A galheta de Santo Afonso

Após uma noite de sonhos intranquilos, acordei-me metamorfoseado num destruidor de galhetas de pobres religiosas. Não como um Gregor Samsa, que não tinha esperança alguma no seu destino, o meu caso tinha alguma solução. A vida real não é como nos contos e romances realistas em que tudo está perdido. Na vida real há a graça sobrenatural que nos impede de nos tornarmos, por exemplo, um defunto tedioso e rabugento que escreve do além.

Era o IX Domingo depois de Pentecostes, numa manhã ensolarada, mas de clima agradável, naquele chão de barro vermelho da terra dos goyazes. Ia apenas assistir à Missa no mosteiro das monjas redentoristas de clausura, mas o padre me pediu que acolitasse, então assim obedeci. A monja sacristã do convento já havia organizado o necessário para a Missa, então seguimos imediatamente para o altar: observei todo o ambiente à minha volta para me precaver de qualquer imprevisto: conferi o altar com as sacras e as imagens de São José e de Nossa Senhora, a clausura das monjas à esquerda do altar, de onde viam – ou apenas ouviam – a Missa por meio de uma tela com furos bem pequenos, e à direita a credência com o necessário para a Missa. Minha atenção voltou-se para o conjunto de galhetas: em uma base de metal, eram feitas de vidro azulado com detalhes em metal prateado. Fiz uma importante nota mental: poderia acontecer qualquer coisa, mas eu não poderia deixar aquelas galhetas caírem. Essa foi a minha ideia fixa, o meu emplastro.

A Missa que era inicialmente rezada passou a ser cantada, precisei me adaptar, mas nada tão complexo, afinal, as galhetas ainda estavam nos seus lugares. Devo adicionar que a presença das religiosas ali em sua clausura, ligadas mais ao céu do que a este mundo que definha, causava-me certo impacto. Deve ser São Leonardo de Porto Maurício que nos alerta sobre a reverência que devemos ter na Missa, tendo em vista os espíritos bem-aventurados que ali estão. Neste caso, a reverência era dobrada.

Ainda durante o Kyrie, percebemos que havia muitos fieis para talvez não suficientes Hóstias. Ousei esperar pela sacristã na tela da clausura e expliquei a preocupação, questionando se havia alguma outra âmbula e hóstias para serem consagradas na Missa. Ela docemente me indicou onde estava o necessário na sacristia e assim procedi para organizar. Entretanto, durante a Missa já me questionava como haveria de ser feita a purificação de todos os vasos sagrados, pois a água e o vinho das galhetas não seriam suficientes. “Marta! Marta! Andas inquieta e te preocupas com muitas coisas” Lc 10, 41-42. O Senhor haveria de prover.

Chegado o momento do ofertório, devia ter redobrado cuidado. Manuseei as galhetas cuidadosamente e auxiliei o padre a adicionar o vinho e a gota de água no cálice. Em seguida novamente manuseando a galheta de água para o Lavabo, graças a Deus passei incólume por essa prova, mas aguardavam-me ainda as abluções ao final da Missa.

“Sanguis Domini Nostri Jesu Christi custodiat animam meam in vitam aeternam. Amen”. Iniciei o confiteor e depois o “Domine, non sum dignus”. Recebido o Santíssimo Sacramento, o sacerdote foi em direção às religiosas. Indicou-me apenas que deixasse a patena de comunhão na portinhola da tela da clausura e elas, como que descendo do céu, foram uma a uma recebendo o Augustíssimo Corpo do Senhor, tal qual as carmelitas de Compiègne que iam ao cadafalso encontrar o seu Adorável Esposo. Uma pessoa normal certamente se emocionaria. Tive alguma apreensão se haveria partículas para todos os fieis, mas correu tudo bem. Agora era a hora da minha derrareira prova com as galhetas.

Estava ainda absorto da visão celeste que tivera e da apreensão com as partículas escassas e talvez tenha me descuidado da minha ideia fixa. Enquanto pensava em como o padre iria purificar todas as âmbulas, o Senhor proveu e a monja sacristã deixou na portinhola da tela  da clausura uma linda galheta de vidro com detalhes em metal dourado cheia de vinho, como nas Bodas de Caná, quando os empregados achavam que acabara o vinho. Imediatamente fui até lá e peguei a galheta, com ainda maior cuidado. Para as abluções eu precisava levar as três galhetas de uma só vez: o par com vinho e água e terceira que recebera da monja. Coloquei todo o vinho da galheta menor no cálice e, ao pegar a terceira galheta, deixei a primeira sobre o altar. Não percebi que a base delas não era reta, então apenas a deixei e ela virou-se e caiu ao chão partindo-se em mil pedaços. – Meu Deus! Exclamei. A única coisa que não podia acontecer materializou-se diante dos meus olhos.

Ensina S. Agostinho que o Mal substancial não existe propriamente, mas apenas a ausência do bem. E o doutor comum nos explica que Deus permite o mal aparente em vista de um bem maior e mais perfeito e também para nossa humilhação. Consternado pela falha, eu pensava apenas em como tinha causado um grande prejuízo para monjas tão pobres… saí da selva amazônica pra causar esse estrago no interior do Goiás. Confiei mais no meu cuidado do que na graça sobrenatural e vi que nada disso me precaveu do que tanto temia.

Terminada a Missa não podia sequer falar com as pobres monjas, não para me justificar, mas para verificar como reaver o prejuízo. Elas certamente não aceitariam qualquer coisa, mas uma doação não haveriam de recusar, então essa foi a minha decisão. Deixei num bilhete escrito que trataria da situação com o auxílio de um padre amigo, quiçá o maior missionário dessa terra, e assim retornei à minha úmida selva.

Nos dias seguintes eu não deixava de pensar nas pobres monjas, sem a galheta delas. Pesquisei e pesquisei, mas jamais encontraria uma galheta como aquela, que era linda, raríssima e jamais poderia ser comprada em uma loja. Com certeza era uma peça de antiquário, pensei… Antiquário, claro! Lembrei-me de meu grande amigo Fábio, dono de um antiquário, ele haveria de me ajudar. Expliquei a situação a ele e perguntei se teria algo digno daquelas monjas: “tinha que ser você mesmo”, retrucou. “Tenho esse par de galhetas, veja se lhe serve”, continuou e mandou uma foto em seguida. Para minha surpresa, o modelo da foto era exatamente igual à peça que havia destruído! Só que em perfeito estado, conjunto completo e polido, mais bonito até do que havia no mosteiro. Sem acreditar, perguntei o valor do conjunto, era exatamente o valor que pretendia dar a elas como doação. Pedi que embalasse imediatamente e enviasse por correio expresso. Assim ele o fez e as galhetas chegaram no mosteiro providencialmente no dia da festa da Assunção de Nossa Senhora.

Ao fim tudo se resolveu da melhor forma e as monjas tinham um conjunto de galhetas novinho em folha. E sendo elas pobres e sem bens, aquele conjunto não pertencia a elas, mas à sua ordem, que é de S. Afonso. E eu também, embora indigno, sou filho de Santo Afonso, que é o padroeiro secundário de nossa congregação mariana. E o nome do antiquário de onde veio o conjunto de galhetas? Antiquário Santo Afonso! A história se resolveu entre os filhos do mesmo pai.

Artigos Relacionados