Origem dos motetos do José Maurício Nunes Garcia

José Maurício Nunes Garcia nasceu em 22 de setembro de 1767, no Rio de Janeiro. Durante sua infância descobriu uma aptidão à música e foi estudar com Salvador José de Almeida e Faria (1732-99)1, recebeu permissão para ser ordenado padre em 3 de março de 1792. Foi nomeado, em 2 de julho de 1798, mestre-de-capela da Catedral do Rio de Janeiro e com a chegada da corte portuguesa no Brasil (1808) passa a ser mestre da Real Capela.

 

Designa então José Maurício para dirigir as atividades da recém-criada Instituição, formada por músicos já atuantes na cidade e alguns vindos com D. João. Numa demonstração de apreço e admiração por seus talentos musicais, D. João concede-lhe o Hábito da Ordem de Cristo, em 1809.2

 

Retrato de Padre José Maurício Nunes Garcia

 

Sendo padre e mestre-de-capela a maior parte de sua obra é sacra, praticamente toda, se não fosse por algumas peças orquestrais dramáticas e modinhas. Aqui trabalharemos somente com um fragmento da sua obra sacra, a saber, os motetos para soprano e orquestra. Constam apenas dois, o Te Christe solum novimus(1800) e o Creator alme siderum(CPM 59).

A sua atividade como clérigo lhe proporcionou acesso a muitos textos e hinos que como leigo não teria, como por exemplo o breviário, de onde foram tirados os textos para as duas músicas. O breviário nada mais é do que o livro de orações dos sacerdotes católicos, ele é dividido de acordo com o ano litúrgico e as horas canônicas. O ano litúrgico é dividido em tempos litúrgicos, que indicam e auxiliam na meditação proposta tradicionalmente pela igreja. As horas canônicas seguem o ano litúrgico, mas para cada dia existem uma série de textos diferentes para serem meditados a cada ‘hora’ do dia, as horas são, por tradição:

Matinas e Laudes – 2 e 3 da madrugada
Prima – ao se acordar
Terça – 9 da manhã
Sexta – meio-dia
Noa – 3 da tarde
Vésperas – ao anoitecer
Completas – antes de dormir

Cada hora tem um proposito diferente, as primeiras para agradecer o dom da vida que foi dado por mais um dia e as últimas para agradecer o dia que termina e pedir proteção durante a noite. As horas intermediárias geralmente são para pedir graças necessárias nos trabalhos e para manter na memória a constante presença de Deus.

 

Te Christe Solum Novimus

O Te Christe solum novimus foi retirado de um hino da hora laudes da quarta feira para o tempo pascal e dias de festa do ano. Laudes vem do latim e quer dizer louvor. O tempo pascal acontece da vigília da páscoa até a festa de pentecostes (do grego, cinquenta dias), é o tempo que celebra a ressureição de Jesus, é tempo de festa e de exaltar Cristo como Senhor e Rei.

Te, Christe, solum novimus:  Só a Ti, Cristo, conhecemos
Flendo et canendo quaesumus,  No pranto e na alegria
Te mente pura et simplici, A Ti pedimos, com o coração puro e simples
Intende nostris sensibus. Atende os nossos desejos

 

Essa é a única estrofe do hino que José Maurício utiliza para compor o moteto, mas ele usa recursos, como a repetição de frases e palavras, para desenvolver sua obra usando toda sua habilidade contrapontística.

“[…] É escrito em dois movimentos para soprano e orquestra constituída de violinos, viola, baixo instrumental, flauta e trompa. Na primeira seção, há uma ária de virtuosidade para o soprano, apresentando forma sonata com desenvolvimento curto e segundo tema não muito caracterizado motivicamente. A segunda seção é um rondó, com contrastes tonais internos que auxiliam na percepção da forma.”3 (Grifo nosso)

 

Creator alme siderum

O Creator alme siderum foi retirado de um hino de véspera do primeiro domingo do advento. O advento traduzido ao pé da letra quer dizer chegada, em latim, mas para o católico é o tempo de espera, tempo de preparação para a chegada do Natal.

Creator alme siderum Excelso criador dos grandes astros,
Jesus redemptor omnium Jesus, eterna luz dos vossos crentes.
Aeterna lux credentium Divino Redentor da humanidade.
Intende votis supplicium Ouvi as nossas súplicas ardentes.

 

O hino é da véspera do advento, véspera é a preparação para uma festa ou período importante na Igreja, então a véspera do advento é uma preparação para um tempo de preparação. Nesse tempo é proposta a meditação sobre a grandeza divina e sobre a sua misericórdia.

Da mesma forma que a música anterior, ele também utiliza somente uma parte do hino para compor sua obra, o que se diferencia é a orquestração usada. Nesta obra temos o acréscimo de uma segunda flauta e o acompanhamento do órgão. A peça não possui data e há registros de um grupo de hinos que acredita-se que foram feitos após sua nomeação à mestre da Real Capela.

 

Outro grupo notável de composições curtas são os Hinos para Matinas, Laudes ou Vésperas, sempre para vozes e órgão, pelo menos se tomarmos por base as fontes autógrafas, que são a maioria, que transmitem esse repertório. Nenhuma das fontes registra a data, mas o fato de serem escritos, quase todas, para a Capela Real, demonstra que devem ser datados após 18084

É interessante ressaltar que esses hinos não são propriamente de origem bíblica, como são os salmos que os cercam, fazem parte dos hinos que foram escritos por algum santo ou por algum padre, no início da igreja, durante alguma meditação, e foi absorvido pela tradição e chegou até nós. O Te Christe é um trecho do hino Nox et Tenebrae, de Cathemerion de Prudentius (séc. IV), enquanto o Creator Alme, mais tardio, tem origem no século VII.

As reproduções dos motetos, neste artigo, foram realizados pela Orquestra Barroca do Amazonas.

 

  1. Salvador José de Almeida Faria, “músico mineiro conterrâneo de sua mãe, nascido por volta de 1732 e falecido no Rio de Janeiro em 1799. É de especial interesse o testamento de Salvador José, que continha, além de instrumentos musicais, numerosas partituras de compositores portugueses e italianos, o que dá uma ideia das obras com que José Maurício provavelmente teve contato nos seus anos de aprendizado.” (Figueiredo, 2012)
  2. BERNADES, Ricardo, José Maurício Nunes Garcia e a Real Capela de D. João VI no Rio de Janeiro, Música no Brasil nos séculos XVIII e XIX, Funarte 2001.
  3. FIGUEIREDO, Carlos Alberto, José Maurício Nunes Garcia, Dicionário Biográfico Caravelas, Núcleo de Estudos da Historia da Música Luso-Brasileira, 2012.
  4. ibid

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