A Festa do Natal nas meditações de Santo Afonso de Ligório
Das meditações de Santo Afonso Maria de Ligório da Novena de Natal1, é possível apresentar verdades necessárias ao entendimento de tão grande Festa, de onde foi retirada boa parte da reflexão do presente texto.
As citadas meditações podem ser mensuradas didaticamente em dois grupos. O primeiro, incluso nas meditações do primeiro ao quinto dia, relaciona-se à insistência do Santo Doutor acerca do sofrimento de Cristo desde a encarnação no seio da Virgem Maria, enquanto que o segundo, das meditações do sexto ao nono dia, alude ao sofrimento e gratidão vivenciados pela Virgem e São José com a chegada de Jesus Menino, em face da ingratidão dos homens.
Nos primeiros textos da Novena, Santo Afonso considera quão valorosa é a vinda do Redentor, doado por Deus como luz e vida das nações, para alcançar a salvação do mundo, diante do grande afeto que nos teve o Pai Eterno. Contudo, não bastasse o nível extramente baixo no qual Deus havia se colocado, revestido da carne humana, revelou Deus Pai ao Seu Filho Unigênito que este deveria sofrer extrema pobreza, desprezos, dores e angústias, de modo a dar o próprio sangue a fim de livrar os homens da morte eterna.
Portanto, a partir do primeiro instante da sua Encarnação, Nosso Senhor Jesus Cristo se deu todo ao homem, abraçando com alegria todas as dores e ignomínias que sofreria na terra, até o ápice do sacrifício da Cruz. Santo Afonso reforça ao dizer que o Divino Coração não teve um instante livre de padecimento. Os tormentos eram tantos que não foram superados por quaisquer suplícios que muitos dos melhores santos da Igreja tenham vivido.
Tudo isto foi realizado a fim de sanar a contenda existente entre a Verdade e a Justiça contra a Misericórdia e Paz divinas, como menciona brilhantemente São Bernardo de Claraval2. Enquanto que as primeiras reverberavam o padecimento dos homens pela injúria infinita cometida contra Deus, as outras avivavam o perdão por ser o Todo-poderoso infinitamente bom e amável. Ora, de maneira a não ferir quaisquer uma dessas potências, fez-se necessário que uma Pessoa Divina pagasse o preço do resgate humano, ou seja, que Deus, cuja dignidade é infinita, se encarnasse em forma humana para que um homem sanasse o erro do primeiro de sua raça.
Assim o fez enviando o Santo Anjo Gabriel a Sua Filha bem-amada, esposa de São José, a mais cara dentre todas as criaturas, mediante a qual foi decretada a salvação da humanidade, para apagar da memória de Deus a injúria cometida pelos homens.
Apresenta-nos ainda o Santo Bispo que a Virgem Santíssima desejava ardentemente o nascimento de Seu Filho, desejo este que tornava frios os clamores dos Patriarcas e Profetas do Antigo Testamento. Aquela cujo Fiat possibilitou a infusão do Filho de Deus em seu ventre, amava-O tanto que desejava vê-lo tão logo, pois conferia-lhe um terníssimo afeto, ao mesmo tempo que, conhecendo Sua missão divina, tinha um ardente amor pela humanidade.
Nosso Senhor, apesar dos opróbrios futuros, assim também o queria, de modo a realizar o mais breve a obra da Redenção do Mundo, conforme a vontade de Seu Pai. Porém, a fim de nos mostrar bons ensinamentos desde logo, resolveu nascer no tempo comum como os outros mortais, em ato de recolhimento e preparação para o grande momento de Sua vinda. São Boaventura3comenta que Nosso Senhor, no ventre de Sua Mãe, durante os nove meses esperou o tempo devido paciente e benignamente, compassivo e reduzido a um abjeto estado de humilhação por nós.
Assim, devemos nós nos prepararmos para a Vinda do Filho do Deus Vivo, com a devida oração e meditação das verdades de fé apresentadas pela Igreja sobre a Encarnação do Verbo e a Redenção da Humanidade.
Em meio ao segundo grupo de meditações da Novena de Natal, reflete-se o quão ingratos são os homens contra Aquele que se baixou dos céus, realizando tal labor em ato de obediência a Deus Pai4, para acender o fogo do divino amor. Tal ingratidão é presenciada ainda hoje pelos abismos de pecados cometidos, os quais O ofendem grandemente.
