Cardeal Müller denuncia relativismo moral de bispos alemães sobre o aborto

Fonte: Infocatolica

Tradução e grifos por salvemaria.com.br

Por Cardeal Gerhard Müller, Roma

Na Alemanha, há atualmente um debate sobre se uma pessoa que desafia o Artigo 1 da Constituição — o direito fundamental de todo ser humano à própria vida, desde a concepção até a morte natural — pode ser elegível para servir como juiz no Tribunal Constitucional Federal.

Até mesmo bispos católicos têm evitado dar um “sim” claro à vida, colocando a luta entre partidos políticos pelo poder estatal antes do seu testemunho apostólico da “verdade do Evangelho” (Gl 2,14), que é a única razão de sua existência. Jesus, de quem deriva toda a autoridade dos apóstolos e dos bispos como seus sucessores, formulou, em resposta à pergunta capciosa dos fariseus, a diretriz sobre como sua Igreja deveria se comportar em relação ao poder político legítimo: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22,21). Mas este não é um compromisso barato que permite ao cristianismo coexistir com a idolatria do poder estatal totalitário (como o culto imperial romano) ou com ideologias ateístas (como os “sacerdotes da paz” nos Estados comunistas ou os “cristãos alemães” sob o nazismo). O próprio Jesus, diante de Pilatos — símbolo de um poder usurpado que se arroga o poder de decidir sobre a vida e a morte —, demonstrou que a verdade não depende da vontade dos poderosos nem do ceticismo relativista. Pilatos vangloria-se do seu “poder” (Jo 19,10) para libertar ou crucificar Jesus e zomba da unidade entre Deus e seu Filho, que é a Verdade encarnada e a salvação da humanidade. Jesus se revela como um “Rei” cuja soberania não consiste em explorar o seu povo, mas em dar a vida pelas suas ovelhas (Jo 10,11), tal como deveriam fazer bispos e padres.

Diante do desprezo cínico pela verdade em nome do poder, Jesus dá testemunho da verdade de Deus: “Sim, eu sou rei. Eu nasci e vim ao mundo para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz” (Jo 18:37). Sabendo que seriam levados a tribunais, presos e entregues a “reis e governantes” (Lc 21:12), Pedro e os apóstolos — um modelo para papas e bispos — proclamaram: “Importa obedecer antes a Deus do que aos homens” (Atos 5:29). Negaram a toda autoridade humana (Estado, justiça, exército, nação, tradição, filosofia ou ciência) o direito de impedi-los de “ensinar em nome de Jesus” (Atos 5:28): “Porque também debaixo do céu nenhum outro nome há, dado entre os homens, pelo qual devamos ser salvos” (Atos 4:12).

Toda a história da Igreja ensina que sua missão de servir a Deus como “sacramento universal de salvação para o mundo em Cristo” (Lumen Gentium 1:48; Gaudium et Spes 45) é obscurecida ou mesmo traída quando bispos se curvam aos interesses do poder. O contraste entre um bom pastor e um empregado assalariado fica evidente quando um bispo se vê não como um funcionário público até a aposentadoria, mas como um servo de Cristo até o martírio.

O atual equívoco alemão sobre a Igreja como uma instituição útil ao Estado se expressa assim: “Não devemos proclamar em voz alta as verdades da lei moral natural ou da revelação de Deus, para não ofender os ideólogos neognósticos da autorredenção ou sermos explorados por partidos políticos não marxistas”. Mas esse medo de ser usado politicamente leva à busca da aprovação do partido oposto, o mesmo que é anticristão porque submete a verdade do Evangelho aos cálculos do poder.

Tampouco é papel da Igreja proteger a constituição de um Estado; essa é a tarefa de suas instituições. A Igreja deve, a tempo e a tempo, proclamar o Evangelho e defender a dignidade humana onde quer que ela seja ameaçada. Um Estado de direito só merece seu nome se respeitar os direitos humanos, não apenas se os proclamar retoricamente. O bispo católico, em nome de Deus, deve se opor, até o martírio, a todas as ideologias ateístas e misantrópicas que atropelam o direito à vida e negam a dignidade humana como imagem de Deus.

