O Itinerário da Semana Santa na Liturgia Romana Tradicional – Quinta-feira Santa
Para acompanhar os artigos anteriores desta série:
II Domingo da Paixão ou de Ramos
Fontes da Liturgia: Introito, o mesmo da Missa da terça-feira santa; Epístola, I Coríntios, XI, 20-32; Gradual, Filipenses, II, 8-9; Evangelho, S. João, XIII, 1-15; Ofertório, Salmo CXVII, 16; Comunhão, S. João, XIII, 12-14.
O nome mais comum dado a este dia nos livros litúrgicos é Feria quinta in Coena Domini. Este nome lembra aos fieis de que durante a última ceia de Nosso Senhor com seus apóstolos o venerável Sacramento da Eucaristia foi instituído. A instituição da Sagrada Eucaristia é, em verdade, o evento predominante deste dia. Mas outras cerimônias também são realizadas neste dia, como seus vários nomes podem testemunhar. A Quinta-feira Santa também já foi chamada de dia de verdor, pois nessa época as folhas das árvores voltam a crescer, como de certa forma neste dia, os pecadores se reconciliam com Deus e passam a ter uma nova vida. Também já foi chamado de dia da Remissão ou Indulgência, pois na manhã deste dia acontecia a reconciliação dos penitentes.
A cerimônia de Lava Pés no final da tarde dava a este dia o nome de Mandatum, por conta da primeira antífona cantada neste dia. Por isso no inglês se teve o nome de Maundy Thursday, enquanto que na França, Itália, Espanha e outros países como o Brasil é mais conhecido como Quinta-feira Santa, por ser um dia consagrado aos santos mistérios. Também era neste dia que se preparavam o necessário para a administração de Batismo, a fonte e origem da santidade entre os homens.
Na manhã da Quinta-feira Santa, antigamente três grandes funções tomavam lugar em três diferentes Missas: 1º a reconciliação dos penitentes; 2º A bênção dos Santos Óleos; 3º A celebração da instituição do Santíssimo Sacramento e as preparações para os ofícios do dia seguinte.
A cerimônia da reconciliação dos penitentes iniciava com a recitação dos sete salmos penitenciais e da ladainha dos santos. Durante este tempo os penitentes permaneciam na parte de fora da igreja, enquanto três vezes a mensagem de esperança era enviada até eles. Por duas vezes, ao fim, dois subdiáconos iam até eles dizer da parte de Deus: Nolo mortem peccatoris – Poenitentiam agite, appropinquavit. Na terceira vez o diácono dizia a eles: Levate capita vestra. Ao fim o bispo os recebia na igreja, proferia uma alocução e terminava com a fórmula de reconciliação. Por fim tomavam parte na Missa junto aos demais fieis e comungavam.
Em Roma, após a Missa da Quinta-feira Santa o Papa, vestido de capa e tiara, da entrada da Basílica de S. Pedro dava a bênção papal Urbi et Orbi (com indulgência plenária). Esta bênção era própria da Quinta-feira, mas depois o Papa passou a dá-la também no Domingo de Páscoa da Basílica de S. Maria Maior, na Quinta-feira da Ascensão, da Basílica de S. João de Latrão e na festa da Assunção novamente em S. Maria Maior.
A bênção dos Santos Óleos é realizada pelo bispo de cada diocese, na Missa solene da Quinta-feira Santa. O bispo era então assistido por doze sacerdotes de casula branca, sete diáconos e o mesmo número de subdiáconos, todos vestidos de branco. Antigamente uma nova Missa era realizada especialmente para a realização deste rito após a Missa pela reconciliação dos penitentes. Hoje em dia a cerimônia acontece na Missa única dita na manhã da Quinta-feira Santa.
Os Santos Óleos são de três tipos: 1. Óleo dos Catecúmenos, que é usado na administração do batismo, na ordenação de sacerdotes e na bênção de sinos. 2. O Santo Crisma, usado na administração de batizados, crisma e na consagração de reis, bispos, além de igrejas, cálices e patenas. O Santo Crisma é uma mistura de óleo e bálsamo. Na preparação do bálsamo os orientais utilizam 33 tipos de perfume. 3. Óleo dos Enfermos, usado na administração da Extrema Unção. A razão para a Igreja ralizar a bênção dos Santos Óleos na Quinta-feira Santa era porque eles eram muito necessários para o batizado dos catecúmenos na Vigília Pascal na noite do Sábado. O mais nobre dos três óleos é o Óleo de Crisma, sua consagração é mais solene e cheia de mistérios em comparação aos outros dois. É pelo Óleo de Crisma que o Espírito Santo infunde seu selo permanente em um cristão já feito membro de Cristo pelo batismo. A água nos dá o nascimento espiritual; o óleo nos dá a força.
