias espécies de sacrifícios; pois todos os bens da salvação, significados por por aqueles sacrifícios, estão contidos neste único Sacrifício, que constitui, por assim dizer, o remate e a consumação de todos os outros. Entre eles, porém, não se pode considerar uma figura mais expressiva do que o sacrifício de Melquisedeque 15[Catecismo Romano II, IV, 73].

Com efeito, a carta de S. Paulo aos Hebreus, de cujas páginas podemos extrair a perfeita doutrina católica da Santa Missa, após definir o limite da Antiga Aliança: “Pois é impossível que o sangue de touros e de carneiros tire pecados”, enuncia: “Eis por que, ao entrar no mundo, Cristo diz: ‘Não quiseste sacrifício nem oblação, mas me formaste um corpo. Holocaustos e sacrifícios pelo pecado não te agradam. Então, Eu disse: ‘Eis que venho (porque é de mim que está escrito no rolo do livro), venho, ó Deus, para fazer a tua vontade’’ 16” [Heb X, 5-7].

E assim chega-se à perfeição da Aliança, pela perfeição do sacrifício, da vítima e do sacerdote: “‘Eis que venho para fazer a tua vontade’. Assim, aboliu o antigo regime e estabeleceu uma nova economia. Foi em virtude desta vontade de Deus que fomos santificados uma vez para sempre, pela oblação do corpo de Jesus Cristo” [Heb X, 10].

Um confronto nos fará compreender como deve ser agradável e bem aceita a Deus esta Vítima, uma vez que imolada segundo as prescrições da Lei. Dos sacrifícios da Antiga Aliança está escrito: *‘Não quisestes sacrifício nem oferenda’* (Sal XXXIX, 7). E noutro lugar: *‘Se quisésseis um sacrifício, Eu certamente o teria oferecido; mas Vós não vos comprazeis com holocaustos’* (Sal L, 18). No entanto, esses mesmos sacrifícios eram tão agradáveis ao Senhor que, no dizer da Escritura, *‘Deus os sorvia como um suave odor’* (Gen VIII, 21). Ora, que não devemos, pois, esperar deste outro Sacrifício? Nele é imolado e oferecido Aquele mesmo, de quem por duas vezes se ouviu falar a voz do céu: *‘Este é Meu Filho bem-amado, em quem pus todas as minhas complacências’* (Mt III, 17) [Catecismo Romano II, IV, 67].

Definitivamente, a Igreja ensina a identidade (de sacerdote e de vítima) entre ambos os sacrifícios, da Missa e do Calvário, com apenas a distinção do modo (este cruento e aquele incruento):

Dizemos, portanto, que o Sacrifício que se oferece na Missa e o Sacrifício oferecido na Cruz são e devem ser considerados como um único e mesmo Sacrifício. Da mesma forma, a Vítima é uma e a mesma, Cristo Senhor Nosso, que uma vez só Se imolou de modo cruento no altar da Cruz.
(…) Mas o sacerdote também é o mesmo, Cristo Nosso Senhor. Pois os ministros que oferecem o Sacrifício, não fazem prevalecer a sua própria, mas a Pessoa de Cristo, quando consagram Seu Corpo e Sangue. É o que mostram as próprias palavras da consagração. Não diz o sacerdote: ‘Isto é o Corpo de Cristo’, mas diz: ‘Isto é o Meu Corpo’. Representando assim a Pessoa de Cristo Nosso Senhor, converte a substância do pão e do vinho na verdadeira substância de Seu Corpo e Sangue.
(…) O Sacrossanto Sacrifício da Missa não é apenas um Sacrifício de louvor e ação de graças, ou uma simples comemoração do Sacrifício consumado na Cruz, mas é também um verdadeiro Sacrifício de propiciação, pelo qual Deus se torna brando e favorável a nosso respeito.
(…) Noutros termos, este Sacrifício incruento derrama, então, sobre nós os ubérrimos frutos do Sacrifício cruento 17.

4. O SACRIFÍCIO DO CALVÁRIO, ATO PERFEITO DE CULTO A DEUS

Disse Nosso Senhor a Moisés a respeito das prescrições cerimoniais: “Cuida para que se execute esse trabalho segundo o modelo que te mostrei no monte” [Exo XXV, 40]. A Santa Igreja no decorrer dos séculos com todo temor e reverência praticou este preceito no desenvolvimento do Rito Romano. Em particular a Santa Missa Tridentina é uma reprodução fidelíssima do Calvário, o que lhe rendeu a reverência acima de todos os demais ritos aprovados pela Igreja.

