A Humildade

Humildade é esquecimento atentíssimo de todos os bens que temos praticado. Humildade é ter-se o homem por mais baixo de todos e pelo maior pecador. Humildade é conhecimento da alma, mediante o qual vê o homem sua própria fraqueza e miséria. Humildade é adiantar-se a pedir perdão ao próximo e aplacar sua ira, ainda que tivesse sido por ele agravado. Humildade é conhecimento da graça e misericórdia de Deus. Humildade é sentimento do ânimo contrito e negação da própria vontade.

Humildade é uma sombra e proteção de Deus, a qual faz que não tenhamos olhos para ver nossas boas obras. Humildade é a morte da vileza, a qual torna o homem inexpugnável a todos os ladrões. Humildade é torre de fortaleza contra a qual não será poderoso o pensamento da maldade, torre diante da qual cabem todos os seus contrários, e que fará voltarem as costas todos os seus inimigos. Além destas propriedades, que são argumentos e indícios de riquezas espirituais, há uma que não se pode ver e que está escondida no íntimo do coração, qual seja um profundíssimo desprezo de si mesmo.

Dessa grande substância procede um grande ódio de todo o gênero de vanglória, e aquele que profundamente se conhece e se despreza, já semeou na terra a semente desta virtude, pois que só assim nasce e floresce a humildade. Aquele que conhece a si mesmo já alcançou um íntimo sinal do temor de Deus, pelo qual, caminhando diligentemente, chegará à porta da caridade. A humildade é porta do Céu. Por ela, disse o Senhor, entra-se e por ela sai-se da vida sem temor, pois que se achará pasto e verdura no Paraíso. Todos os que quiserem passar por outra porta, só com figura e aparência de humildade, ladrões são de sua própria vida.

Esta virtude tem diversos graus, e diversos efeitos ou fatos correspondentes a esses graus. Assim como a mesma videira tem um aspecto no inverno, outro na primavera, outro no verão, assim também a humildade tem uma maneira nos que começam (que estão quase como no frio do inverno), outra nos que aproveitam (que são como a florida primavera), e outra nos perfeitos (que são como o caloroso estio). Todos estes graus, entretanto, conduzem a uma mesma alegria e fruto de virtude, e cada um deles tem seus sinais próprios.

Quando começa a florescer o ramo desta santa videira, logo começamos a desterrar de nossa alma toda a ira e furor, e a desdenhar toda a fama e honra do mundo, ainda que isso seja feito com alguma dor e trabalho. Mas, depois que esta nobilíssima virtude começa a crescer em nosso ânimo na idade espiritual, logo chegamos a ter em nenhuma conta todo o bem que fazemos, e pensamos que, dia por dia, aumentamos a carga de nossas dívidas com culpas secretas que nós mesmos ignoramos, pois, ainda que algumas de nossas obras sejam meritórias e louváveis, muitas outras vão acompanhadas de negligências, e todas são baixas para o que Deus merece, e por tais convém que as tenha o humilde servo de Deus. Além disso, este humilde servo de Deus suspeita que a abundância dos dons celestiais que recebeu, há de ser para si matéria de maior castigo e tormento, porque pensa que nem os agradece como merecem, nem usa deles como deve; e, assim, fica a alma inteira e humilde no meio de todos estes dons celestiais, porque se encerra com segurança dentro da consideração de sua pequenez, como em um castelo inacessível, ouvindo somente o ruído e a grita dos ladrões, e permanecendo segura e livre de todos eles.

 

As três propriedades da humildade

A primeira e principal propriedade que tem este admirabilíssimo ternário é um suavíssimo e muito alegre sofrimento de ignomínias, que a alma abraça e espera com as mãos levantadas para o Céu, a fim de amansar suas paixões e consumir a fonte de seus pecados.

A segunda propriedade é a vitória de toda a ira e, com isso, a temperança em comer e beber, e em todos os outros deleites, a fim de que não se derrame por uma parte o que se recolhe por outra, nem busque o homem este gênero de deleites e consolos para passar aqueles trabalhos.

O terceiro e perfeitíssimo grau é uma “infidelidade fiel”, isto é, não se fiar o homem demasiadamente em seus merecimentos e qualidades, somado a contínuo desejo de ser ensinado e admoestado pelos outros.

 

Princípios da humildade

O fim de todas as paixões desordenadas é a vanglória e a soberba dos maus, quando chegam a gloriar-se do mal que fizeram: a humildade, porém, mata todas essas paixões, porque resguarda de todo veneno mortal. Com efeito, onde aparecerá ali o veneno da hipocrisia? Onde a peçonha da traição? Onde alguma serpente que queira fazer seu ninho, e que não seja logo expelida da cova do coração, e desenterrada, e morta?
Onde está este santo ternário, penitência chorosa e humilde, não há ódio, nem aparência de contradição, porque o Senhor se recordou de nós em nossa humildade e nos livrou de nossos inimigos. O humilde não quererá inquirir curiosamente dos segredos que lhe são escondidos, enquanto que o soberbo até dos juízos de Deus quer disputar.

