O Sacrifício da Nova Aliança: O Tesouro Escondido da Santa Missa Tridentina – Parte I

1. Introdução

Dois são os princípios externos que movem os atos humanos. O demônio dirige os atos humanos para o mal pela tentação; Deus dirige os atos humanos para o bem, instruindo pela Lei e auxiliando pela graça. Os atos humanos desordenados (já que nunca se pode dizer ordenado ao mal, uma vez que o homem só escolhe o mal em razão de bem, ou seja , escolhendo um bem inferior acima de um bem superior) constituirão os pecados e vícios e os atos bem ordenados constituirão as virtudes. Antes de tratar do Santo Sacrifício da Missa, como o culto definitivo do homem para com Deus, cumpre tratar da virtude da religião.

1.1. Homem, composto de corpo e alma

O homem é um ser composto, possuindo faculdades espirituais (inteligência e vontade) e sensíveis (por exemplo, seus cinco sentidos externos: visão, audição, olfato, paladar e tato). A bem aventurança do homem consiste na perfeição de suas faculdades mais nobres, isto é, mais próximas de Deus: as espirituais. Sendo assim, as faculdades sensíveis devem convergir para o aperfeiçoamento das espirituais.

A Antiga Lei promulgou múltiplas prescrições cerimoniais ordenando os atos de religião devidos pelo homem para com Deus. Se a contemplação da verdade divina em si mesma é o fim desta virtude de religião, então é necessário que as cerimônias dirijam os atos de culto sob certas figuras sensíveis, pois o homem opera procedendo do sensível ao inteligível.

São Tomás explica o caráter figurativo tanto da Antiga como da Nova Aliança:

Ora, duplo é o culto de Deus — o interno e o externo. Pois, sendo o homem composto de corpo e alma, esta e aquele devem aplicar-se ao culto de Deus, de modo que a alma o cultue com culto interno, e o corpo, com o externo.
(…) Ora, no estado da felicidade futura, o intelecto humano contemplará a verdade divina em si mesma. Por onde, o culto externo não consistirá em nenhuma figura, mas só em louvor a Deus, o que procede do conhecimento interior e do afeto.
(…) Ao contrário no estado da vida presente, não podemos contemplar a divina verdade em si mesma, mas é necessário que o seu raio nos ilumine, sob certas figuras sensíveis. (…) Ora, na Lei Antiga, nem a verdade divina era em si mesma clara, nem estava ainda preparada a via para chegar a ela, como diz o Apóstolo (cf. Heb IX, 8). Por isso era necessário que o culto externo da Lei Antiga fosse figurativo, não só da verdade futura, que deverá manifestar-se na pátria celeste, mas também de Cristo, via conducente a essa verdade celeste. — No estado da Lei Nova, ao contrário, essa via já foi revelada.

[Sto. Tomás de Aquino, Suma Teológica, Ia-IIae, Q. 101, a. 2].

Daqui podemos concluir que o culto externo, aquele que principalmente prestamos a Deus com nosso corpo e suas faculdades sensíveis, está ordenado à perfeição do culto interno, o qual prestamos a Deus espiritualmente, e que procede de nossas inteligência e vontade, do conhecimento e do amor. Mas como “a visão é como causa do amor – visio enim est quaedam causa amoris” (Idem, Ibidem, Ia-IIae, Q. 67, a. 26), a visão espiritual, o conhecimento, a contemplação de Deus é como a causa de seu amor. Assim, os sinais sensíveis do culto externo devem ordenar-se à perfeição da contemplação e do conhecimento de Deus.

Daqui podermos dizer que a norma da oração é proporcional à norma da fé (lex orandi lex credendi). Com efeito, a uma alteração na norma da oração, necessariamente seguirá uma alteração na norma da fé.

1.2. Ars celebrandi: a beleza e o agrado intelectual

O culto externo, então, é o inteligível através do sensível. Ora, a arte consiste em certa filosofia posta em símbolos, também o inteligível no sensível. Logo, pode-se falar do culto externo em termos de arte: noutras palavras, ars celebrandi.

O fim da arte é a beleza. Ora, “é da essência do belo causar o repouso da apreensão que o vê ou o conhece” 1. Em outras palavras, o belo é “aquilo que agrada a visão” 2. Assim, temos que sua finalidade é o contentamento da vontade não com a posse, mas com a consideração intelectual da beleza.

Mas como a finalidade do culto está em agradar a Deus, então é à Sua consideração principalmente que está ordenada a ars celebrandi (Ver a este respeito, a aplicação à Santa Missa Tridentina desta relação entre beleza e culto: Pe Daniel Pinheiro, IBP. Verdadeira beleza da Missa Tridentina. Sermão para o 7º Domingo depois de Pentecostes. 3.

Podemos ver aqui, mesmo que de longe, uma analogia entre a arte e a Encarnação. O Verbo Eterno de Deus é essencialmente o inteligível que se encarnou no sensível, pela união hipostática. Podemos considerar a Encarnação como uma obra de arte operada pelo Divino Espírito Santo com a cooperação de Nossa Senhora.

