Motu Proprio Summorum Pontificum

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CARTA APOSTÓLICA
DE SUA SANTIDADE
 BENTO XVI
 DADA SOB FORMA DE MOTU PROPRIO

SUMMORUM PONTIFICUM

Os Sumos Pontífices preocuparam-se, constantemente até aos nossos dias, por que a Igreja de Cristo oferecesse à Divina Majestade um culto digno «para glória do seu nome» e para bem «de toda a santa Igreja».

Desde tempos imemoriais e de igual modo para o futuro, se reconhece como necessário manter o princípio segundo o qual «cada Igreja particular deve concordar com a Igreja universal não só quanto à doutrina da fé e aos sinais sacramentais mas também quanto aos usos universalmente aceites por uma ininterrupta tradição apostólica como devendo ser observados, não só para evitar erros mas também para transmitir a fé na sua integridade, porque a norma de oração da Igreja corresponde à sua norma de fé»[1].

Entre os Pontífices que tiveram uma tal indispensável preocupação ressalta o nome de São Gregório Magno, que se esforçou para que aos novos povos da Europa se transmitisse tanto a fé católica como os tesouros do culto e da cultura acumulados pelos romanos nos séculos precedentes. Mandou que fosse definida e conservada a forma da Liturgia sagrada, relativa quer ao Sacrifício da Missa quer ao Ofício Divino, no modo como se celebrava em Roma. Promoveu com a maior solicitude a propagação dos monges e monjas que, agindo segundo a Regra de São Bento, por toda a parte juntamente com o anúncio do Evangelho ilustraram com a sua vida esta máxima salutar da Regra: «Que nada seja anteposto à obra de Deus» (cap. 43). Desta forma, a Liturgia sagrada, celebrada segundo o uso romano, enriqueceu não somente a fé e a piedade, mas também a cultura de muitas populações. Consta, efectivamente, que a liturgia latina da Igreja, nas suas várias formas, em todos os séculos da era cristã impulsionou na vida espiritual numerosos Santos e reforçou muitos povos na virtude da religião e fecundou a sua piedade.

Muitos outros Pontífices Romanos, no decorrer dos séculos, mostraram particular solicitude em assegurar que a Liturgia sagrada desempenhasse de forma mais eficaz esta função: entre eles destaca-se São Pio V, que, animado por grande zelo pastoral, na sequência da exortação do Concílio de Trento, renovou todo o culto da Igreja, preocupou-se pela edição dos livros litúrgicos corrigidos e «renovados segundo a norma dos Padres» e destinou-os para uso da Igreja latina.

Entre os livros litúrgicos do Rito Romano sobressai o Missal Romano, que se desenvolveu na cidade de Roma e, com o decorrer dos séculos, pouco a pouco tomou formas que têm grande semelhança com a vigente nos tempos mais recentes.

«Os Romanos Pontífices, no decorrer dos séculos seguintes, procuraram alcançar este mesmo objectivo assegurando a actualização e definindo os ritos e os livros litúrgicos; e depois, a partir dos inícios deste século, empreendendo uma reforma mais geral».[2]Assim agiram os nossos Predecessores Clemente VIII, Urbano VIII, São Pio X,[3]Bento XV, Pio XII e o Beato João XXIII.

Nos tempos mais recentes, o Concílio Vaticano II expressou o desejo de que a devida e respeitosa reverência ao culto divino se renovasse outra vez e se adaptasse às necessidades da nossa época. Movido por este desejo, o nosso Predecessor, o Sumo PontíficePaulo VI, em 1970 aprovou para a Igreja latina os livros litúrgicos reformados e, em parte, renovados. Estes, traduzidos nas diversas línguas do mundo, foram acolhidos de bom grado pelos Bispos, sacerdotes e fiéis. João Paulo II reviu a terceira edição típica do Missal Romano. Assim agiram os Pontífices Romanos «para que esta espécie de edifício litúrgico (…) aparecesse de novo esplendorosa por dignidade e harmonia».[4]

