Causas das quedas e do afastamento
Ex hoc multi discipulorum eius abierunt retro et iam non cum illo ambulabant
Depois disso, muitos de seus discípulos voltaram atrás e não andaram mais com ele (Jo 6, 67)
Uma das coisas mais tristes de se ver é o afastamento e a deserção de tantos fiéis que, depois de terem andado sob o estandarte de Cristo, covardemente o esquecem e passam a seguir o do Mundo e do Demônio. Nada causa maior aflição no Coração do Bom Deus que ver o pérfido Judas assim renovado; nada, além disso, é mais infeliz para o destino daquele que imita Judas ao vender seu Divino Mestre aos seus inimigos. Para nos preservar de tão grande infortúnio, consideremos as causas dessas deploráveis deserções:
I. Abandono da piedade
Santo Afonso Maria de Ligório assim o expressa: “Quem reza se salva, quem não reza se condena”. Aquele que se mantém fiel à piedade se salva, aquele que a abandona deserta, ainda que guardando uma boa aparência de cristão, e se não voltar logo a ela, infalivelmente, condena-se.
Por piedade entendemos os exercícios e práticas de piedade cristã, particularmente aquelas descritas nas regras da Congregação Mariana – a saber, as orações diárias, os sacramentos da Penitência e da Eucaristia, a meditação e as leituras piedosas. Enquanto formos fieis a esses exercícios, não iremos cair, ou se cairmos, rapidamente nos levantaremos. No entanto, assim que alguém abandona estes atos piedosos, rapidamente retira-se do exército de Cristo e submete-se ao poder do inimigo. Essa não é uma simples queda, é uma deserção.
Como podem essas práticas piedosas serem essenciais à vida cristã? Não é, pois, suficiente, observar os mandamentos, assistir a Missa nos domingos, confessar-se uma vez a ano? Isso é suficiente para cumprir estritamente as leis da Igreja, mas em geral não é suficiente para permitir a alguém viver uma verdadeira vida cristã. Aqueles que se limitam apenas aos atos de pura obrigação, normalmente caem no pecado mortal, continuam nesse estado durante a vida e acabam abandonando até mesmo esses últimos resquícios da religião. Eis o motivo:
As práticas de piedade são o alimento da alma; se privamos nossa alma desse sustento, ela se torna enfraquecida assim como um corpo sem alimento se torna incapaz de resistir aos assaltos dos inimigos, cumprir suas obrigações, caminhar no caminho da virtude. Quando os discípulos perguntaram a Nosso Senhor sobre despedir a multidão que o seguiu ao deserto, Jesus respondeu: “Se os mandarmos embora famintos para suas casas, desfalecerão no caminho” (Mc 8,3). Ah! Se tantas almas desfalecem no caminho da virtude é porque estão fracas pela falta de alimento espiritual!
O que aconteceria a uma lamparina se, por negligência, deixássemos de abastecer o óleo? O que aconteceria com o fogo se não colocássemos mais lenha? A um relógio, por mais perfeito que fosse, se não recebesse corda? A lamparina e o fogo se extinguiriam e o relógio logo pararia. Assim também é com a alma de um homem que abandona a piedade, mas as consequências são muito mais graves.
Nada é, portanto, mais perigoso que abandonar as práticas de piedade; eis o motivo pelo qual o demônio tanto se esforça para nos fazer abandoná-las. E ele atinge esse fim por etapas: primeiro, nos induz, por pretextos, a omitir as práticas de piedade vez ou outra, quando a situação parecer ser grave o bastante; depois, faz-nos omitir por razões cada vez menos graves até que caiamos no hábito de nos dispensar das práticas sempre que julgarmos conveniente, o que logo resulta no abandono total delas.
Ah! Esteja alerta contra essa enganação; mantenhamos as práticas piedosas com inviolável fidelidade!
II. Imprudência ao expor-nos a situações de perigo
Aquele que ama o perigo, diz o Divino Espírito Santo, nele perecerá. (Eclo 3, 27). O perigo de que falamos aqui é a ocasião de pecado, que consiste em circunstâncias exteriores, pessoas, situações ou coisas que por elas mesmas ou por nossa fraqueza nos levam ao pecado.
Quase sempre que caímos em pecado mortal, estamos em certas circunstâncias que o propiciam. Expor-se conscientemente a essas circunstâncias já é um pecado mortal em si mesmo; recusar-se a fugir desse perigo é não ter nem arrependimento nem firme propósito de emenda, o que torna uma alma incapaz de receber a absolvição sacramental.