1.3. Unidade entre Mistério da Encarnação e Redenção

Há uma estreitíssima ligação entre os dois principais mistérios de Cristo, a Encarnação e a Redenção. De fato, Nosso Senhor se Encarnou para efetivamente oferecer o Sacrifício satisfatório da Cruz. Entretanto, ainda quanto à aplicação dos méritos deste admirável sacrifício, ambos os mistérios guardam profunda unidade, como há entre o fim e seu meio.

Observa, neste sentido, Michael Davies:

O meio de Cristo aplicar os méritos de Sua Paixão é, então, perpetuar a Encarnação através do tempo, até que Ele retorne. Ele faz isso não apenas por meio dos efeitos da Encarnação, mas prolongando a própria Encarnação – e esse prolongamento da Encarnação é a Igreja, o Corpo Místico de Cristo, que é o próprio Cristo vivendo  e agindo por meio de seus membros, que transformam o mundo pela vida divina da graça.

[Michael Davies, A Reforma Litúrgica de Cranmer, pág. 22].

Com mais clareza, explica o Papa Pio XII esta relação da Igreja como meio ou instrumento pelo qual, como prolongamento da Encarnação de Nosso Senhor no tempo, estende a aplicação dos frutos salvíficos do Calvário às almas dos fiéis no decorrer da história, como penhor de sua justiça e santidade:

A denominação de Corpo de Cristo não quer dizer somente que ele é a Cabeça do seu Corpo místico, senão também que sustenta a Igreja e de certo modo vive na Igreja, de tal maneira que ela é como uma segunda pessoa de Cristo.
(…) Todavia, essa nobilíssima denominação não deve entender-se como se aquela inefável união, com que o Filho de Deus assumiu uma natureza humana determinada, se estendesse a toda a Igreja; mas quer dizer que o Salvador comunica à sua Igreja os seus próprios bens de tal forma que ela, em toda a sua vida, tanto a visível como a invisível, é uma perfeitíssima imagem de Cristo.
(…) De fato, em virtude da missão jurídica com que o divino Redentor enviou os Apóstolos ao mundo, como ele fora enviado pelo Pai (cf. Jo XVII,18; XX,21), é ele que pela sua Igreja batiza (cf. Sto. Tomás de Aquino, Summa Contra Gentiles IV, 76), ensina, governa, liga, desliga, oferece e sacrifica. Com aquela outra doação mais elevada, porém, que é interior e altamente sublime, (…) o Cristo Senhor ordena que a Igreja viva da sua vida sobrenatural, penetra com a sua divina força todo o Corpo e nutre e sustenta cada um dos membros, segundo o lugar que ocupa no Corpo, do mesmo modo que a videira sustenta e faz frutificar as vides aderentes à cepa (Cf. Leão XIII, Encíclica “Sapientiae christianae”; e Encíclica “Satis cognitum”).

[Pio XII, Encíclica “Mystici Corporis”, DS 3806.].

Neste sentido, podemos compreender a Igreja como o meio ordinário e necessário para a salvação, por disposição da divina Sabedoria.

1.4. Lex orandi, lex credendi

Podemos concluir desde já que a Encarnação de Nosso Senhor Jesus Cristo é o princípio da Redenção objetiva, operada por Ele no sacrifício do Calvário. Por outro lado, a Igreja enquanto extensão da Encarnação do Verbo é o princípio da redenção subjetiva, isto é, da aplicação dos frutos da redenção objetiva. Disto decorre a estreitíssima ligação entre a Igreja e o Ssmo. Sacramento da Eucaristia.

Observamos também a nota de arte inerente ao culto exterior, dada sua finalidade de agradar a Deus e dirigir as almas até a contemplação da verdade divina. Nisto observamos a proporção direta entre as lei da fé e as lei da oração: “Sabendo muito bem, de fato, que vínculo há entre fé e culto, entre a regra da fé e a regra da oração, deformaram de muitos modos a ordem da liturgia no sentido dos erros dos inovadores, e isso, com o pretexto de reintegrar sua forma primitiva” 4.

A seguir no próximo artigo, veremos como a doutrina do sacrifício da Santa Missa está profundamente enraizada nos aspectos exteriores do altar, por exemplo. Consideraremos os degraus ao pé do altar, o altar propriamente e o crucifixo ladeado pelas velas postos sobre o altar. Em cada uma dessas partes veremos um dogma claramente expresso: o sacerdócio católico, a presença real de Nosso Senhor na Eucaristia e o caráter sacrificial da Missa.


 

  1. Suma Teológica I-II, q. 27, a.1, ad 3
  2. Idem I, q. 5, a. 4, ad 1
  3. Disponível em: <https://missatridentinaembrasilia.org/2014/07/27/verdadeira-beleza-da-missa-2/> Acesso em 29/11/2019.
  4. Leão XIII, Encíclica “Apostolicae curae et caritatis”, sobre as ordenações anglicanas, DS 3317a

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