Em algumas regiões, contudo, não poucos fiéis estavam apegados, e continuam a estar, com grande amor e afecto às formas litúrgicas anteriores, que tinham impregnado tão profundamente a sua cultura e o seu espírito que o Sumo Pontífice João Paulo II, movido pela solicitude pastoral para com estes fiéis, no ano de 1984, com o indulto especial «Quattuor abhinc annos» emitido pela Congregação para o Culto Divino, concedeu a faculdade de se usar o Missal Romano editado em 1962 pelo Beato  João XXIII; mais tarde, no ano de 1988, ainda João Paulo II, com a Carta Apostólica «Ecclesia Dei», dada sob a forma de Motu proprio, exortou os Bispos a fazerem, ampla e generosamente, uso desta faculdade em favor de todos os fiéis que o solicitassem.

Na sequência das súplicas insistentes destes fiéis, objecto já de longa deliberação pelo nosso Predecessor João Paulo II, e depois de nós mesmos termos auscultado os Padres Cardeais no Consistório realizado em 22 de Março de 2006, tendo reflectido profundamente sobre todos os aspectos da questão, após termos invocado o Espírito Santo e confiando na ajuda de Deus, com a presente Carta Apostólica, estabelecemos o seguinte:

Art. 1. O Missal Romano promulgado por  Paulo VI é a expressão ordinária da «lex orandi» («norma de oração») da Igreja Católica de rito latino. Contudo o Missal Romano promulgado por São Pio V e reeditado pelo Beato  João XXIII deve ser considerado como expressão extraordinária da mesma «lex orandi» e deve gozar da devida honra pelo seu uso venerável e antigo. Estas duas expressões da «lex orandi» da Igreja não levarão de forma alguma a uma divisão na «lex credendi» («norma de fé») da Igreja; com efeito, são dois usos do único rito romano.

Por isso é lícito celebrar o Sacrifício da Missa segundo a edição típica do Missal Romano, promulgada pelo Beato  João XXIII em 1962 e nunca ab-rogada, como forma extraordinária da Liturgia da Igreja. As condições para o uso deste Missal, estabelecidas pelos documentos anteriores «Quattuor abhinc annos» e «Ecclesia Dei», são substituídas como segue:

Art. 2.  Nas Missas celebradas sem o povo, todo o sacerdote católico de rito latino, tanto secular como religioso, pode utilizar seja o Missal Romano editado pelo Beato Papa  João XXIII em 1962 seja o Missal Romano promulgado pelo Papa  Paulo VI em 1970, e fazê-lo todos os dias à excepção do Tríduo Pascal. Para tal celebração segundo um ou outro Missal, o sacerdote não necessita de qualquer autorização da Sé Apostólica nem do seu Ordinário.

Art. 3.  As comunidades dos Institutos de Vida Consagrada e das Sociedades de Vida Apostólica, tanto de direito pontifício como diocesano, que desejem celebrar a Santa Missa segundo a edição do Missal Romano promulgado em 1962 na celebração conventual ou «comunitária» que tenha lugar em seus oratórios próprios, podem fazê-lo. Se uma comunidade individualmente ou todo um Instituto ou Sociedade quiser realizar, de modo frequente, habitual ou permanente, tais celebrações, o caso deve ser decidido pelos Superiores Maiores, segundo as normas do direito e as regras e os estatutos particulares.

Art. 4.  Nas celebrações da Santa Missa, referidas no art. 2, podem ser admitidos – observando as normas do direito – também os fiéis que o solicitem por sua espontânea vontade.

Art. 5.

§1.  Nas paróquias, onde houver um grupo estável de fiéis aderentes à precedente tradição litúrgica, o pároco acolha de bom grado as suas solicitações de terem a celebração da Santa Missa segundo o rito do Missal Romano editado em 1962. Providencie para que o bem destes fiéis se harmonize com o cuidado pastoral ordinário da paróquia, sob a orientação do Bispo, como previsto no cân. 392, evitando a discórdia e favorecendo a unidade de toda a Igreja.

