Táticas Modernistas
Um dos maiores méritos de São Pio X foi seu ensinamento a respeito do Modernismo. Três documentos são vitais: Lamentabili Sine (03/07/1907), Pascendi Dominici Gregis (08/09/1907) e Sacrorum Antistutum (01/09/1910). São Pio X estava preocupado não apenas com os aspectos doutrinários do modernismo, mas também com o avanço deste erro nas mentes e corações: Como pode uma doutrina tão complexa, tão esmagadora e contrária à razão humana se disseminar tanto? Como podemos justificar todas as severas medidas tomadas pelo Juramento Anti-Modernista e pelas demais ações de São Pio X, como a vigilância dos conselhos, a exclusão dos modernistas do sacerdócio e de magistério, proibição de publicações modernistas? São Pio X nos responde:
Contudo, é necessário confessar que nestes últimos tempos cresceu sobremaneira o número dos inimigos da Cruz de Cristo, os quais, com artifícios de todo ardilosos, se esforçam por baldar a virtude vivificante da Igreja e solapar pelos alicerces, se dado lhes fosse, o mesmo reino de Jesus Cristo.
Quais são esses artifícios ardilosos sutilmente usados pelos modernistas?
O inimigo está dentro
Em primeiro lugar, estes inimigos estão dentro da própria Igreja. Se consultarmos nosso catecismo, veremos que dos que estão fora da Igreja, alguns nunca fizeram parte dEla (infiéis), outros abandonaram a Igreja por causa de seus pecados contra a Fé (hereges e apóstatas) ou contra a caridade (cismáticos), mas todos estão separados da Igreja. Essa separação, embora lamentável, tem uma vantagem: Sendo a separação clara, os fiéis católicos são mais facilmente alertados contra os ensinamentos e ações destes lobos devoradores . Isso não acontece com os modernistas, cuja característica principal é esforçcar-se a todo custo para permanecer dentro da Igreja, onde podem exercer sua influência de maneira sutil e desapercebida: Diz-nos São Pio X na Pascendi:
E o que exige que sem demora falemos, é antes de tudo que os fautores do erro já não devem ser procurados entre inimigos declarados; mas, o que é muito para sentir e recear, se ocultam no próprio seio da Igreja, tornando-se destarte tanto mais nocivos quanto menos percebidos.
Aludimos, Veneráveis Irmãos, a muitos membros do laicato católico e também, coisa ainda mais para lastimar, a não poucos do clero que, fingindo amor à Igreja e sem nenhum sólido conhecimento de filosofia e teologia, mas, embebidos antes das teorias envenenadas dos inimigos da Igreja, blasonam, postergando todo o comedimento, de reformadores da mesma Igreja; e cerrando ousadamente fileiras se atiram sobre tudo o que há de mais santo na obra de Cristo
Ainda que a autoridade os maltrate, não a odeiam. Lamentando apenas que se lhes não prestem ouvidos, […] eles continuam com desprezo das repreensões e condenações, ocultando audácia inaudita com o véu de aparente humildade. Simulam finalmente curvar a cabeça; mas, no entanto a mão e o pensamento prosseguem o seu trabalho com ousadia ainda maior. E assim avançam com toda a reflexão e prudência, tanto porque estão persuadidos de que a autoridade deve ser estimulada e não destruída, como também porque precisam de permanecer no seio da Igreja, para conseguirem pouco a pouco assenhorear-se da consciência coletiva, transformando-a.
Mal percebem porém, quando assim se exprimem, que estão confessando que a consciência coletiva diverge dos seus sentimentos, e que portanto não têm direito de declarar-se intérpretes da mesma.
O modernista possui um desejo firme de “manter a comunhão” e, assim, não sair da estrutura visível da Igreja, pois apenas dentro dela a poderá modificar interiormente. Estes são os lobos mencionados por Nosso Senhor, “vestindo roupas de ovelhas” (Mt 7,15). Sua dissimulação não é acidental, mas absolutamente essencial para suas obras, sem isso, não poderiam fazer nada.
A destruição da Fé
Permanecendo dentro da Igreja sob falsos pretextos, os modernistas tentam modificar e, assim, destruir a fé católica. Seus ataques não serão contra uma instituição ou um dogma em particular, mas visarão a própria virtude da Fé:
Estes, em verdade, como dissemos, não já fora, mas dentro da Igreja, tramam seus perniciosos conselhos; e por isto, é por assim dizer nas próprias veias e entranhas que se acha o perigo, tanto mais ruinoso quanto mais intimamente eles a conhecem. Além de que, não sobre as ramagens e os brotos 1, mas sobre as próprias raízes que são a Fé e suas fibras mais vitais, é que meneiam eles o machado.