Os vilipêndios a Deus Menino começaram desde logo quando, diante do edito de César Augusto, São José precisou deslocar-se à cidade de Belém para alistar-se, por ser ele da Casa de David5. Sendo assim, mesmo aflito com sua decisão, São José levou junto consigo a sua amada esposa, haja vista a proximidade do parto, tendo ainda o apoio da Virgem Santíssima, a qual tinha total conhecimento da Profecia de Miqueias de que o Filho de Deus lá deveria nascer6.
Mesmo com o tortuoso caminho e a distância que tiveram que percorrer, os Pais de Jesus manifestavam atos de louvor, bençãos, agradecimentos, humildade e amor, pela bondade eterna do Verbo Divino que logo nasceria para a salvação dos homens. Servem ainda de exemplo para todas as famílias, pois juntos alegravam-se em sua pobreza, ele tendo o cuidado devido para com a esposa estimando-a com casto afeto, e ela honrando-o com modesta confiança e imaculado amor7.
Chegando à ditosa cidade, Maria Santíssima entendeu que se aproximava a hora de seu parto. Dessa forma, São José prontamente buscou um lugar apropriado para as acomodações da Virgem e a chegada do Santo Menino, porém diante da grande quantidade de pessoas hospedadas em toda a redondeza por causa do recenseamento, não lhes foi concedida vaga nem mesmo em hospedarias públicas. Foram, como se vê, desprezados e repulsados pelos homens, fazendo alusão aos corações ingratos que dão acolhida a criaturas miseráveis e não a Deus.
Sujeitaram-se, em vista disso, a instalarem-se em uma gruta, que servia de estábulo para animais, um lugar frio e úmido, por onde escorria água de todo lado. Nossa Senhora viu ali como o paço real onde queria nascer o Filho eterno de Deus.
Nasceu então o Rei do Céu sem corte, nem pompa, nem arcos de triunfo, mas, por outro lado, em um lugar tão pobre, posto numa vil manjedoura entre palhas e poucos paninhos, na companhia de um boi e um burro que souberam recepcioná-lo muito bem ao curvar-se diante do Príncipe da Paz, ao contrário dos homens daquela terra.
Quão felizes devem ser os corações que como a gruta, a manjedoura e os animais, mesmo diante de sua tamanha pobreza, recebem o Amabilíssimo Deus com verdadeiro amor! Não há orgulho, grandeza ou indiferença que resistam ao Senhor de poder infinito que baixou do céu para se doar inteiramente. Verdadeiramente, ensina o Santo de Claraval8, “Cristo apareceu desprovido de todo este poder, para somente assim reformar a imagem deformada e confortar as almas fracas. É pelo esplendor desta figura que superamos as trevas dos pecados e dos vícios, restaurando a sabedoria”.
Exultemos, portanto, a Deus que, apesar dos desprezos, dores e humilhações causadas por nossa ingratidão, entregou-se firmemente ao propósito de revelar-se em forma humana em prol da Redenção do Mundo, mostrando o quanto é manso e humilde de coração.
Exultemos de alegria! Nasceu para nós, pobres pecadores, Um Salvador! Venite, Adoremus Dominum!
- Tradução Livre da Obra “Life of Our Lord and Savior Jesus Christ” de São Boaventura (p. 38).
- Contemplação formulada por São Bernardo de Claraval, descrita na Meditação da Terça-feira da 1ª semana do Advento de Santo Afonso Maria de Ligório (Meditações para todos os dias e festas do Ano, Tomo I, p. 12-14) e na obra de São Boaventura “Life of Our Lord and Savior Jesus Christ” (p. 13-15)
- Tradução Livre da Obra “Life of Our Lord and Savior Jesus Christ” de São Boaventura (p. 38).
- Ibid., p. 27.
- Lucas 2, 1-5.
- Miqueias 5, 2.
- Tradução Livre da Obra “Life of Our Lord and Savior Jesus Christ” de São Boaventura (p. 37-38).
- “Opúsculo sobre o Livre-Arbítrio”, São Bernardo de Claraval, Ed. Ecclesiae, 2013, p. 69-70.