§2.  A celebração segundo o Missal do BeatoJoão XXIII pode realizar-se nos dias feriais; nos domingos e dias santos, também é possível uma celebração desse género.

§3.  Para os fiéis e sacerdotes que o solicitem, o pároco permita as celebrações nesta forma extraordinária também em circunstâncias particulares como matrimónios, funerais ou celebrações ocasionais como, por exemplo, peregrinações.

§4.  Os sacerdotes que utilizem o Missal do BeatoJoão XXIII devem ser idóneos e não estar juridicamente impedidos.

§5.  Nas igrejas que não são paroquiais nem conventuais, é competência do Reitor da Igreja conceder a licença acima citada.

Art. 6. Nas missas celebradas com o povo segundo o Missal do Beato  João XXIII, as leituras podem ser proclamadas também em língua vernácula, utilizando as edições reconhecidas pela Sé Apostólica.

Art. 7. Se um grupo de fiéis leigos, incluídos entre os mencionados no art. 5-§ 1, não vir satisfeitas as suas solicitações por parte do pároco, informe o Bispo diocesano. Pede-se vivamente ao Bispo que satisfaça o desejo deles. Se não puder dar provisão para tal celebração, refira-se o caso à Pontifícia Comissão «Ecclesia Dei».

Art. 8.  O Bispo, que deseja corresponder a tais solicitações de fiéis leigos mas, por várias causas, está impedido de o fazer, pode referir a questão à Comissão «Ecclesia Dei» para que lhe dê conselho e ajuda.

Art. 9.

§1.  O pároco, depois de ter considerado tudo atentamente, pode também conceder a licença para se usar o ritual mais antigo na administração dos sacramentos do Baptismo, do Matrimónio, da Penitência e da Unção dos Enfermos, se o bem das almas assim o aconselhar.

§2. Aos Ordinários, é concedida a faculdade de celebrar o sacramento da Confirmação usando o anterior Pontifical Romano, se o bem das almas assim o aconselhar.

§3. Aos clérigos constituídos «in sacris», é lícito usar o Breviário Romano promulgado pelo BeatoJoão XXIII em 1962.

Art. 10. O Ordinário local, se o considerar oportuno, poderá erigir uma paróquia pessoal, de acordo com o cân. 518, para as celebrações segundo a forma mais antiga do Rito Romano, ou nomear um capelão, observadas as normas do direito.

Art. 11. A Pontifícia Comissão «Ecclesia Dei», erigida por João Paulo II em 1988,[5] continua a exercer a sua função. A referida Comissão terá a forma, as funções e as normas que o Romano Pontífice lhe quiser atribuir.

Art. 12. A mesma Comissão, para além das faculdades de que já goza, exercerá a autoridade da Santa Sé vigiando sobre a observância e a aplicação destas disposições.

Tudo aquilo que foi estabelecido por Nós com esta Carta Apostólica dada sob a forma de Motu proprio, ordenamos que se considere como «estabelecido e decretado» e se observe a partir do dia 14 de Setembro deste ano, festa da Exaltação da Santa Cruz, não obstante tudo o que possa haver em contrário.

Dado em Roma, junto de São Pedro, a 7 de Julho de 2007, terceiro ano do nosso Pontificado.

 

BENEDICTUS PP. XVI

 

[1] Ordenamento Geral do Missal Romano (Terceira edição 2002), 397.

[2] João Paulo II, Carta apostólica Vicesimus quintus annus (04/12/1988), 3: AAS 81(1989), 899.

[3] Ibid.

[4] São Pio X, Carta apostólica dada sob a forma de Motu proprio Abhinc duos annos (23/10/1913): AAS 5 (1913), 449-450; cf. João Paulo II, Carta apostólica Vicesimus quintus annus (04/12/1988), 3: AAS 81 (1989), 899.