Batida pois esta raiz da imortalidade, continuam a derramar o vírus por toda a árvore, de sorte que coisa alguma poupam da verdade católica, nenhuma verdade há que não intentem contaminar
E continua o Santo Padre:
Isto já é bastante para bem nos certificarmos de que muitos são os caminhos, pelos quais a doutrina modernista vai acabar na destruição de toda a religião. Neste caminho os protestantes deram o primeiro passo; os modernistas o segundo; pouco falta para o ateísmo completo.
Se, pois, de uma só vista de olhos atentarmos para todo o sistema, a ninguém causará pasmo ouvir-Nos defini-lo, afirmando ser ele a síntese de todas as heresias. Certo é que se alguém se propusesse juntar, por assim dizer, o destilado de todos os erros, que a respeito da fé têm sido até hoje levantados, nunca poderia chegar a resultado mais completo do que alcançaram os modernistas.
É verdade que qualquer heresia destrói a Fé Católica ao implicitamente duvidar da autoridade de Deus que a revelou. Porque se acreditamos nas verdades reveladas (como a Santíssima Trindade, a Encarnação, a Redenção, a Santa Eucaristia, a Imaculada Conceição, etc.) não é por assentimento pessoal, ou por gosto, opinião ou porque estas verdades são prováveis de um ponto de vista lógico ou racional, somente: O verdadeiro motivo que nos faz crer sem a menor sombra de dúvida é a autoridade de Deus, que não erra, não mente, não se engana. Negar qualquer dogma de fé é negar Deus, que o revelou. É precisamente por isso que o modernismo não apenas resultará na perda da virtude da Fé como qualquer outra heresia, mas também tornará impossível a existência da própria Fé e culminará no ateísmo.
É nas entranhas da Igreja que eles estão. São leigos, líderes, clérigos, bispos, cardeais. Tanto mais perigosos quanto mais intimamente unidos visivelmente à Igreja. Não há parte da verdade católica que eles não se esforcem em destruir. Daí também a definição de modernismo como “a síntese de todas as heresias“.
O discurso da ambiguidade
O modernista tem consciência que sua doutrina não é a mesma que é proposta pela “Igreja hierárquica”. É claramente notável com isso que o modernista é necessariamente um pensador tomado de orgulho: Ele julga possuir o conhecimento certo e a verdadeira interpretação do dogma e da fé. O que a Igreja prega, eu sua visão, está errado, e é ele o certo. Mas, como já dissemos, deixar isso claro resultaria num suicídio eclesiástico. Por isso, o modernista não atacará a Verdade propagada pela Igreja frontalmente, mas através de ardilosos artifícios.
Em primeiro lugar, ele misturará em seus escritos e palavras, de maneira estranha, ambígua, confusa, a verdade católica e a doutrina modernista. Em determinado trecho de um livro, escreverá como um católico dos mais ortodoxos. Alguns parágrafos à frente, destilará uma doutrina totalmente contrária ao que ensina a Igreja. Dessa maneira, astuciosamente leva muitos ao erro. Essa união adúltera entre o pensamento católico e o pensamento modernista é o resultado direto da vontade do modernista de permanecer dentro da Igreja a fim de mudar a fé de dentro para fora. Falar claramente contra a Fé imediatamente os tornaria visíveis e marcados aos olhos de todos com o selo infame de heresia! É por isso que eles nunca falam claramente.
Todo modernista sustenta e compreende dentro de si muitas personalidades que aparecem e desaparecem de acordo com as necessidades da causa e as oportunidades do momento. É essa evidência que deu à encíclica Pascendi sua estrutura particular. Para revelar o modernista escondido, São Pio X teve que explicar detalhadamente todas as aparências e truques usados pelos modernistas para evitar o julgamento do Magistério:
Convém notar que cada modernista representa e quase compendia em si muitos personagens, isto é, o de filósofo, o de crente, o de teólogo, o de historiador, o de crítico, o de apologista, o de reformador; os quais personagens todos, um por um, cumpre bem os distinga todo aquele que quiser devidamente conhecer o seu sistema e penetrar nos princípios e nas conseqüências das suas doutrinas.
A ambiguidade é marca particular do modernista. Ele dá muitas vezes a impressão de confusão e auto-contradição. Isto é feito pois o modernismo costuma ser apresentado em partes e não como um sistema definido e orientado por uma visão que une as diferentes doutrinas. São Pio X brilhantemente o denuncia:
Com astuciosíssimo engano costumam apresentar suas doutrinas não coordenadas e juntas como um todo, mas dispersas e como que separadas umas das outras, afim de serem tidos por duvidosos e incertos, ao passo que de fato estão firmes e constantes. Por isso, convém primeiro exibirmos aqui as mesmas doutrinas em um só quadro, e mostrar-lhes o nexo com que formam entre si um só corpo, para depois indagarmos as causas dos erros e prescrevermos os remédios para debelar-lhes os efeitos perniciosos.