Com efeito, se nos detivermos e considerarmos ainda que brevemente a profundidade do Sacrifício Redentor de Nosso Senhor, seremos tomados de profunda admiração: “E tanto mais se admiravam, dizendo: ‘Ele fez bem todas as coisas!’” [Marc VII, 37]. Desde que a natureza humana foi ferida e o pecado entrou no mundo pela porta dos fundos, por assim dizer, tornou-se necessário oferecer a Deus um sacrifício satisfatório. Entretanto, Nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, com o menor de Seus sofrimentos ou contrariedades poderia saldar suficientemente esta dívida infinita. Para tanto, Sua Encarnação fora superabundante, visto ser o constrangimento, a humilhação e o ocultamento de Sua divindade ao unir-se à natureza humana.

Entretanto, quis Nosso Senhor render a Deus um ato de culto perfeito: “Num só dia de sofrimento, Nosso Salvador encarnou em Si mesmo todas as normas de virtude, que de boca nos havia ensinado, durante todo o tempo de Sua pregação” 18. Verdadeiramente, “Ele fez bem todas as coisas!”. Procuremos compreender melhor em que consiste esta perfeição.

Ensina o Concílio Tridentino que Deus prepara o pecador para a justificação por uma graça especial, à qual ele pode consentir livremente ou rejeitar 19. E finalmente:

A esta disposição ou preparação segue a justificação propriamente dita, que não é somente remissão dos pecados [cân. 11], mas também santificação e renovação do homem interior, mediante a voluntária recepção da graça e dos dons, pelos quais o homem de injusto se torna justo, de inimigo amigo, para que seja *“herdeiro segundo a esperança da vida eterna”* (Tt 3,7) 20.

Na primeira parte deste artigo, dissemos que a religião pode ordenar para seu fim os atos das outras virtudes, convertendo a vida do homem em um ato de culto permanente. Neste caso, ela se chama santidade, “porque santo é o homem cuja vida se transforma num ato de religião” 21. O próprio Nosso Senhor deu disso perfeitíssimo modelo. Como observamos, desde Sua Encarnação ordenou tudo para agradar a Deus: “Pois Eu desci do céu, não para fazer a minha própria vontade, mas a vontade daquele que me enviou” 22.

Assim, para tal fim fez convergir todas as suas virtudes humanas:  De fato, pela sua pobreza absoluta, desde o presépio, oferecia a Deus um perfeito culto de ação de graças e impetração, que reconhecia ao Pai a fonte de todos os Seus bens passados, presentes e futuros e, desse modo, nos ensinava a esperança. Por sua castidade, ao antepor o amor de Deus acima de absolutamente todas as criaturas, sem mistura de nada que não fosse este mesmo amor, rendia a Deus um perfeito culto de propiciação que, não conhecendo o pecado, só agradava a Deus e o fazia propício a Si mesmo, e assim nos ensinava a caridade. Por fim, submetendo perfeitamente Sua vontade humana às disposições da Divina Providência, até o Getsêmani, ofereceu a Deus um culto perfeitíssimo de adoração e por ele nos ensinou a verdadeira obediência da fé.

Expressão deste inefável culto interior não poderia deixar de ser um único culto exterior de sacrifício, ao mesmo tempo, de adoração, de ação de graças, de impetração e de satisfação e propiciação.  Aqui se expressa a perfeita ars celebrandi, que agradou profundamente a Deus. Aqui o próprio Deus poderia ter dito: “Ele fez bem todas as coisas. Fez ouvirem os surdos e falarem os mudos!” (Marc VII, 37), “e merecerem os pecadores…”. Como Deus, tira o ser do nada: “colhe onde não plantou e ajunta onde não semeou” (Mat XXV, 24).

Seis velas ladeiam o altar junto ao crucifixo, como seis pessoas estavam diante de Nosso Senhor, no Calvário. Como disse que faria, ao ser elevado no lenho da Cruz: “atrairei todos a mim — omnia traham ad me ipsum” (Jo XII, 32). Com efeito, uns foram arrastados pelas “correntes de caridade” (Os XI, 4), outros pelas correntes da penitência, outros ainda pelas correntes da justiça: mas todos se encontravam no tribunal do Calvário.