[5] Cf. João Paulo II, Carta apostólica dada sob a forma de Motu proprio Ecclesia Dei (02/07/1988), 6: AAS 80 (1988), 1498.

 


CARTA DO SANTO PADRE
BENTO XVI
AOS BISPOS QUE ACOMPANHA O “MOTU PROPRIO”
SUMMORUM PONTIFICUM
SOBRE O USO DA LITURGIA ROMANA
ANTERIOR À REFORMA REALIZADA EM 1970

Amados Irmãos no Episcopado,

        Com grande confiança e esperança, coloco nas vossas mãos de Pastores o texto duma nova Carta Apostólica «Motu Proprio data» sobre o uso da liturgia romana anterior à reforma realizada em 1970. O documento é fruto de longas reflexões, múltiplas consultas e de oração.

        Notícias e juízos elaborados sem suficiente informação criaram não pouca confusão. Há reacções muito divergentes entre si que vão de uma entusiasta aceitação até uma férrea oposição a respeito de um projecto cujo conteúdo na realidade não era conhecido.

        Contrapunham-se de forma mais directa a este documento dois temores, dos quais me quero ocupar um pouco mais detalhadamente nesta carta.

        Em primeiro lugar, há o temor de que seja aqui afectada a autoridade do Concílio Vaticano II e que uma das suas decisões essenciais – a reforma litúrgica – seja posta em dúvida. Tal receio não tem fundamento. A este respeito, é preciso antes de mais afirmar que o Missal publicado por Paulo VI, e reeditado em duas sucessivas edições por João Paulo II, obviamente é e permanece a Forma normal – a Forma ordinária – da Liturgia Eucarística. A última versão do Missale Romanum, anterior ao Concílio, que foi publicada sob a autoridade do Papa João XXIII em 1962 e utilizada durante o Concílio, poderá, por sua vez, ser usada como Forma extraordinária da Celebração Litúrgica. Não é apropriado falar destas duas versões do Missal Romano como se fossem «dois ritos». Trata-se, antes, de um duplo uso do único e mesmo Rito.

        Quanto ao uso do Missal de 1962, como Forma extraordinária da Liturgia da Missa, quero chamar a atenção para o facto de que este Missal nunca foi juridicamente ab-rogado e, consequentemente, em princípio sempre continuou permitido. Na altura da introdução do novo Missal, não pareceu necessário emanar normas próprias para um possível uso do Missal anterior. Supôs-se, provavelmente, que se trataria de poucos casos individuais que seriam resolvidos um a um na sua situação concreta. Bem depressa, porém, se constatou que não poucos continuavam fortemente ligados a este uso do Rito Romano que, desde a infância, se lhes tornara familiar. Isto aconteceu sobretudo em países onde o movimento litúrgico tinha dado a muitas pessoas uma formação litúrgica notável e uma profunda e íntima familiaridade com a Forma anterior da Celebração Litúrgica. Todos sabemos que, no movimento guiado pelo Arcebispo Lefebvre, a fidelidade ao Missal antigo apareceu como um sinal distintivo externo; mas as razões da divisão, que então nascia, encontravam-se a maior profundidade. Muitas pessoas, que aceitavam claramente o carácter vinculante do Concílio Vaticano II e que eram fiéis ao Papa e aos Bispos, desejavam contudo reaver também a forma, que lhes era cara, da sagrada Liturgia; isto sucedeu antes de mais porque, em muitos lugares, se celebrava não se atendo de maneira fiel às prescrições do novo Missal, antes consideravam-se como que autorizados ou até obrigados à criatividade, o que levou frequentemente a deformações da Liturgia no limite do suportável. Falo por experiência, porque também eu vivi aquele período com todas as suas expectativas e confusões. E vi como foram profundamente feridas, pelas deformações arbitrárias da Liturgia, pessoas que estavam totalmente radicadas na fé da Igreja.