Talvez na exposição da doutrina dos modernistas tenhamos parecido a alguém, Veneráveis Irmãos, demasiadamente prolixos. Isso, porém, foi de todo necessário, tanto para que não continuem a acusar-nos, como costumam, de ignorar as suas teorias, como também, para que se veja que quando se fala de modernismo, não se trata de doutrinas vagas e desconexas, mas de um corpo uno e compacto de doutrinas em que, admitida uma, todas as demais também o deverão ser.
Uma vez que o modernista tenha sido identificado em algo, não raras vezes ele voltará atrás e até admitirá erro, pedindo perdão por ter se expressado mal ou por ter sido mal compreendido. Nessa falsa humildade, esconde-se outra tática. Ao voltar atrás, como que renovando sua obediência, ganha a estima dos fiéis e da hierarquia e cria um precedente de confiança: parecerá não querer se afastar da fé católica e atribuirá o erro à fragilidade humana ou à incompreensão. Esta tática é muito eficiente, pois enquanto volta atrás em apenas um ponto de sua doutrina, avançará com todos os demais: o Demônio também, diz-nos a Beata Maria da Encarnação, fica contente em perder pouco para ganhar muito.
A substituição
Raramente encontramos, no Modernismo, a criação de novas doutrinas. O modernista sabe com quanta desconfiança a Igreja e os fiéis olham para as novidades. O trunfo do modernista é não a criação, mas a releitura. Uma nova interpretação do dogma, sua pretensa evolução. Aquilo que é substituído não é lembrado. Ao se mudar a doutrina e manter o nome, em pouco tempo o que anteriormente se tomava pelo mesmo nome se perderá.
Isso acontece, por exemplo, na ideia de Redenção propagada pelos modernistas. Para a Doutrina Tradicional da Igreja, a Redenção é o dogma pelo qual Cristo pagou a dívida do pecado com seu sangue no sacrifício expiatório da Cruz. Para o Modernista, a própria noção de dívida e expiação são inconcebíveis. O modernista, porém, utiliza os mesmos termos para significar outras coisas. Sem negar o Dogma diretamente, muda aos poucos os termos e substitui a Doutrina Tradicional: A Redenção é o ato de amor salvífico de Cristo que na Cruz reconciliou os homens com Deus. Um bom católico lendo esta nova definição de Redenção, assentirá. À primeira vista, é uma expressão conveniente do dogma, mas aos poucos, pacientemente, quando a noção de dívida e expiação se perde, o Dogma toma nova forma. Este é o perigo dos perigos. Em nossos tempos, em que os modernistas ganharam força extraordinária, os exemplos da aplicação dessa tática são incontáveis, abrangendo a teologia e a moral, a ascética e a liturgia.
Têm eles por princípio geral que numa religião viva, tudo deve ser mutável. O dogma, pois, a Igreja, o culto, os livros sagrados e até mesmo a fé, se não forem coisas mortas, devem sujeitar-se às leis da evolução.
Estudando, pois, mais a fundo o pensar dos modernistas, deve-se dizer que a evolução é como o resultado de duas forças que se combatem, sendo uma delas progressiva e outra conservadora:
A força conservadora está na Igreja e é a tradição. O exercício desta é próprio da autoridade religiosa, pois é de natureza de toda autoridade restringir-se o máximo possível à tradição; retraída das contingências da vida, pouco ou talvez nada sente dos estímulos que impelem ao progresso.
Ao contrário, a força que, correspondendo às necessidades, arrasta ao progresso, oculta-se e trabalha nas consciências individuais, principalmente naquelas que, como eles dizem, se acham mais em contato com vida. Neste ponto, Veneráveis Irmãos, já se percebe o despontar daquela perniciosíssima doutrina que introduz na Igreja o laicato como fator de progresso.
[…] O principal estímulo de evolução para a liturgia, [por exemplo], é a necessidade de se adaptar aos costumes e tradições dos povos e bem assim de gozar da eficácia de certos atos, já admitidos pelo uso. A Igreja acha finalmente a razão do seu evoluir na necessidade de se acomodar às condições históricas [à modernidade] e às formas do governo publicamente em vigor.Detendo-nos ainda na doutrina da evolução, observamos que, embora as necessidades sirvam de estímulo para a evolução, se ela não tivesse outros estímulos senão esses, facilmente transporia os limites da tradição, e assim desligada do primitivo princípio vital, já não levaria ao progresso, mas à ruína.