O primeiro dos óleos a ser consagrado é o dos catecúmenos, logo após a oração Per omnia saecula saeculorum, antes do Pai Nosso. Os outros dois óleos são consagrados logo após a comunhão. O bispo sopra sobre a ampola que contém o óleo e recita a fórmula de exorcismo, logo após recita a oração de consagração. É cantado em seguida o hino O Redemptor, composto no século VI por Venantius Fortunatus.
Missa da Quinta-Feira Santa
A Igreja deseja neste dia renovar de uma forma mais solene o mistério da Última Ceia: pois Nosso Senhor, na ocasião da instituição do Santíssimo Sacramento, disse aos seus apóstolos: “Fazei isto em memória de Mim”1.
Nosso Senhor está na sala da ceia, onde o cordeiro pascal deverá ser consumido. Todos os apóstolos estão com Ele; Judas está lá também, mas o seu crime não é de conhecimento dos demais. Jesus se aproxima da mesa, onde o cordeiro é servido. Seus discípulos permanecem à sua volta. As cerimônias prescritas por Deus a Moisés são seguidas religiosamente. No início, Nosso Senhor diz aos apóstolos: “Tenho desejado ardentemente comer convosco esta Páscoa, antes de sofrer”.2 A tristeza com a qual Ele fala é capaz de desfazer o mais duro dos corações; e Judas, que conhece a bondade de seu Mestre, percebe que essas palavras implicam um misericordioso perdão, se ele fosse capaz de pedi-lo. Mas não, a paixão pela avareza escravizou sua alma e ele, como o restante dos apóstolos, diz a Jesus: ‘Serei eu, Rabbi?’. Jesus responde a ele em voz baixa para não comprometê-lo diante dos demais: ‘Tu o dizes!’, mas Judas não se submete. Ele pretende permanecer com Nosso Senhor até que venha a hora de traí-Lo. Por isso, o augusto mistério que está a ponto de ser realizado é o insulto de sua presença.
Era costume no oriente prepararem lugares dois a dois ao redor da mesa: estes foram preparados pelo discípulo que deu sua casa em serviço de Nosso Senhor. S. João ficou no mesmo lugar que Nosso Senhor, de modo que pode repousar sua cabeça sobre o peito de Cristo, de modo a consolá-Lo. S. Pedro está no lugar ao lado, junto de Cristo, que está entre os dois discípulos que Ele enviou mais cedo para prepararem a Páscoa, os quais, como já podemos observar, representam a fé e a caridade. A segunda parte da ceia é repleta de tristeza, uma vez que Nosso Senhor lhes revelou que um deles é um traidor. O inocente e afetuoso S. João está todo em lamento e busca consolação no Sagrado Coração de Nosso Senhor.
Mas os apóstolos pouco esperavam uma terceira parte da ceia; Jesus não lhes disse de Suas intenções; mas fez uma promessa, e a realizaria antes de sua Paixão. Falando um dia à multidão, disse: ‘Eu sou o Pão Vivo que desceu do Céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão que hei de dar é a minha carne para a salvação do mundo’.[S. João, VI, 51-52[/note]’Pois a minha carne é verdadeiramente comida e o meu sangue é verdadeiramente bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele’.3O tempo chegou para a realização desta promessa. Mas como foi o seu Corpo e o seu Sangue que nos prometeu, esperou chegar até o momento de seu Sacrifício. Sua Paixão iniciou, Ele é vendido aos seus inimigos; sua Vida já está nas mãos deles. Ele pode, portanto, de uma vez oferecer aos seus discípulos o verdadeiro Corpo e Sangue da Vítima.
Assim que a segunda parte da ceia termina, Jesus levanta-se de repente, para surpresa dos apóstolos, toma as vestes necessárias, cinge-se com uma toalha, como um servo, deposita água em uma bacia e prepara-se para lavar os pés dos discípulos. Era costume lavar os pés de alguém antes de tomar parte em uma festa; era um gesto considerado de extrema hospitalidade. Há aqui também um ensinamento: deseja mostrar-nos com que pureza devemos nos aproximar da mesa da Comunhão. Nosso Senhor diz que, aquele que está limpo não precisa ser lavado; mas é como se dissesse que aqueles que se aproximam do altar devem purificar-se não só de suas faltas, mas até das menores delas, as faltas que vem do contato com o mundo e que são como a areia que fica nos pés daquele que anda pela estrada.
