O Defeito Dominante
Non pugnabitis nisi contra regem Israel solum: Não pelejareis contra algum pequeno ou grande, mas somente contra o rei de Israel – III Reis XXII. 31
Tal foi a ordem dada pelo rei da Síria aos seus soldados, quando estavam na iminência de atacar o exército de Acabe, rei de Israel. Dirigi todas as vossas flechas contra o rei, disse a eles; é ele quem devo conquistar. O rei foi morto, de fato, e todo o seu exército se dispersou. É por isso, portanto, que devemos agir contra nosso defeito dominante, contra nossa paixão predominante; devemos concentrar todos os nossos esforços contra ele.
Quem deseja trilhar o caminho das virtudes logo encontra um grande obstáculo neste inimigo interior; mas se a paixão predominante é um obstáculo, devemos também dizer que um meio seguro para se avançar nas virtudes é combater e conquistar esta falta.
Quando se trata de guerra, a vitória depende menos do número e da coragem dos soldados do que da habilidade do comandante e de sua estratégia de guerra; de certa forma, o meio mais eficaz de se conquistar os vícios e faltas é a aplicação fiel de um bom método. Agora, o melhor método, que foi seguido por todos os santos, é lutar com generosidade contra o defeito dominante, contra a paixão predominante.
O que devemos entender por defeito dominante? Como Podemos triunfar sobre ele?
I. O que é uma paixão predominante? Entendemos geralmente por paixão predominante aquela, dentre as nossas más inclinações, que mais impera sobre nós. Carregamos em nosso coração os germes de todas as paixões, mas geralmente há uma que nos governa e que é a raiz de todas as nossas faltas. Em determinada pessoa é a ira. Ela se irrita na menor contradição; se alguma coisa a desagrada, irrompe em palavras agressivas, epítetos injuriosos, ameaças… Esta poderia ter sido a paixão predominante de S. Francisco de Sales, se não tivesse controlado a vivacidade de seu temperamento; entretanto, graças aos seus generosos esforços e à assistência da Santíssima Virgem, de quem era devotado servo, conseguiu controlar este excesso com tal rapidez que adquiriu exemplar mansidão e inalterada serenidade de alma.
Em outro, pode ser o orgulho, que toma milhares de formas diversas. Algumas vezes procura ser elevado e distinguido acima dos outros; aspira às honras e trabalhos gloriosos; novamente, se encontra-se ofuscado, nutre em seu coração inimizades e inveja secretas, que o devoram; se é esquecido ou caso outros sejam preferidos no seu lugar, passa a nutrir raiva; o menor dos elogios o inflama e o deleita a um nível que beira o ridículo, mas que gera compaixão. Esta era uma paixão da qual S. Francisco Xavier se tornaria vítima, se Santo Inácio não o tivesse ensinado a torná-la em algo mais nobre. Dócil aos ensinamentos de seu santo amigo, ele mudou sua ambição em zelo e se tornou o glorioso apóstolo das Índias e do Japão.
Em um terceiro pode ser uma profunda preguiça e ociosidade que o mantém mergulhado em uma letargia na qual fica incapacitado de realizar qualquer coisa, fazendo com que desperdice e torne estéril o precioso tempo de sua vida. Dias, semanas passam sem um avanço seu – sempre planejando, nunca executando; sempre começando, nunca realizando.
Quantas outras paixões não vemos, então, exercitando sua preponderante influência! Pode ser a loquacidade, um desordenado prazer em falar; uma malícia que continuamente ataca a reputação do próximo; uma inicial avareza sórdida que nega uma insignificante esmola aos pobres; uma pueril vaidade por causa de vantagens quaisquer, mesmo que das mais ordinárias; uma propensão para mentiras; uma preguiça que nos leva a qualquer coisa que nos possa deleitar o corpo e os sentidos. Estas podem ser todas reduzidas a duas paixões, as raízes de todas as outras: o orgulho, que leva tudo para si mesmo, e a sensualidade, que busca a própria satisfação em todas as coisas. Seja qual for das paixões que predominam em cada um, devemos saber que esta é nossa inimiga mais mortífera, e que se não quisermos nos tornar sua presa, devemos lutar contra ela até a morte.