Uma vez, os demônios apareceram invisivelmente a um muito discreto e religiosíssimo padre, dizendo-lhe que era bem-aventurado; e ele respondeu-lhes sapientissimamente, após o que os demônios desapareceram e o deixaram:

Nada ganhais com esta vossa tentação: se deixardes de louvar-me, ganharei com a vitória desta batalha. Se, todavia, porfiais em louvar-me, quanto mais me louvardes, tanto mais conhecerei quão longe estou de tais louvores, e com isso me abaterei. Ide-vos, portanto, e, se não quereis ir-vos, dar-me-eis matéria de alcançar maior humildade.

Que a nossa alma não seja como um canal em que a água às vezes corre e às vezes não corre, esgotando-se com o ardor da soberba e da vanglória: seja antes fonte perpétua de uma bem-aventurada tranqüilidade, produzindo o rio da pobreza do espírito e menosprezo do mundo. Recorda-te, irmão, que os vales multiplicam o trigo. Vale é alma humilde, que permanece sem mudar-se e sem arrogância entre os montes da soberba. Não diz a Escritura “jejuei, velei, dormi no chão”, mas “humilhei-me e livrou-me o Senhor”. A penitência nos ressuscita. O pranto chama à porta do Céu e a santa humildade o abre.

O sol ilumina tudo o que se vê; a humildade fortalece e conserva tudo o que é bem ordenado. Se faltar sol, todas as coisas se encherão de trevas; se faltar a humildade, todas serão hediondas e vãs. Há um lugar no mundo que viu uma só vez o sol, o fundo do Mar Vermelho; assim também, muitas vezes um só pensamento gerou a virtude da humildade. Um só dia houve em que todo mundo se alegrou: o dia da Ressurreição de Jesus Cristo. Esta é uma virtude que os demônios não podem imitar. Aquele que é humilde de coração, não recebe dano com as palavras, nem com os louvores de ninguém, pois, a porta não descobre o tesouro que não está em casa.

É impossível sair fogo da neve. Mais impossível é alcançar humildade aquele que busca glória dos homens. Muitos são os que chamamos pecadores, e porventura assim o pensamos. Com tudo isto, o tempo da injúria e da ignomínia declara qual seja nosso coração. Aquele que se dá pressa por chegar a este quietíssimo estado, nunca desista de examinar atentamente seus costumes, suas palavras, suas intenções, suas opiniões, suas perguntas, suas indústrias, suas disposições, seus intuitos, suas regras, seu instituto de vida, seus desejos, e suas orações, ordenando todas estas coisas para alcançar aquele fim: até que, com a ajuda de Deus e destes documentos de humildade, venha a livrar a barquinha de sua alma do bravíssimo e tempestuosíssimo pélago da soberba, pois, se ficar livre dessa, facilmente, como aquele Publicano, satisfará por todos os seus pecados.

Aquele que verdadeiramente conhece a si mesmo nunca será enganado, para que se meta a empreender maiores coisas do que pode. Fixará o pé, com segurança, neste bem-aventurado ternário da humildade. As aves pequenas temem o gavião, assim como os amantes da humildade temem a voz da desobediência e da contradição. Muitos se salvaram sem graça de profecia, de ciência, de revelações, de milagres, de prodígios. Contudo, sem humildade, ninguém jamais entrou no tálamo do Céu.

Aquele que é de coração humilde, sempre tem por suspeitosa e enganadora sua própria vontade, e por tal a aborrece. Em suas orações, auxiliado por uma fé firmíssima, costuma aprender de Deus, obedecê-lo prontamente à voz de seus superiores, sem pôr olhos nos defeitos deles, confiando em Deus, que, quando foi mister, ensinou até por intermédio de uma jumenta aquilo que era necessário e convinha.

Aquele que pede a Deus menos do que merece, alcançará mais do que merece, como aconteceu ao Publicano, que, pedindo perdão, alcançou justiça, e ao Bom Ladrão, que, pedindo memória de si no reino dos Céus, alcançou o mesmo reino.

Os caminhos para alcançar esta virtude não são fazer milagres, e sim o desprendimento de todas as coisas e a peregrinação da alma, que é o menosprezo cordial de todas elas, o encobrir cautamente nossa sabedoria, o falar com simplicidade e sem artifício, dar esmola, a dissimulação da nobreza, o desterro da vã confiança, o silêncio e freio da língua, e, além disso tudo, o estado de pobreza.

Então, se declara nossa filosofia e nossa sabedoria, e nosso amor para com Deus, pois que, podendo ser grandes, fugimos à grandeza. Se algumas vezes te armares contra algum vício, aproveita-te para isso da companhia e socorro da humildade, e com ela vencerás. Com ela andarás sobre as serpentes e basiliscos, pisarás o dragão, que é o pecado, a desesperação, o demônio e este corpo venenoso. A humildade é um celestial instrumento, poderoso para levantar a alma do abismo do pecado até o Céu!

São João Clímaco
Excertos do escrito “Scala Paradisi”
Adaptação por um congregado mariano

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