        Por isso, o Papa João Paulo II viu-se obrigado a estabelecer, através do Motu Proprio «Ecclesia Dei» de 2 de Julho de 1988, um quadro normativo para o uso do Missal de 1962, que no entanto não contém prescrições detalhadas, mas fazia apelo, de forma mais geral, à generosidade dos Bispos para com as «justas aspirações» dos fiéis que requeriam este uso do Rito Romano. Naquela altura, o Papa queria assim ajudar sobretudo a Fraternidade São Pio X a encontrar de novo a plena unidade com o Sucessor de Pedro, procurando curar uma ferida que se ia fazendo sentir sempre mais dolorosamente. Até agora, infelizmente, esta reconciliação não se conseguiu; todavia várias comunidades utilizaram com gratidão as possibilidades deste Motu Proprio. Continuava aberta, porém, a difícil questão do uso do Missal de 1962 fora destes grupos, para os quais faltavam precisas normas jurídicas, antes de mais porque, nestes casos, frequentemente os Bispos temiam que a autoridade do Concílio fosse posta em dúvida. Logo a seguir ao Concílio Vaticano II podia-se supor que o pedido do uso do Missal de 1962 se limitasse à geração mais idosa que tinha crescido com ele, mas entretanto vê-se claramente que também pessoas jovens descobrem esta forma litúrgica, sentem-se atraídas por ela e nela encontram uma forma, que lhes resulta particularmente apropriada, de encontro com o Mistério da Santíssima Eucaristia. Surgiu assim a necessidade duma regulamentação jurídica mais clara, que, no tempo do Motu Proprio de 1988, não era previsível; estas Normas pretendem também libertar os Bispos do dever de avaliar sempre de novo como hão-de responder às diversas situações.

        Em segundo lugar, nas discussões à volta do esperado Motu Proprio, manifestou-se o temor de que uma possibilidade mais ampla do uso do Missal de 1962 levasse a desordens ou até a divisões nas comunidades paroquiais. Também este receio não me parece realmente fundado. O uso do Missal antigo pressupõe um certo grau de formação litúrgica e o conhecimento da língua latina; e quer uma quer outro não é muito frequente encontrá-los. Por estes pressupostos concretos, já se vê claramente que o novo Missal permanecerá, certamente, a Forma ordinária do Rito Romano, não só porque o diz a normativa jurídica, mas também por causa da situação real em que se encontram as comunidades de fiéis.

        É verdade que não faltam exageros e algumas vezes aspectos sociais indevidamente vinculados com a atitude de fiéis ligados à antiga tradição litúrgica latina. A vossa caridade e prudência pastoral hão-de ser estímulo e guia para um aperfeiçoamento. Aliás, as duas Formas do uso do Rito Romano podem  enriquecer-se mutuamente: no Missal antigo poderão e deverão ser inseridos novos santos e alguns dos novos prefácios. A Comissão «Ecclesia Dei», em contacto com os diversos entes devotados ao usus antiquior, estudará as possibilidades práticas de o fazer. E, na celebração da Missa segundo o Missal de Paulo VI, poder-se-á manifestar, de maneira mais intensa do que frequentemente tem acontecido até agora, aquela sacralidade que atrai muitos para o uso antigo. A garantia mais segura que há de o Missal de Paulo VI poder unir as comunidades paroquiais e ser amado por elas é celebrar com grande reverência em conformidade com as rubricas; isto torna visível a riqueza espiritual e a profundidade teológica deste Missal.