Há quem diga que não tem qualquer um desses defeitos, logo se verá que sua falta predominante é o orgulho. Outro pode dizer que possui todos esses defeitos. Neste caso, deve empregar esforços para conhecer aquele defeito a que mais é suscetível, pois o combate aos vícios secundários é como o combate contra os sintomas da doença, sem efetivamente combater a doença, que é a fonte dos sintomas.
Como descobrir o defeito dominante?
Qual é a paixão predominante de cada pessoa? Eis os traços pelos quais podemos reconhecê-la: nosso defeito dominante é a maior fonte de pecados nos quais mais costumeiramente caímos; é o que produz aborrecimento e remorso em nossa alma; é a principal causa de nossas confissões; é a falta que mais estimamos e pela qual menos gostamos de ser reprovados ou admoestados; finalmente, é aquela falta que suspiramos em nosso coração, dizendo: se eu não tivesse esta infeliz propensão, seria uma pessoa diferente; se eu pudesse me livrar disso, todos os meus pecados desapareceriam com isso. Se estas indicações não são suficientes, deve-se perguntar ao padre confessor; ele irá dizer a falta predominante que deve ser combatida.
Como devemos combater o defeito dominante?
Como o nosso inimigo mais mortal, com ardor enérgico. Pois, deve-se marcar isto bem, se – há tremor ao pensar – alguém seja tão infeliz a ponto de se perder eternamente, será a sua paixão predominante que causará sua perdição. Ela é a brecha na citadela da sua alma; se a citadela é conquistada, será por causa desta brecha que o demônio irá entrar; assim como, se esta brecha for coberta, a citadela será mantida e se estará seguro acerca da sua vitória e salvação. O defeito dominante é o Golias que devemos subjugar; se ele for conquistado, todos os filisteus tomarão fuga; se não houver coragem ao combatê-lo – isto é, se alguém se deixar governar pela paixão predominante – todos os vícios entrarão em sua alma, seus pecados se multiplicarão, seus maus hábitos serão fortalecidos, cairá em trevas e indiferença: tristes consequências, das quais o resultado final será a impenitência e perdição.
Não devemos, portanto, combater inimigo tal como este? Não haveremos de atacá-lo resolutamente, determinar sua ruína, para que não seja a nossa, e dizer como o profeta: Perseguirei os meus inimigos, e apanhá-los-ei, e não voltarei atrás, até que sejam aniquilados. Eu lhes quebrarei as forças, e não poderão ter-se em pé; e cairão debaixo de meus pés. (Sl. XVII. 38, 39).
Um meio prático de se conseguir este triunfo é o exame particular, que consiste em se examinar diariamente diante de Deus, analisando como temos lutado contra nossa paixão predominante, quantas vezes caímos, quantas vezes a vencemos; depois de realizar este exame, devemos pedir perdão a Deus e tomar a resolução de lutar com mais ardor até o nosso próximo exame. Esta consideração diária de nós mesmos estimula a vigilância e atenção; somos nossos próprios guardas contra o defeito que devemos combater, se nos forçamos a evitar as faltas, nossos esforços são dos mais eficazes por estarem concentrados sobre um objeto apenas. Se, depois do exemplo do rei da Síria, que ordenou seus soldados a dirigirem todas as suas flechas contra Acabe, Rei de Israel, a alma empregar todas as suas forças dirigidas unicamente contra o rei dos seus vícios, haverá de triunfar sobre ele mais cedo ou mais tarde, não importa quão poderoso o defeito possa parecer.
Antes de tudo, devemos ter em vista o amor a Deus, empregando todos os meios lícitos para vencer o defeito dominante pela caridade: a caridade que ordena todas as coisas a Deus, lembrando-nos de que sem Deus nada podemos fazer1, sem a oração, os esforços serão em vão. Comecemos esta salutar luta com coragem; mantenhamos este combate com perseverança, sem nos esquecermos de invocar com filial devoção a intercessão da Virgem Santíssima; e, como todos os santos, seremos vitoriosos.
Pe. F.X. Schouppe, S.J., em Sodality Director’s Manual (1882)
Tradução, adaptação e ampliação por um congregado