Seis dons distribuiu Nosso Senhor, no Calvário, às criaturas: as vestes e a túnica aos pagãos, Mãe e Filho constituiu a seus prediletos, Sangue e Água fez jorrar para a conversão dos pecadores. Deu estes dons aos pares porque o numero 2 representa a criatura, sempre composta por ato e potência. Mas ao consumar o Sacrifício, entregou o último dom, o mais perfeito e que só a Deus — que é uno — o poderia dar: o Seu Espírito, as correntes de amor que vinculam as Pessoas da Ssma. Trindade, o Espírito Santo que procede do Pai e do Filho. “Consumatus est”: Ali Nosso Senhor consumou a fonte de toda justiça e santidade, muitíssimo superior ao que perdeu o primeiro Adão. “Ele fez bem todas as coisas!”.

A Santa Missa é a perfeita atualização e renovação de tão augusto Sacrifício. É o único sacrifício da Nova e Eterna Aliança: “Porque, onde há testamento, é necessário que intervenha a morte do testador. Um testamento só entra em vigor depois da morte do testador. Permanece sem efeito enquanto ele vive.” [Hebreus IX]. O caráter sacrificial da Missa, que constitui sua essência mesma, como não poderia deixar de ser, fora manifestamente estabelecido por Nosso Senhor desde sua instituição, na Última Ceia. De fato, assim como fez Moisés quando instituiu os sacrifícios do Antigo Testamento: “tomou o sangue para aspergir com ele o povo: ‘Eis – disse ele – o sangue da aliança que o Senhor fez convosco, conforme tudo o que foi dito'” [Exo XXIV, ]; também Nosso Senhor, ao suplantar a Antiga Aliança, disse solenemente: “isto é meu sangue, o sangue da Nova Aliança, que por muitos é derramado em remissão dos pecados” [Mat XXVI, 28].

Esta doutrina luminosa do Sacratíssimo Sacrifício Redentor de Jesus Cristo é perfeitamente manifesta no Rito Tradicional Romano, definitivamente compilado por São Pio V, como fruto do Concílio Tridentino. Com efeito, seus símbolos, gestos, ritos e cerimônias conduzem infalivelmente as almas à consideração da miséria do pecado e à contemplação da misericórdia e da majestade de Deus.

5. REFERÊNCIAS

Concílio Ecumênico de Trento, Denzinger nn. 1501 – 1762;

Catecismo Romano;

DAVIES, Michael Treharne. A Reforma Litúrgica de Cranmer. Trad.: Fabiano Rollim. Niterói, RJ: Permanência, 2017;

__. A Short History of the Roman Mass;

LEÃO XIII. Encíclica “Caritatis studium”, de 25 jul. 1898, sobre a identidade do sacrifício da cruz e do sacrifício da missa;

__. Carta “Apostolicae curae et caritatis”, 13 set. 1896, sobre as ordenações dos anglicanos;

Santo Tomás de Aquino. Suma Teológica, IIa IIae parte, Tratado sobre a justiça;

Pe Tomás Pègues, OP. A Suma Teológica na forma de catecismo. 1942, Transcrito.


 

  1. Suma Teológica em forma de catecismo, pág. 141
  2. São Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-IIae, Q. 85, Art. 1
  3. cf. Concílio Ecumênico de Trento, Sessão V, 17 jun. 1546: Decreto sobre o pecado original, DS 1511
  4. cf. Idem, Ibidem, DS 1512-1513
  5. São Tomás de Aquino, Suma Teológica  II-IIae, Q. 85, Art. 3, ad 3
  6. Lev II,1-2. 13-16
  7. Idem, Ibidem, I-IIae, Q. 103, Art. 3, ad 13
  8. Lev XVI, 7-10
  9. Mat III, 17
  10. Mat IV, 1
  11. Jo XIX, 5.14
  12. Idem, Ibidem, I-IIae, Q. 102, art. 3, ad 10, 8
  13. cf. Gen XIV, 18; Sal CIX, 4; Heb VII, 17
  14. Sal CIX, 4
  15. cf. Gen XIV, 18; Sal CIX, 4; Heb VII, 17
  16. Sal XXXIX,7ss
  17. Idem, II, IV, 74-76
  18. Catecismo Romano I, IV, 15
  19. cf. DS 1525 a 1527
  20. Seção VI, Decreto sobre a justificação, DS 1528
  21. Suma Teológica em forma de catecismo, pág. 141
  22. Jo VIII, 38; cf. V, 30

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