Cardeal Zen: “O Papa não compreende a China”
Fonte: The New York Times
O cardeal Joseph Zen, antigo titular da Sé de Hong Kong, profundo conhecedor das dificuldades de Igreja na China, escreveu com exclusividade ao famoso jornal The New York Times a respeito do recente acordo firmado entre o Vaticano e o Governo Chinês. Reproduzimos a seguir a tradução na íntegra feita pelo Salve Maria.
Hong Kong – No mês passado o Vaticano anunciou ter chegado a um acordo provisório com o governo chinês a respeito da nomeação de bispos católicos. Apoiadores do acordo dizem que ele finalmente traz união depois de longa divisão – entre a Igreja clandestina fiel ao Papa e a igreja oficial aprovada pelas autoridades chinesas – e que com isso, o governo chinês reconheceu pela primeira vez a autoridade do Papa. Na verdade, o acordo é um grande passo em direção à aniquilação da verdadeira Igreja na China.
Eu conheço a Igreja na China, eu conheço os comunistas e eu conheço a Santa Sé. Sou chinês de Xangai. Vivi muitos anos na China Continental e muitos anos em Hong Kong. Ensinei em seminários pela China – em Xangai, Xian, Pequim, Wuhan, Shenyang – entre 1989 e 1996.
O Papa Francisco, um argentino, não parece entender os comunistas. Ele é muito pastoral e vem da América do Sul, onde historicamente os governos militares e os ricos juntos oprimiram a população mais pobre. E quem aí viria para defender os pobres? Os comunistas. Talvez até alguns jesuítas, e o governo consideraria esses jesuítas como comunistas.
Francisco pode ter uma verdadeira simpatia pelos comunistas porque para ele, os comunistas são os perseguidos. Ele não os conhece como os perseguidores nos quais se tornam, uma vez que estão no poder, como os comunistas na China.
A Santa Sé e Pequim romperam relações na década de 1950. Católicos e pessoas de outras crenças foram presos e enviados para campos de trabalho forçado. Eu voltei para a China em 1974, durante a Revolução Cultural; a situação era terrível além da imaginação. Uma nação inteira sob escravidão. Nós nos esquecemos muito facilmente destas coisas. Nós também nos esquecemos que nunca é possível ter um acordo verdadeiramente bom com um regime autoritário.
A China se abriu, sim, desde a década de 1980, mas mesmo hoje tudo ainda está sob controle do Partido Comunista Chinês. A igreja oficial na China é controlada pela, assim chamada, associação patriótica e pela conferência episcopal, ambos sob jugo do partido.
De 1985 a 2002 o Cardeal Jozef Tomko foi o prefeito da Congregação para a Evangelização dos Povos, que inspeciona o trabalho missionário da Igreja. Ele era eslovaco, alguém que entendia o comunismo, e era sensato.
A posição do Cardeal Tomko era de que a Igreja clandestina era a única Igreja fiel na China e que a igreja oficial era ilegítima. Mas ele também entendia que havia muitas pessoas boas na igreja oficial. Como o bispo de Xian, que por algum tempo foi o vice-presidente da conferência episcopal. Ou como o bispo de Xangai, Jin Luxian, um jesuíta e linguista brilhante, que foi preso na década de 1950.
Naquela época a Santa Sé tinha uma política cautelosa que foi generosamente implementada. Era passível de um compromisso razoável, mas tinha um ponto principal.
As coisas mudaram em 2002, quando o Cardeal Tomko chegou à idade de se aposentar. Um jovem italiano sem qualquer experiência no exterior o substituiu e começou a legitimar os bispos oficiais chineses de forma muito rápida e facilmente, criando a impressão de que agora o Vaticano iria automaticamente assegurar as escolhas de Pequim.
As esperanças retornaram quando Joseph Ratzinger, um alemão que viveu sob o nazismo e o comunismo, se tornou o Papa Bento XVI. Ele trouxe o Cardeal Ivan Dias, um indiano que viveu certo tempo no oeste da África e na Coréia do Sul, para a direção da congregação para a evangelização e isto internacionalizou o Vaticano. Foi criada uma comissão especial para a Igreja na China. Eu fui nomeado para esta comissão.
Infelizmente o Cardeal Dias acreditava na Ostpolitik e nos ensinamentos de um secretário de estado da década de 1980 que havia sido um defensor da détente1 para com os governos controlados pelos soviéticos. E ele aplicou esta política para com a China.
