A Construção do Hábito: como hábitos podem ser modificados

Uma multidão se aglomera, junto a alguns ambulantes vendendo kebab, numa praça de Kufa, cidade do Iraque. Aparentemente, uma situação comum. Contudo, os ânimos se alteram e um conflito se inicia. Este comportamento agressivo começa a se repetir e tornar-se habitual. Como administrar esse princípio de caos? Um major do exército americano  pede ao prefeito que proíba a venda de alimentos na rua. As pessoas se aglomeram, os ânimos se exaltam mas, ao contrário, logo se dispersam. Compreender que os hábitos podem ser modificados é essencial para  compreender situações cotidianas como essa.

Segundo Santo Tomás de Aquino, o hábito é uma espécie de qualidade que ordena um ser ao aperfeiçoamento de sua natureza e ao agir, enquanto esta operação é conducente ao fim da sua natureza. Os hábitos existem, principalmente, na alma. Porém, podem existir secundariamente no corpo, enquanto este fica disposto e habilitado a servir prontamente às operações da alma.

Os sujeitos dos hábitos na alma são propriamente o intelecto e a vontade. Por exemplo, o intelecto é sujeito das virtudes derivadas da prudência, enquanto a vontade é sujeito das virtudes anexas à justiça. Entretanto, mesmo as potências da parte sensitiva da alma (os apetites irascível e concupiscível) são secundariamente sujeitos de hábitos. Este é o caso, por exemplo, das virtudes anexas à fortaleza e à temperança, respectivamente. No entanto, somente enquanto estes apetites operam movidos pela razão e não pelo instinto.

Este artigo abordará a questão, considerando os hábitos meramente como comportamentos adquiridos. Por enquanto, não se fará nenhuma distinção entre bons e maus hábitos. O texto que serviu de base é o livro O Poder do Hábito, do jornalista americano Charles Duhigg. Apesar de apresentar uma visão secularizada e até, em algumas passagens, contrária à religião, o autor apresenta vários casos e estudos científicos interessantes sobre o tema.

Hábitos podem ser modificados se entendermos como eles funcionam

Os núcleos de base

Eugene Pauly, um senhor de 80 anos que serviu ao exército dos Estados Unidos, sofreu uma encefalite viral, que prejudicou sua capacidade de reter informações novas. Foi necessário recorrer a procedimentos cirúrgicos que, infelizmente, causaram a perda da memória de seus últimos 20 anos, como consequência. Entretanto, ele ainda podia seguir os seus hábitos. Mas como alguém incapaz de memorizar qualquer fato novo pode desenvolver hábitos complexos? Formados pela repetição de atos correspondentes, não seriam eles armazenados, em termos clínicos, no hipocampo, nos lobos temporais do cérebro? Como explicar que alguém com um prejuízo justamente nesta área do cérebro ainda consiga agir conforme os hábitos aprendidos?

Estudando este caso, Larry Squire, pesquisador da Universidade da Califórnia, descobriu uma área do cérebro responsável por armazenar os hábitos: os núcleos de base. Eles são essenciais para recordar aprendizados por repetição e agir com base neles. O cérebro tende a tornar quase todas as rotinas, operações repetidas, em hábitos. Isto pode se verificar quando rezamos um terço ou fazemos um trajeto, por exemplo, diariamente. Por isso, esses núcleos de base seguem um sistema que determina quando os hábitos devem atuar.

As três etapas da formação dos hábitos

Este sistema é composto por deixa, rotina e recompensa. A deixa é um estímulo que deflagra o hábito correspondente aprendido. A rotina é propriamente a operação do hábito e pode ser física, mental ou emocional. Por fim, a recompensa dá certo contentamento após o hábito realizado.

Quando um hábito surge, o cérebro para de tomar decisões. Contudo, o cérebro não diferencia entre hábitos bons e ruins. Devido ao pecado original, nossa natureza está sempre tendente ao que é fácil e agradável. Desse modo, os hábitos nunca desaparecem de fato. Por isso, os maus hábitos estão sempre latentes, esperando as deixas e recompensas certas. Mas, segundo a mesma regra, se aprendermos a criar novos hábitos, mais poderosos que os anteriores, então poderemos forçar as tendências nocivas permanecer em segundo plano.

