O desapego obrigado

Foi uma aventura chegar até o Santuário do Caraça, próximo de Catas Altas, em Minas Gerais, para fazermos nosso retiro. De São Paulo, viajamos de ônibus até Belo Horizonte e de lá, até Santa Bárbara: uma cidadezinha muito agradável, com pessoas calmas, simpáticas e honestas, como costumam ser os mineiros. Sabendo que ainda restava a última etapa do caminho, resolvemos almoçar numa padaria ali perto.

As atendentes eram muito simpáticas e falavam aquele mesmo dialeto simpático dos mineiros. A comida também era simpática porque era mineira. Quase ao fim de nossa refeição, fomos surpreendidos por uma senhora, Sra. Goreti, cujo sobrinho era padre, e que ficou muito interessada em conhecer nossa história.

Iniciamos uma conversa longa e muito divertida, que começou naquela padaria, em Santa Bárbara, e terminou quase 1hora depois, à entrada do hotel do Caraça. Ela havia tomado a iniciativa de contatar um taxista seu amigo, sr. Carlos, conseguir um desconto para dois pobres seminaristas e nos levar para conhecer a Igreja de Santo Amaro, no Distrito de Brumal. Infelizmente estava fechada, seria uma ótima oportunidade para conhecer sua história e a beleza de sua arte colonial mineira.

Mas, chegando à recepção do hotel do Santuário do Caraça, recolhemos as malas e nos despedimos daquela divertida dupla de simpáticos mineiros, crentes que não os veríamos nunca mais. Claro, seria muita coincidência o contrário: o que me foi uma lástima, porque assim que nos instalamos nos quartos e guardamos nossos pertences, descobri que havia perdido o meu celular, não sabia se no táxi do sr. Carlos, na padaria ou na rodoviária de Santa Bárbara.

Um aparelho celular, quaisquer que sejam as funções para as quais o utilizemos, em última análise, tem a finalidade de estabelecer comunicação entre pessoas. Isso é verdade tanto para o discador e o WhatsApp quanto para a fotografia ou o Waze. Nada mais adequado, portanto, para se levar consigo quando você faz uma viagem, na qual sua comunicação com as pessoas é reduzida.

Mas um retiro é um tipo peculiar de viagem, em que se busca justamente a falta de comunicação com as pessoas, em vista de uma melhor comunicação com Deus. Isso nem sempre se verifica na prática de alguns grupos, mas era essa a ideia dos jesuítas, dos lazaristas e de Santo Antônio Maria Claret, ao comentar os exercícios espirituais de Santo Inácio. Nada mais inadequado, portanto, para se ter consigo num retiro do que um aparelho que simboliza o apego a si e às criaturas.

A própria geografia do Santuário do Caraça ajudava enormemente a entender este princípio. Está numa região com pouquíssima intervenção do homem, revestida de vegetação, de animais raros, e rodeada de montanhas – como a Serra do Espinhaço, o Pico do Baiano, o Carapuça – que guiavam o olhar até o céu. Estes mesmos montes, penetrando as nuvens, selavam o horizonte com o céu, afastando a vista, mesmo a partir dos locais mais altos, de tudo o que era mundano.

O microclima, particular daquela altitude, o céu estrelado que dava a impressão de se poder tocar o tecido do universo ao esticar as mãos do alto do belo Calvário, ali edificado sobre uma colina, e sobretudo a ermida do irmão Lourenço, local que serviu de peanha para Nossa Senhora das Vitórias, púlpito do qual ela prometera que ali seria um lugar de peregrinação… Tudo concorria para o afastamento do mundo e a aproximação de Deus.

Mas eu dizia que havia perdido o meu celular… Após tentativas frustradas de me comunicar com o sr. Carlos, e pregações e meditações profundas sobre a santa indiferença, com a qual deveríamos sempre conduzir nossas escolhas em direção à nossa maior união com Deus, comecei a perceber que aquela havia sido a primeira graça que me tinha alcançado de Deus a intercessão de Nossa Senhora e São Vicente de Paulo.

De fato, todas as demais criaturas, todos os bens, foram criados para nós, para nos servir de meios, ou auxílios, em vista de nossa finalidade. Mas a nossa finalidade não é deste mundo: é a felicidade da bem-aventurança, da santidade, da união eterna com Deus. Assim, mais do que simplesmente evitar cometer os pecados, deveríamos também saber escolher, entre aquelas coisas lícitas, utilizar as que nos aproximam e deixar as que nos afastam de Deus.

Desse modo, eu já me conformava com aquela contrariedade e já abandonava as minhas tímidas orações a Santo Antônio de Lisboa. Afinal, se era a vontade de Deus que eu fosse privado de um bem, cujo apego atrapalharia meu retiro e, sobretudo, minha vida interior, evidentemente seria também a vontade do Santo. Realmente, eu já podia ver os aspectos positivos: o tempo que me sobrava para as leituras espirituais,  a ausência de conversações inúteis ou de pouco proveito espiritual, a concentração na contemplação… Decididamente era uma graça!

Mas o retiro se encerrava, após 3 dias de Missa, oração, silêncio, meditação, via sacra. Sobrou tempo para algumas caminhadas pelas trilhas na mata, escaladas por trechos íngremes, fotografias  do conjunto da paisagem, apreciação do espetáculo do tímido casal de lobos-guarás. Ao fim das contas, o apego aos bens e mesmo o amor próprio, tornava-se cada vez mais insensato. Contemplar toda aquela grandeza, reflexo da majestade de Deus, era um ótimo exercício para meditar sobre a nossa pequenez, os nossos limites e a transitoriedade desta vida.

Conseguimos terminar de rezar o Angelus, antes de corrermos em direção ao ônibus que já partia para Santa Bárbara. Era muito bonito ver o Santuário se afastar às nossas vistas, à medida em que avançávamos na estrada, em direção à saída da reserva. Ao mesmo tempo, já ficávamos com saudade de tudo o que vivemos ali, do forno a lenha, do pão de queijo e do queijo minas.

Bem, apenas chegávamos à rodoviária, comprávamos os bilhetes para Belo Horizonte e,  enquanto embarcávamos, o sr. Carlos, o taxista de Santa Bárbara, chega para nos cumprimentar. Após conversarmos e nos despedirmos daquele amigo que fizemos, ele me pergunta se, talvez, eu não teria perdido algo na viagem.

Ele estava com o meu celular, para me devolver. Curiosamente, ele estava ali, no local e na hora exatos em que passávamos pelo local – era o início da noite de um domingo –, de posse do objeto perdido, para restituir ao dono em troca apenas de orações por si e por sua família. Era um legítimo mineiro.

Não sabia a qual dos santos citados nesta crônica creditava exatamente esta graça particular. Mas com toda certeza, dada a sua fama no assunto, era obra de Santo Antônio, que guardava para mim o objeto, no intuito de que eu melhor aproveitasse o retiro.

Além do grande aprendizado de saber renunciar ao apego desordenado das coisas e de aceitar com santa indiferença as disposições da Providência, aprendi uma outra lição especial. É que Deus é verdadeiramente um Pai misericordioso: até para nos humilhar, para nos ensinar uma lição ou corrigir um defeito, Ele o faz com toda a bondade. A partir dali, cabia-me aplicar o princípio aprendido e cuidar para não mais deixar o amor das criaturas tomar o lugar do amor de Deus.

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