Quando Bento XVI dirigiu sua famosa carta para a Igreja da China em 2007, pedindo pela reconciliação entre os católicos chineses, uma coisa incrível aconteceu. A tradução chinesa foi lançada com erros, incluindo um tão importante que não poderia ter sido deliberado. Em uma passagem delicada sobre como os padres clandestinos deveriam aceitar o reconhecimento das autoridades chinesas sem necessariamente trair a fé, uma ressalva crítica foi deixada de fora sobre como “quase sempre”, entretanto, as autoridades chinesas impuseram exigências “contrárias aos ditames” da consciência dos católicos.
Alguns de nós levantaram a questão e o texto foi eventualmente corrigido no site do Vaticano. Mas até então o erro original já circulava amplamente pela China e alguns bispos, então, compreenderam a carta do Papa como um encorajamento para se unirem à igreja sancionada pelo estado.
Hoje nós temos o Papa Francisco. Naturalmente otimista a respeito do comunismo, ele está sendo encorajado a ser otimista em relação aos comunistas na China por cínicos ao seu redor que conhecem melhor a situação.
A comissão para a Igreja na China não mais convém, mesmo ainda que ela nunca tenha sido dissolvida. Aqueles de nós que vieram da periferia, das linhas de frente, estão sendo marginalizados.
Eu estava entre aqueles que aplaudiram a decisão do Papa Francisco de apontar Pietro Parolin como secretário de estado em 2013. Mas hoje eu penso que o Cardeal Parolin se importa menos com a Igreja do que com o sucesso diplomático. Seu objetivo final é a restauração das relações formais entre Pequim e o Vaticano.
Francisco deseja ir à China – todos os Papas desejaram ir até a China, a começar por João Paulo II. Mas o que a visita de Francisco a Cuba em 2015 trouxe à Igreja? Ao povo cubano? Praticamente nada. Ele converteu os irmãos Castro?
Os fiéis na China estão sofrendo e estão agora entrando em crescente pressão. Mais cedo neste ano o governo endureceu as regulamentações sobre a prática da religião. Os padres clandestinos na China Continental me dizem que estão desencorajando os paroquianos a irem às Missas para que não sejam presos.
Francisco mesmo disse que ainda que o recente acordo – cujos termos não foram divulgados – preveja um “diálogo sobre eventuais candidatos”, é o Papa quem “aponta” os bispos. Mas qual o bem em se ter a última palavra enquanto a China terá todas as palavras antes disso? Na teoria, o Papa poderia vetar a nomeação de qualquer bispo que possa parecer indigno. Mas quantas vezes ele poderá fazer isso realmente?
Pouco depois de o acordo ter sido anunciado, dois bispos chineses da igreja oficial foram enviados à Cidade do Vaticano para o sínodo, uma reunião regular de bispos de todo o mundo. Quem os escolheu? Ambos os homens são conhecidos por serem próximos do governo chinês. Como tenho dito, sua presença no sínodo foi uma ofensa aos bons bispos da China.
Sua presença também levanta a dolorosa questão de se o Vaticano irá agora regularizar os sete bispos oficiais que permanecem ilegítimos. O Papa já levantou sua excomunhão, pavimentando o caminho para que dioceses sejam formalmente garantidas a eles.
A igreja oficial tem cerca de 70 bispos; a Igreja clandestina tem apenas cerca de 30. As autoridades chinesas dizem: vocês reconhecem os nossos 7 e nós iremos reconhecer os seus 30. Isto parece uma boa troca. Mas será se os 30 bispos serão autorizados a atuar como bispos clandestinos? Certamente não.
Eles serão obrigados a ingressar na assim chamada conferência episcopal. Eles serão forçados a se juntar aos outros nessa gaiola e se tornarão uma minoria entre eles. O acordo do Vaticano, em nome da unificação da Igreja na China, significa a aniquilação da verdadeira Igreja na China.
Se eu fosse um cartunista, desenharia o Santo Padre de joelhos oferecendo as chaves do Reino dos Céus ao presidente Xi Jinping e dizendo “Por favor, reconheça-me como Papa”.
E ainda, aos padres e bispos da Igreja clandestina, eu posso apenas dizer isto: Por favor, não iniciem uma revolução. Eles tomam as suas igrejas? Você não podem mais exercer suas funções? Vão para casa e rezem com a sua família. Preparem o solo. Esperem por tempos melhores. Retornem às catacumbas. O comunismo não é eterno.