O laicato como fator de progresso
A última tática modernista indicada pelo papa São Pio X é a manipulação da opinião pública. Incitando um princípio revolucionário sobretudo no laicato, convence-o de que a Igreja, na verdade, desconhece sua realidade e age hoje de modo inadequado, não respondendo conforme deveria às necessidades dos tempos e às mudanças da sociedade e da consciência coletiva.
Esta manipulação é feita de duas formas: silenciando os adversários e elogiando e incentivando quanto possível os correligionários. Os modernistas se tornam, assim, representantes do progresso e garantidores do futuro da Igreja, que se não se adaptar certamente ruirá – mais uma vez se nota a ausência da fé sobrenatural.
Embora em nossos tempos, muito mais que nos de São Pio X, os modernistas tenham chegado até os mais altos cargos da Igreja e já a tenham dominado, como claramente se pode ver, é o leigo o principal motriz da novidade. É o leigo, em particular o jovem, o grande protagonista da mudança. A escolha do leigo e do jovem não é acidental. Neles, mais facilmente se incutem orgulho e sede por novidades. Assim fizeram os modernistas no passado, mesmo condenados: atingindo-se o jovem, em pouco se atingem as universidades, as famílias, os seminários e em pouco o clero e a hierarquia. Assim o fazem os modernistas atuais.
Efetivamente, o orgulho fá-los confiar tanto em si que se julgam e dão a si mesmos como regra dos outros. Por orgulho loucamente se gloriam de ser os únicos que possuem o saber, e dizem desvanecidos e inchados: Nós cá não somos como os outros homens. E, de fato, para o não serem, abraçam e devaneiam toda a sorte de novidades, até das mais absurdas. Por orgulho repelem toda a sujeição, e afirmam que a autoridade deve aliar-se com a liberdade.
Por orgulho, esquecidos de si mesmos, pensam unicamente em reformar os outros, sem respeitarem nisto qualquer posição, nem mesmo a suprema autoridade. Para se chegar ao modernismo não há, com efeito, caminho mais direto do que o orgulho. Se algum leigo ou também algum sacerdote católico esquecer o preceito da vida cristã, que nos manda negarmos a nós mesmos para podermos seguir a Cristo, e se não afastar de seu coração o orgulho, ninguém mais do ele se acha naturalmente disposto a abraçar o modernismo!
Quem dera que eles fossem no entanto menos zelosos e sagazes na propaganda destes erros! Mas, em vez disto, é tal a sua esperteza, é tão indefeso o seu trabalho, que causa muito pesar ver consumirem-se em prejuízo da Igreja tantas forças, que bem empregadas lhe seriam muito vantajosas. Para conduzirem os espíritos ao erro, usam de dois meios: removem primeiro os obstáculos, e em seguida procuram com máxima cautela os ardis que lhes poderão servir, e põem-nos em prática, incessante e pacientemente. Dentre os obstáculos, três principalmente se opõem aos seus esforços: o método escolástico de raciocinar, a autoridade dos Padres com a Tradição, o Magistério eclesiástico. Tudo isto é para eles objeto de uma luta encarniçada. Por isso, continuamente escarnecem e desprezam a filosofia e a teologia escolástica
Em vista disto, não é para admirar que os católicos, denodados defensores da Igreja, sejam alvo do ódio mais desapoderado dos modernistas. Não há injúria que lhes não atirem em rosto; mas de preferência os chamam ignorantes e obstinados. Se a erudição e o acerto de quem os refuta os atemoriza, procuram descartá-lo, recorrendo ao silêncio. Este modo de proceder com os católicos torna-se ainda mais odioso, porque eles ao mesmo tempo exaltam descompassadamente com incessantes louvores os que seguem o seu partido; acolhem e batem palmas aos seus livros, eriçados de novidades; e quanto mais alguém mostra ousadia em destruir as coisas antigas, em rejeitar as tradições e o magistério eclesiástico, tanto mais encarecem a sua sabedoria.
Movidos e abalados por toda essa celeuma de louvores e impropérios, com o objetivo ou de não passarem por ignorantes, ou de serem tidos por sábios, os ânimos juvenis, instigados interiormente pelo orgulho e pelo amor das novidades dão-se por vencidos e desertam para o modernismo.2
- Isto é, as coisas exteriores e pequenas
- Todos os trechos citados no artigo são excertos da Pascendi
1 Resultado
[…] seria necessário que os próprios fiéis resistissem a este veneno mortal dos erros modernos, mediante uma fé profunda. Mas, como aos sacerdotes da Igreja cabe o ofício de […]