        Cheguei assim à razão positiva que me motivou para actualizar através deste Motu Proprio o de 1988. Trata-se de chegar a uma reconciliação interna no seio da Igreja. Olhando para o passado, para as divisões que no decurso dos séculos dilaceraram o Corpo de Cristo, tem-se continuamente a impressão de que, em momentos críticos quando a divisão estava a nascer, não fora feito o suficiente por parte dos responsáveis da Igreja para manter ou reconquistar a reconciliação e a unidade; fica-se com a impressão de que as omissões na Igreja tenham a sua parte de culpa no facto de tais divisões se terem podido consolidar. Esta sensação do passado impõe-nos hoje uma obrigação: realizar todos os esforços para que todos aqueles que nutrem verdadeiramente o desejo da unidade tenham possibilidades de permanecer nesta unidade ou de encontrá-la de novo. Vem-me à mente uma frase da segunda carta aos Coríntios, quando Paulo escreve: «Falámo-vos com toda a liberdade, ó Coríntios. O nosso coração abriu-se plenamente. Há nele muito lugar para vós, enquanto no vosso não há lugar para nós (…): pagai-nos na mesma moeda, abri também vós largamente o vosso coração» (2 Cor 6, 11-13). É certo que Paulo fala noutro contexto, mas o seu convite pode e deve tocar-nos também a nós, precisamente neste tema. Abramos generosamente o nosso coração e deixemos entrar tudo aquilo a que a própria fé dá espaço.

        Não existe qualquer contradição entre uma edição e outra do Missale Romanum. Na história da Liturgia, há crescimento e progresso, mas nenhuma ruptura. Aquilo que para as gerações anteriores era sagrado, permanece sagrado e grande também para nós, e não pode ser de improviso totalmente proibido ou mesmo prejudicial. Faz-nos bem a todos conservar as riquezas que foram crescendo na fé e na oração da Igreja, dando-lhes o justo lugar. Obviamente, para viver a plena comunhão, também os sacerdotes das Comunidades aderentes ao uso antigo não podem, em linha de princípio, excluir a celebração segundo os novos livros. De facto, não seria coerente com o reconhecimento do valor e da santidade do novo rito a exclusão total do mesmo.

        Em conclusão, amados Irmãos, tenho a peito sublinhar que as novas normas não diminuem de modo algum a vossa autoridade e responsabilidade sobre a liturgia nem sobre a pastoral dos vossos fiéis. Com efeito, cada Bispo é o moderador da liturgia na própria diocese (cf. Sacrosanctum Concilium, n.º 22: «Sacræ Liturgiæ moderatio ab Ecclesiæ auctoritate unice pendet quæ quidem est apud Apostolicam Sedem et, ad normam iuris, apud Episcopum»).

        Por conseguinte, nada se tira à autoridade do Bispo, cuja tarefa, em todo o caso, continuará a ser a de vigiar para que tudo se desenrole em paz e serenidade. Se por hipótese surgisse qualquer problema que o pároco não pudesse resolver, sempre poderia o Ordinário local intervir, mas em plena harmonia com quanto estabelecido pelas novas normas do Motu Propio.

        Além disso, convido-vos, amados Irmãos, a elaborar para a Santa Sé um relatório sobre as vossas experiências, três anos depois da entrada em vigor deste Motu Proprio. Se verdadeiramente tiverem surgido sérias dificuldades, poder-se-á procurar meios para lhes dar remédio.

        Amados Irmãos, com ânimo grato e confiante, entrego ao vosso coração de Pastores estas páginas e as normas do Motu Proprio. Tenhamos sempre presente as palavras dirigidas pelo Apóstolo Paulo aos anciãos de Éfeso: «Tomai cuidado convosco e com todo o rebanho, do qual o Espírito Santo vos constituiu vigilantes para apascentardes a Igreja de Deus, que Ele adquiriu com o sangue do seu próprio Filho» (Act 20, 28).

        Confio à poderosa intercessão de Maria, Mãe da Igreja, estas novas normas e de coração concedo a minha Bênção Apostólica a vós, amados Irmãos, aos párocos das vossas dioceses, e a todos os sacerdotes, vossos colaboradores, como também a todos os vossos fiéis.

Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 7 de Julho de 2007.

BENEDICTUS PP. XVI

 

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