As ocasiões de pecado mais frequentes nos nossos dias são as más leituras, o teatro, a televisão, a internet1, as danças, más amizades, namoros prematuros, companhias mundanas, conversas indecentes e vãs. Quantos jovens naufragaram nesses perigos! Quantas almas desafortunadas foram levadas à corrupção e perderam a fé por terem se aproximado desse abismo, a ocasião do pecado!
Devemos, por isso, fugir dessas ocasiões a qualquer custo, sob qualquer sacrifício: Se a tua mão te faz tropeçar, corta-a. É melhor entrar na vida eterna mutilado do que, tendo as duas mãos, ser lançado no inferno, onde o seu verme não morre, e o fogo não se apaga (Mt 18,18)
E que jamais se diga: “Não tenho nada a temer; Não é nada demais, todos fazem, sou forte para resistir. Não cairei outra vez”. Uma vez que o perigo já foi mostrado, é uma ilusão pensar que pode-se expor a essa ocasião com impunidade. É como dizer: Entrarei no fogo, mas não me permitirei ser queimado. Dormirei na cova dos leões, mas não deixarei que ele me devore – A experiência prova as infalíveis palavras do Espírito Santo: Aquele que ama o perigo, nele perecerá.
Fugi, portanto, dos perigos! É a verdadeira prudência cristã, verdadeira promessa de salvação. Pois se o negligente que ama o perigo perece, o prudente que foge dele se salva. Foi esse o princípio que fez um santo uma vez dizer: “Quereis salvar vossa alma? Em primeiro lugar, fugi das ocasiões de perigo. Em segundo lugar, fugi. Em terceiro lugar, fugi. Fugindo do perigo, não perecereis.”
III. Dissipação
Uma terceira causa do afastamento de Deus e ruína espiritual é a dissipação. Chamamos dissipação o estado em que a alma se permite ser absorvida pelos interesses e cuidados mundanos, notícias inúteis e dissipações exteriores a ponto de negligenciar as obrigações religiosas e fracassar em refletir sobre as coisas eternas.
A ausência de meditação é fatal às almas. Toda a terra está em desolação porque não há ninguém que medita em seu coração. (Jer 12, 11)
Oh! Se pensássemos na morte, na eternidade, no quão passageiras e vazias todas as coisas! Oh, se pensássemos nos terríveis castigos reservados para o pecado! Se erguêssemos nossos olhos e víssemos, como Damocles, a espada suspensa sobre nossas cabeças, e apressássemo-nos a garantir nossa segurança; mas por não erguermos nossos olhos, não mais vemos os perigos.
A salutar reflexão de que falamos consiste em escutar a palavra de Deus nas leituras piedosas, na meditação e no exame de consciência diário, em preparar-se para a morte sempre, em obediência a Nosso Salvador que nos diz: “Estejais alertas, pois não sabeis a hora em que o Filho do homem virá“.
Alguém pode objetar que não é capaz de meditar. Isso é um engano. A meditação, embora difícil particularmente àqueles que dão aos seus sentidos plena liberdade, não é impossível e para fazê-la é suficiente recolher-se por um tempo do tumulto das coisas exteriores e dar a mente um tempo para as coisas de Deus. Alguém pode, ainda, objetar que não tem tempo para esses piedosos exercícios; o trabalho ou o estudo – pode dizer – absorvem todo o tempo e cuidado. Isso é um erro ainda maior, e é a causa de todo o mal que aqui combatemos.
Deus e a nossa alma, e não os cuidados temporais, devem ser nossa prioridade em tudo na vida: “Que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder sua alma?” Irá o Supremo Juiz aceitar essa desculpa? Não terá tido tempo para cuidar de sua alma o homem que teve vinte, quarenta, setenta anos de vida? Em vão alegará essa pobre alma que as coisas temporais absorveram seu tempo – sua prioridade deveria ter sido as coisas eternas, pois foi para elas que foi ela criada.
Disse o Senhor: “Buscai primeiro o reino de Deus e sua justiça”, mas esta alma buscou primeiro os bens do mundo. Por essa razão, sem desculpas, estará perdida para sempre por sua própria falta. Ah! Se essa alma tivesse dado a si mesma o tempo necessário para recolhimento e meditação, encontraria um refúgio contra a dissipação que causou sua ruína!
Eis, pois, as três causas de todas os desvios espirituais: negligência, imprudência e a dissipação, três abismos que não podemos temer suficientemente. Mantenhamo-nos longe destes abismos e peçamos à Imaculada Virgem Maria que não estejamos no número daqueles que desertam do estandarte da virtude, mas daqueles que perseveram até o fim, fiéis a Jesus, nosso Rei, e sua Santíssima Mãe, nossa Augusta Rainha.
Pe. F. X. Schouppe
em Sodality Director’s Manual, 1882, pg. 55-61
Tradução e ampliação por um Congregado Mariano