Os hábitos são poderosos, mas delicados. Podem surgir fora da nossa consciência ou ser arquitetados deliberadamente. (…) Mas podem ser remodelados se manipularmos suas peças. (…) São tão fortes que fazem com que nossos cérebros se apeguem a eles, a despeito de todo o resto, inclusive do bom-senso – Charles Duhigg

Hábitos podem ser modificados se cultivarmos um anseio que os impulsione

Claude Hopkins, um dos maiores publicitários americanos, demonstrou de que forma novos hábitos podem ser cultivados e alimentados. O segredo, segundo ele, era conhecer a psicologia humana certa. Essa psicologia era fundamentada em duas regras básicas:

  1. Ache uma deixa simples e óbvia;
  2. Defina claramente as recompensas.

No entanto, estas duas regras básicas estabelecidas por Hopkins se mostraram insuficientes. Alguns consumidores não identificavam a deixa ou a recompensa. Como cultivar um novo hábito quando não há uma pista para deflagrar a rotina, e quando as pessoas que mais necessitariam, na realidade não apreciam a recompensa?

A partir daí, observou-se um elemento até então ignorado na fórmula do hábito: o anseio. Os hábitos são tão poderosos porque criam anseios neurológicos. Às vezes, os anseios surgem gradualmente, sem que estejamos cientes de sua existência e, portanto, não percebemos sua influência. Em suma, os novos hábitos são criados quando uma deixa deflagra uma rotina e, ao mesmo tempo, um anseio pela recompensa, que movimentará o ciclo do hábito.

Como dito acima, nossa natureza procura o fácil e o agradável. O cérebro está constantemente procurando o prazer. Com efeito, alguns hábitos fortes comportam-se como vícios. Nestes casos, o anseio degenera-se em desejo obsessivo, que força o cérebro a agir automaticamente, mesmo diante de perdas de emprego, reputação e família.

Mas os anseios não tolhem a nossa liberdade. Há estratégias que podem ajudar no combate às tentações. No caso do combate a tentações que provocam vícios, a graça é o elemento essencial. De maneira geral, para superar um hábito, precisamos antes reconhecer qual anseio está pondo-o em movimento.

Hábitos podem ser modificados muito mais rápido dentro de associações

O americano Tony Dungy conhecia um fato interessante sobre o funcionamento dos hábitos. Como jogador e principal técnico da National Football League, sabia que era mais fácil convencer alguém a adotar um novo comportamento quando havia familiaridade no começo e no fim. Afinal, os hábitos ruins não podem realmente ser eliminados. Quando se utiliza a mesma deixa e se fornece a mesma recompensa, a rotina pode ser alterada e, assim, um novo hábito é adquirido.

Porém, em muitos jogos do campeonato daquele ano, o time de Dungy perdeu vergonhosamente. Por medo e receio de errar, os jogadores executavam as rotinas antigas, ao identificarem as deixas fornecidas pelos adversários. Essas derrotas somadas aos problemas familiares do técnico deixaram o time abalado. Esqueceram que constituíam uma sociedade.

Os Alcoólicos Anônimos são uma das mais bem-sucedidas organizações de mudança de hábitos do mundo. Eles demonstraram como quase todos os hábitos podem ser mudados. Sabiam que para mudar um velho hábito, devem-se manter as mesmas deixas e recompensas e alimentar o anseio inserindo uma nova rotina.

Para alguns hábitos, no entanto, há outro ingrediente necessário: a confiança. “Sem um poder supremo na minha vida, sem admitir minha impotência nada daquilo ia funcionar”, dizia Bill Wilson, fundador dos AA. O segredo que fez diferença foi sua fé em Deus. Mas não se trata somente da fé sobrenatural.