É com S. Pedro, o futuro chefe de Sua Igreja, que Nosso Senhor inicia. O apóstolo protesta, declara que nunca permitiria que Nosso Senhor lavasse seus pés, mas é obrigado a ceder. O outro apóstolo, que como S. Pedro, estava ao lado de Cristo, recebe a mesma marca: Nosso Senhor vai a cada um deles e lava seus pés. Judas não é exceção, ele recebe uma segunda advertência de seu misericordioso Mestre; pois Cristo diz aos apóstolos: ‘Vós estais limpos, mas não todos’.4Apesar disso, o aviso não produz efeito em Judas.
Jesus retoma seu lugar junto a S. João e, tomando o pão ázimo que restara da ceia, eleva seus olhos aos céus, abençoa-o, parte-o e distribui aos seus apóstolos dizendo ‘Tomai todos e comei, isto é o meu Corpo’.5Os apóstolos tomam o Pão, que tornou-se no Corpo de Nosso Senhor e comem: Cristo agora não está apenas com eles, mas neles. Mas como este mistério é também um verdadeiro Sacrifício, é necessário o derramamento de sangue. Cristo toma o cálice e, tornando o vinho em seu próprio Sangue, dá aos seus discípulos dizendo: ‘Tomai todos e bebei, este é o cálice do meu Sangue, o Sangue da nova e eterna aliança que será derramado por muitos, para remissão dos pecados’.6Os apóstolos tomam do cálice. Quando chega a vez de Judas, ele também toma parte, mas toma sua própria condenação, pois comeu seu próprio julgamento quando comeu do Corpo de Cristo. Nosso Senhor, entretanto, misericoridiosamente oferece uma nova graça ao traidor, dizendo, enquanto entrega o cálice aos apóstolos: ‘A mão de quem me trai está à mesa comigo’.7
S. Pedro está impressionado por Cristo aludir frequentemente ao crime que está para ser realizado por um dos doze. Não ousando perguntar ele mesmo a Cristo, faz um sinal para que S. João pergunte. S. João repousa sobre o peito de Nosso Senhor e Lhe pergunta em voz baixa ‘Senhor, quem é este?’, Jesus o responde igualmente em voz baixa ‘é aquele a quem eu der o pão embebido’,8 e deu-o a Judas. Foi mais uma graça dada e recusada, pois o evangelista relata: ‘E assim que engoliu, satanás entrou nele’9. Jesus, então, disse-lhe: ‘o que queres fazer, fazei-o depressa’. Ele então deixa a mesa e vai à realização de seu crime.
Este é o relato da última Ceia, cuja aniversário celebramos neste dia. Entretanto, além da instituição da Eucaristia, como um Sacramento e Sacrifício, Nosso Senhor também institui o novo sacerdócio. Como poderia Nosso Senhor instituir a Eucaristia sem nos dar um meio de recebê-La até o fim dos tempos sem o sacerdócio? Ele o inicia hoje, no cenáculo, e diz aos seus apóstolos: ‘Fazei isto em minha memória’10. Por estas palavras, Ele dá aos discípulos o poder de transformar o pão no seu Corpo e o vinho em seu Sangue. E este poder será perpetuado pela Igreja através das ordenações sacerdotais, até o fim dos tempos.
A Missa da Quinta-feira Santa é uma das mais solenes do ano, ainda que a festa de Cospus Christi seja a festa do Santíssimo Sacramento, a Igreja deseja que a festa de hoje seja feita com grande solenidade. A cor dos paramentos é branca, assim como na Páscoa e no Natal. Os ornamentos do altar resplandescem alegria, mas ainda há cerimônias na Missa que mostram que a Esposa de Cristo não se esqueceu da Paixão de Cristo. O sacerdote entoa o hino angélico Gloria inexcelsis Deo! E os sinos repicam em alegre apelo que continua por todo o cântico: mas a partir deste momento eles ficam em um silêncio que produz um santo sentimento de tristeza. Mas por que a Igreja silencia os sinos e suas belas melodias por tantas horas? Para nos mostrar que o mundo perdeu sua melodia e alegria quando seu Salvador sofreu e foi crucificado.11
A Missa continua normalmente, exceto que na solene elevação da Hóstia e do Cálice os sinos não são tocados. Outro rito particular deste dia é a consagração de duas Hóstias durante a Missa. Uma delas é consumida pelo sacerdote na Missa, a outra é reservada de forma reverente em um cálice coberto com véu. A razão para isto é que no dia seguinte a Igreja suspende o Sacrifício diário. Tal é a reverência que a Igreja tem a este dia que não ousa renovar a imolação que foi oferecida no Calvário. A Hóstia consagrada hoje ficará para o rito de amanhã, chamada Missa dos Pré-santificados, uma vez que o padre não consagra, mas apenas consome a Hóstia consagrada na Quinta-Feira Santa.
