Quanto mais entre os alunos estiver, tanto mais autêntico professor voltarei

por um professor Congregado Mariano

I

Lembro-me de que numa dessas sextas-feiras nem tão ensolaradas de Junho, depois que houvera interagido suficientemente com o computador e alguns colegas de empresa, estava de algum modo cansado e sentia a necessidade de um pouco de oxigênio e contato com o mundo real. Minha impressão era a de que a alma estava cansada. E é claro que o fato de o café da empresa ser péssimo também teve sua parcela de contribuição. Então resolvi gozar do benefício de concluir o expediente a partir de casa. 

Recolhidos os pertences e equipamentos, despedi-me dos circundantes e tomei o caminho até minha casa. Enquanto era já quase possível sentir o aroma do café de casa, eu passava pelo colégio onde dou aulas. Resolvi alterar o destino, entrar e trabalhar de lá. A razão para esta decisão é mais ou menos aristotélica e eu tentarei explicar em seguida. 

Esta é apenas uma convicção pessoal minha, mas uma escola católica digna deste nome – e o colégio onde dou aula é uma digna escola católica – certamente seria chamada “pólis” por Aristóteles, no sentido do Livro I de sua Política. Explico-me: a escola católica pode ser entendida como uma comunidade que segue em direção ao bem que, no seu caso, é a boa formação moral, intelectual e espiritual de seus alunos. E neste sentido é que se orientam as ações de seus membros: os alunos, os professores e demais colaboradores. Mas a escola, na verdade, é uma comunidade maior, formada a partir de outras comunidades menores. De fato, cada uma das turmas de alunos é como uma aldeia, regida pelos seus respectivos professores, tendente ao seu próprio fim particular, de seus pequenos membros, cheios de vida e de coisas para aprender. O bem da escola depende da consecução do bem de suas turmas. 

E assim como a pólis é a comunidade suprema formada pelas aldeias, assim também é a escola católica em relação às suas turmas. E o nosso Filósofo mostra como é conforme à natureza humana esta ordem social, partindo da comunidade formada por homem e mulher, que se complementam em ajuda mútua nas necessidade do dia a dia da família; passando pelas aldeias, nas quais as famílias se ajudam nas necessidades mais esporádicas; até chegar finalmente à pólis, como perfeição e plenitude das outras comunidades. 

É verdade que a escola não é a plenitude da comunidade familiar, como o é propriamente o Estado (que é uma sociedade perfeita, segundo a carta magna dos Papas sobre a educação, Divini Illius Magistri). Mas é verdade que, enquanto se mantém fiel aos princípios e fins da educação católica estabelecidos pela Igreja, podemos considerá-la a suprema comunidade para a educação dos jovens. Desse modo de ver, não parece tão desconcertante chamar “pólis” a uma boa escola católica, como também não parece tão ousado afirmar que nada é mais conforme à natureza humana (e a Aristóteles) do que ser um professor católico, um autêntico animal político. E por esta razão é que decidi terminar meu expediente na escola.

Já no colégio, procurando um lugar para repousar a pesada mochila – mas sempre seguindo aquele aristotelismo despretencioso – considerei mais razoável trabalhar da copa, embora sabendo haver uma sala dos professores no recinto. Ora, na copa não há nenhuma tácita norma de silêncio, porque tendo o refeitório anexo a si, trata-se de um local de onde não se pode esperar o silêncio. Cansado de silêncio, precisava de um pouco de barulho. E utilizar um notebook sobre uma larga mesa de refeitório – convenhamos – é bem mais confortável do que fazê-lo sobre a mesa de uma baia. Ali, pois, estabeleci a minha estação de trabalho.

 

“Dom Bosco que confessa”, fotografia de Francesco Serra. Turim, 1861 – S. João Bosco ouve a confissão de Paulo Álbera, seu futuro 2º sucessor na Congregação.

II

Estava próxima a hora do intervalo da tarde e dois ou três professores já estavam por ali: ou aproveitando o tempo livre entre as aulas para um cafezinho; ou preparando-se para brincar com os alunos dali a poucos minutos. A conversa entre mestres posta em dia – e o nosso assunto predileto eu não vou dizer, mas os professores hão de me entender – e os equipamentos a postos, iniciei as tarefas e… Logo em seguida os alunos chegaram, quase que encobrindo o badalares do sino com gritos de alegria, e alguns se juntaram à nossa mesa para tomarem suas refeições e participarem das nossas conversas.