Algumas pessoas – como os jogadores de Tony Dungy e os alcoólicos anônimos – mudam de comportamento porque pertencem a certos grupos sociais. Ora, uma comunidade produz confiança. Quando as pessoas se associam a grupos em que a mudança parece possível, o potencial para que esta ocorra se torna mais real. Assim, para alterar um velho hábito, deve-se encontrar uma rotina alternativa para as mesmas deixas e recompensas. E as chances de sucesso aumentam drasticamente quando se faz parte de um grupo comprometido com esta mudança.

Os hábitos na história e na vida da Igreja

Neste artigo, tratamos brevemente dos hábitos, considerados agora principalmente como padrões comportamentais. Vimos as três etapas de que são constituídos e o seu funcionamento através dos anseios. Contudo, alguns pontos devem deter mais demoradamente a nossa atenção.

Em primeiro lugar, o fato de novos hábitos obterem sucesso ao substituir velhos hábitos quando são mantidas as mesmas deixas e recompensas. Esta máxima foi seguida pelo governo dos Estados Unidos, numa campanha alimentar que ensinava as esposas a preparar carnes menos nobres de forma atraente para seus maridos. Foi também adotada por chefes de rádios, que executavam uma música revolucionária entre faixas já consagradas, para alcançar o sucesso entre os ouvintes.

Mas também foi a estratégia adotada pelos modernistas, ao camuflarem suas heresias com termos ambíguos e dinâmicos, que gradualmente “evoluíam” de significado. A reforma litúrgica de Thomas Cranmer, a Nouvelle theologie, o aggiornamento de João XXIII e a Missa de Paulo VI – alguns exemplos entre tantos a citar.

De fato, os modernistas foram pioneiros na aplicação do princípio de disfarçar novos hábitos sob deixas e recompensas familiares. De início, as mudanças são poucas e discretas. Com o passar do tempo, essas mudanças se tornam já familiares e, então, outras mudanças mais substanciais podem ser realizadas. O problema é que estes maus hábitos são causa do enfraquecimento da fé e da devoção dos fiéis, como muito facilmente pode ser verificado em nossos tempos. Com efeito, observam-se casos escandalosos que jamais seriam admitidos em outros tempos, em que a fé católica estava disseminada e nutria a vida dos fiéis com os princípios da verdade de sempre. Dado o exposto, verifica-se a relevância de se estudar sobre o tema dos hábitos.

As Congregações Marianas, sociedades de homens virtuosos

Em segundo lugar, o fato de a mudança de hábito ser favorecida sobremaneira por um grupo de apoio. Com efeito, para os hábitos mudarem permanentemente, as pessoas precisam acreditar que a mudança é factível. Onde verificar mais perfeitamente esta sentença?

Ora, a própria Santa Igreja Católica é o maior grupo de apoio de todos os tempos e o espetacular número de santos é a maior prova disso. Evidentemente, a Igreja foi dotada pelo Divino Fundador de elementos sobrenaturais verdadeiramente eficazes na conversão e santificação dos fiéis, sobretudo os sacramentos. Mas sempre houve na Igreja associações de sacerdotes, religiosos e leigos em que as palavras e o exemplo do próximo edificavam os demais.

As Congregações Marianas representam um brilhante exemplo, como atestam suas regras, vida e obras. Com o primeiro objetivo de santificação própria dos membros e formação de uma elite espiritual, não raro os congregados irradiam a luz e o calor da fé e da devoção. Pio XII, por exemplo, dizia agradar-se ao ver um congregado mariano, pois sabia que atrás dele havia dez bons católicos. A especial proteção de Maria Santíssima, a obediência às regras e aos superiores e a vida estreitamente conforme aos princípios católicos constituem meios seguríssimos de progresso na vida espiritual. E pela verdadeira amizade, nascida da caridade, os congregados tornam-se semelhantes uns aos outros. Assim, os congregados – felizes deles! – têm nesta augusta confraria todos os recursos necessários para a edificação de sua vida moral.

 

Referências

AQUINO, Santo Tomás de. Suma Teológica: tratado dos hábitos (Ia IIae, q. 49-54). Permanência.

DUHIGG, Charles. O Poder do Hábito – Por que fazemos o que fazemos na vida e nos negócios. Objetiva. 2012.

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