Apesar de a Igreja suspender por algumas horas o Santo Sacrifício, não permitira que Nosso Senhor fosse privado da homenagem que deve receber neste Augusto Sacramento. A piedade católica encontrou meios realizando adoração ao Santíssimo Sacramento após a Missa, tendo a Sagrada Hóstia preservada em um local longe da vista, mas coberto de ornamentos. Apesar de coberto com o véu, os fieis visitam, rendem humildes adorações e as mais ferventes súplicas, pedindo em reparação aos ultrajes cometidos pelos judeus e demais pecadores.
Em Roma, a estação é a Basílica de S. João de Latrão. As funções papais, entretanto, tomam lugar na Basílica de S. Pedro, como explicamos anteriormente.
No Introito, a Igreja usa as palavras de S. Paulo, em louvor à cruz de Cristo. Ela está repleta de gratidão pelo seu Redentor, que fez de Si mesmo salvação, morrendo por nós; nossa vida, pelo Pão do Céu, Ele nos deu; e nossa ressurreição, pela sua ressurreição dos mortos.
Introito
Na Coleta, a Igreja nos lembra de Judas e do bom ladrão: ambos são culpados; ainda assim, um é condenado e o outro é perdoado. A Igreja reza por nós diante de Deus, para que a Paixão de Seu Filho, pela qual Deus mostrou sua piedade e misericórdia, produza em nós o perdão de nossos pecados e a graça.
Coleta
Epístola (I Cor. 11, 20-32)
O Gradual é elaborado a partir daquelas admiráveis palavras, que a Igreja tão frequentemente repete durante estes três dias e pelas quais S. Paulo nos anima em gratidão diante do Filho de Deus, que deu-Se por nós.
Gradual
Evangelho (S. João, 13, 1-15)
Ofertório (Salmo 117; 16 e 17)
Secreta
Comunhão (Jo. 13; 12, 13 e 15)
Pós-comunhão
A Secreta relembra a instituição do Sacrifício que é renovado incessantemente no altar em união com aquele do Calvário. A Pós-Comunhão pede que o divino alimento de nossas almas nos assegure a eterna felicidade. A Epístola contém o relato da última Ceia feita por S. Paulo na sua primeira epístola aos coríntios. O grande apóstolo enfatiza fortemente o poder dado por Nosso Senhor a seus apóstolos, de renovar o ato que Ele mesmo realizou. O Evangelho nos coloca diante da ação de Nosso Senhor em lavar os pés dos apóstolos antes de admiti-los aos sagrados mistérios, destacando pra nós a necessidade da purificação de nossas almas do pecado e afetos terrenos antes de recebermos a Sagrada Comunhão. O Ofertório dá graças a Deus pelo alimento divino que nos salva da morte. A Comunhão relembra o grande ato de humildade de Nosso Senhor em lavar os pés dos apóstolos.
O silêncio dos sinos concede uma impressão de medo e desolação e nos lembra da fuga dos apóstolos. Para realçar a detestação da traição de Judas, os sagrados ministros omitem o ósculo de paz antes da comunhão. Após a Missa, o Santíssimo Sacramento é levado em procissão ao altar de repouso, preparado para sua recepção. Ali Nosso Senhor permanecerá para receber a adoração dos fieis até a celebração da Sexta-feira Santa. Durante a procissão, canta-se o hino Pange Lingua.
Tradução e adaptação por um congregado mariano.
Fontes: The Liturgy of the Roman Missal – Dom Leduc e Dom Baudot O.S.B
The Rites of the Holy Week – Pe. Frederick R. McManus
The Mass, A Study of the Roman Liturgy – Pe. Adrian Fortescue
The Liturgical Year – D. Prosper Gueranger
- S. Lucas, XXII, 19
- S. Lucas, XXII, 15
- S. João, VI, 55-56
- S. João, XIII, 10
- S. Matheus, XXVI, 26
- S. Matheus, XXVI, 27, 28
- S. Lucas, XXII, 21
- S. João, XIII, 26
- S. João, XIII, 27
- S. Lucas, XXII, 19
- Os sinos também simbolizam os apóstolos, cujo tocar chama os fieis para a casa de Deus. Na liturgia oriental o turíbulo possui doze sinos em suas correntes e um dos sinos não possui o seu balado, não produzindo som. Simbolizando o discípulo traidor que havia perdido a alegria e beleza da graça