Meninos e meninas brincam e lancham em horários distintos. Enquanto eles estavam no refeitório, elas jogavam no pátio, e depois se alternavam. Naquela tarde, porém, e naquela específica mesa de refeitório, alguns meninos e meninas, de variadas idades e turmas, ainda se encontravam ali conosco, conversando com alguns de seus professores. Faziam brincadeiras sobre o fato de que as crianças esperam dos professores que saibam de tudo; discutiam sobre o caráter de cada um, com as virtudes e os vícios próprios, outras amenidades… Até que o sino lembrou-os de retornar às atividades escolares. Todos saíram com um agradável sorriso e a satisfação de ter estado um breve tempo entre amigos. 

Então recordei que a Imitação, no Livro I, e Capítulo 20 aplica a frase de Sêneca “sempre que estive entre os homens, menos homem voltei” (Epístola VII) àqueles que falam demais. Não é minha intenção discutir os limites do estoicismo ou da devotio moderna por enquanto, mas como um filho – indigno filho, ele bem o sabe! – de São João Bosco, parece-me que para os professores católicos a verdade é bem o oposto: “sempre que estiver entre seus alunos, mais homem, mais conforme à sua natureza o professor voltará”. E de fato, Arístoteles afirma que o homem que fosse afastado da pólis em decorrência de sua natureza particular ou seria inferior ou muito poderoso. E Santo Tomás explica no Comentário à Política que:

“Isto ou será algo nefasto, por ocorrer por causa de uma corrupção da natureza humana, ou este homem será alguém superior aos demais homens, na medida em que possui uma natureza mais perfeita que os demais homens em geral, de tal modo que possa bastar a si próprio sem a sociedade humana, assim como ocorreu com João Batista ou com Santo Antão o eremita” (I, 5).

Ora, sabendo que estou bem distante de São João Batista ou Santo Antão, e querendo evitar adicionais prejuízos à minha já prejudicada natureza, considero realmente que a convivência com os alunos é parte essencial do apostolado da educação e por isso mesmo um dos mais frequentes e ardentes conselhos de Dom Bosco. E ela não faz bem apenas aos alunos, dando-lhes ocasião de receberem bons princípios, divertimento sadio, conselhos prudentes dos mais velhos, que já experimentaram os mesmos desafios, dificuldades, dúvidas… Faz muito bem também aos professores: “benefacit animæ suæ vir misericors” (Provérbios XI,17). 

O homem que pratica a caridade faz bem à sua alma! Se por um lado é verdade que mais os alunos dependem dos professores para a consecução do seu fim do que o inverso, também é verdade que educar faz um enorme bem para o professor. Deus é o sumo bem e tudo que Ele faz é bom. Tudo que fazemos por Deus comunica o bem. E tão generoso é Deus, e tão bom pagador, que nos faz o bem até mesmo em participarmos das suas obras.  

É preciso admitir que durante aquele tempinho empregado com os alunos e os demais professores não sobrou muita atenção de minha parte para os documentos a serem redigidos, os arquivos a serem preparados e as mensagens a serem respondidas. Mas nem por isso fora um tempo desperdiçado: o cansaço sentido pela excessiva exposição ao que é virtual fora por este meio suavizado: pelo contato com o real, com a vida desses membros da mesma “pólis”. Agora – quer dizer, naquela hora – com a alma saciada, poderia retornar à casa.

 

Dom Bosco alcançou o ideal de que sentia falta quando seminarista: longe de temer os professores, abaixando a cabeça para desviar-lhes o olhar, os meninos de seu Oratório acorriam ao seu encontro, quando o viam, e se alegravam em passar com ele um tempo em boas conversas e brincadeiras.

III

Concluindo esta longa crônica, me achei pensando que, se por um lado é clássica a formulação de Santo Tomás segundo a qual “o bem é difusivo de si” (Suma I, Q. 5, a. 4), o  bem é de si mesmo também atrativo! E esta verdade se depreende da explicação do mesmo Santo Tomás, ilustrando como o bem exerce a função de fim, atraindo a vontade “para a realidade”. 

Ao ler a vida de São João Bosco é exatamente esta a ideia que vem à mente: ao sair ao pátio, logo o santo educador era cercado de meninos que encontravam a felicidade em sua presença; ao escrever para seus discípulos, as ternas palavras empregadas indicavam o desejo de proximidade que expressava o seu coração de pai espiritual; ao dividir com eles seus “sonhos” no boa noite, nos quais muitas vezes ao Santo eram revelados os estados de alma de seus meninos, era quase explícita a vontade de que lhe procurassem para que lhes pudesse aconselhar. O bem é de si mesmo atrativo.

Que São João Bosco, verdadeiro mestre da educação, torne cada dia mais atraídos os nossos corações de professores católicos pelos nossos alunos, os quais nos foram dados por Nossa Senhora como o campo para fazer o bem. Salve Maria!

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