O lobo pós-humanista ou transumanista se disfarça em pele de cordeiro, falando de autonomia e autodeterminação — mas apenas para os fortes contra os fracos. Dizer que a dignidade humana começa apenas no nascimento é uma tolice que só pode vir da cabeça oca de um ideólogo ou do coração congelado de um jurista implacável, mais fiel à letra do que ao espírito, que começa e termina com parágrafos jurídicos, sem considerar o ser humano de carne e osso.

A criança que nasce é a mesma pessoa que foi concebida, gestada por nove meses e criada à imagem de Deus, já chamada por Ele à salvação eterna. Para evitar serem explorados em lutas partidárias — onde não se hesita em rotular o adversário como “extrema direita” ou “extrema esquerda” —, os bispos não devem sacrificar a verdade de Cristo por medo de serem rotulados de “conservadores” ou “de direita” pela imprensa “woke”. Esta é a “doença mortal” do catolicismo alemão alinhado à ideologia “woke”: mais inspirado por Judith Butler do que por Edith Stein, mais por Marx do que por Möhler ou Newman, mais por Foucault do que por Henri de Lubac.

O erro começou quando a verdade do Evangelho foi subordinada a uma hermenêutica de “humanismo sem Deus”, que abusa da ciência moderna para relativizar a verdade revelada sobre a humanidade. Os bispos não podem colaborar com aqueles que negam a imagem divina nos seres humanos. Toda variante do darwinismo social é radicalmente anticristã. Afirmar que “aquele que sobrevive tem razão e define o que é justo” levou à justificação do extermínio dos deficientes, dos indesejados ou dos inimigos ideológicos (o “inimigo de classe” comunista, o “parasita racial” nazista).

Qualquer pessoa que reconheça o direito humano à vida e o baseie na revelação divina jamais poderá justificar a morte de uma pessoa inocente. Contrastar o direito de uma mãe de decidir sobre seu corpo com o direito de uma criança à vida é um engano diabólico que obscurece a verdade: o direito de uma pessoa à vida termina onde começa o direito de outra. O verdadeiro direito dos pais é proteger e nutrir seus filhos, não decidir sobre sua vida ou morte.

Um Estado que usurpa os direitos dos pais não é democrático, mas um monstro totalitário que devora a própria prole. Os bispos podem se libertar desse dilema entre o Evangelho e a política se retornarem aos fundamentos do Concílio Vaticano II e restaurarem a clareza doutrinária.

E essa é a carta magna da luta cultural entre a vida e a morte que a barbárie das ideologias ateístas do século XX e do presente nos deixou:

> “Tudo o que vai contra a própria vida: assassinato, genocídio, aborto, eutanásia e até suicídio voluntário; tudo o que viola a integridade da pessoa: mutilação, tortura física ou psicológica, coerção psicológica; tudo o que ofende a dignidade humana: condições de vida desumanas, detenções arbitrárias, deportações, escravidão, prostituição, tráfico de mulheres e crianças, condições de trabalho indignas… Todas essas e outras coisas semelhantes são uma vergonha. Degradam mais quem comete do que quem sofre. E são um escândalo para a honra do Criador.” (*Gaudium et spes*, 27)

Conclusão:

O direito da criança à vida é infinitamente mais importante do que o direito dos pais à autodeterminação. Devemos começar com a criança, não com aqueles que a consideram um obstáculo. A liberdade termina onde começa o direito do outro à vida. As crianças não são propriedade dos pais; são responsabilidade da sua criação.

A Igreja Católica defende, em todo o mundo, o direito absoluto à vida do nascituro, do nascido, do são, do doente, da criança e do idoso. Não pode subordinar essa luta à ideologia dominante nem se deixar intimidar por manipuladores de opinião. Deve agir com coragem profética e pensamento crítico, formando consciências e elevando o padrão moral da sociedade.

Crianças ainda não nascidas não podem denunciar o crime cometido contra elas, nem exigir justiça. Mas os bispos podem e devem se manifestar em seu nome — mesmo que sejam difamados por ideólogos e políticos — cumprindo assim uma de suas tarefas mais nobres:

“Abre a tua boca em favor do mudo, e faze justiça a todos os necessitados” (Pv 31:8).

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