O DOM DE PIEDADE: SER CHAMADO “FILHO DE DEUS”
Accepistis Spiritum adoptionis
filiorum, in quo clamamus:
“Abba, Pater!”. (Rm 8, 15)
Pressupondo a ação do Espírito Santo, através dos dons do Temor de Deus e da Fortaleza, o terreno já se torna desobstruído; graças ao sopro desse mesmo Espírito. Pelo Espírito de Temor, nossa vida está desembaraçada das três concupiscências. Pelo Espírito de Fortaleza, que produz em nós a fome e a sede da santidade, ei-nos armados poderosamente em face dos nossos deveres quotidianos e dos obstáculos que encontramos ao cumpri-los.
O Espírito vai nos dar um novo toque, a fim de estabelecer a paz, não mais no nosso domínio interior, em relação às nossas concupiscências ou nossos deveres pessoais, mas em face dos outros. Ele vai nos estabelecer na paz e estando protegidos, só teremos a preocupação de nos elevar mais alto, ao cume da vida interior com Deus.
Esse novo toque do Espírito é o Dom da Piedade.
O Dom da Piedade aperfeiçoa a virtude da Religião, anexa à Justiça, produzindo em nossos corações uma afeição filial para com Deus e uma tema devoção para com as pessoas ou coisas divinas, para nos fazer cumprir com santo fervor os nossos deveres religiosos. Ele produzirá seu efeito no terreno de nossas relações com os outros.
A Justiça nos estabelece nessa paz, harmoniza os nossos atos com o direito do outro: por ela, pagamos a cada um o que nós lhe devemos. Ela não é tudo: há a Caridade. Mas a Justiça é o fundamento da vida social e, transportada para a ordem sobrenatural, é o fundamento da vida da Igreja e do mundo. É uma das razões pelas quais dizemos a um santo que ele é justo: ele não deve nada a ninguém, pagou tudo, atendeu aos direitos que encontrou, inclusive os de Deus.
A virtude da Religião, em particular, diz respeito e se preocupa exclusivamente com os direitos de Deus. Ora, Deus nos criou, nos mantém, nos deu a Graça Santificante, nos enche de graças atuais. Nosso Senhor é nosso dono, por criação, por direito e por conquista. À Ele devemos toda honra, glória, louvor. Ele merece todo domínio, por todos os séculos.
O que Ele nos pede? Como seria possível cumprir o direito de um Deus de dignidade infinita? Ora, Ele também é imensamente misericordioso, nos pede pouco, comparado com o que Ele mereceria de nós. Nos pede o mínimo, que cumpramos fielmente a lei natural, inscrita em nossos corações, sob a forma dos 10 mandamentos.
Essa é a lei de Deus, que Nosso Senhor resumiu em dois mandamentos: amar a Deus acima de todas as coisas, com todo nosso ser, e amar ao próximo como a nós mesmos. Amar a Deus inclui cumprir todos os preceitos a Ele relacionados, que incluem os mandamentos da Igreja.
Os antigos, pagãos romanos e gregos em particular, conheciam bem essa lei. Mesmo aos seus ídolos pagãos, abstraídas todas as desordens da idolatria, prestavam bem seu culto. Mantinham os fogos da lareira acesos perpetuamente, ofereciam os frutos e o incenso às imagens, etc. Porém, vale lembrar que seus ídolos eram demônios. O não cumprimento desses atos de religião implicavam a sua fúria, através de desastres naturais e pestes. No fim das contas, os pagãos odiavam seus deuses, mas não tinham escolha a não ser prestar-lhes culto, devido ao medo que sentiam das consequências. Cumpriam suas obrigações, mas nada além disso. Suas leis civis espelhavam esse legalismo, com uma brutalidade egoísta a tudo que fugisse do escopo da lei.
A Cristandade introduz na sociedade pagã um novo conceito legal, desconhecido até então. O conceito da superrogação, o cumprimento pleno da lei, não apenas à letra, mas no espírito. Em suma, fazer o bem por amor, além de cumprir a lei por obrigação. Pois o Nosso Deus não é um desses deuses pagãos: não é tirano nem autocrata, mas como um bom Pai, nos convida ao banquete, pedindo apenas que vistamos a vestes nupciais. Como um Bom Pastor, deixa todas as suas ovelhas no aprisco, para ir pessoalmente buscar aquela que se perdeu. A ponto de dar seu sangue e sua vida por nós.
A lei natural nos obriga, mas “A Caridade de Cristo nos constrange” (II Cor. 5, 14).
Ora, essa mudança de ponto de vista com relação à lei e à Religião não são pressupostos. É necessário um influxo especial da graça de Deus para nos fazer cair as escamas dos olhos e ver a Deus como Ele é: nosso Redentor, nosso Salvador, nosso Pai.
Esse influxo especial da graça chamamos de Piedade, um dos Dons do Espírito Santo.
A consequência natural desse influxo de graça na alma do cristão é o cumprimento pleno da lei de Deus. Então, se precisamos cumprir o preceito de ir à Missa no domingo, não nos contentamos com uma única Missa semanal: buscamos assistir o Santo Sacrifício sempre que possível, de preferência diariamente. Se precisamos rezar todos os dias, ao menos uma oração pela manhã e outra pela noite, rezamos também antes e depois das refeições, em horários determinados no dia, várias vezes. Se nos pede uma confissão anual, nos confessamos a cada 15 dias, ou a cada mês. Se nos pede uma comunhão anual, comungamos sempre que possível. Se Nossa Senhora nos pede que rezemos o terço todos os dias, na sua aparição em Fátima, então buscamos rezar o Rosário inteiro diariamente.
Além disso, vem o cuidado para com o nosso próximo. Para ver esse dom em ação, basta ler sobre a vida dos santos, daqueles que não só cumpriam as ordens dos seus superiores com humildade e obediência, mas também se dedicavam aos menores que si, os doentes, pobres e os desafortunados. Basta ver a história de um São Vicente de Paulo, de um São Pedro Cláver, ou de um São Luís de Montfort, para ver até que ponto vai o cumprimento heróico da lei de Deus. Santos que se lançavam em meio à doença e a corrupção para dar alívio e consolo aos necessitados, aos abandonados e àqueles que menos podiam por si. A Caridade deles também nos constrange.
Eis a consequência lógica de se ter um Deus como o nosso Deus. Que fez bem todas as coisas, incluindo aí sua própria imolação. Se se medita na Paixão de Cristo por tempo suficiente, com constância, e se se apoia na tutoria da nossa Mãe e Mestra Sempre Virgem Maria, é inevitável esse fim.
A Mansidão
A bem-aventurança associada à Piedade é a Mansidão. Ora, como poderia um cristão se irar com seu próximo, se seu próprio Deus se calou diante da infâmia e da calúnia? Como poderia o cristão perder sua paciência tendo um Deus que sempre o espera, mesmo depois de todos os seus pecados cometidos, para lhe dar o perdão no sacramento da Penitência? Ora, imitemos pois esse Sacratíssimo Coração, que nos pede que sejamos mansos e humildes como ele. A Mansidão é para todos (e que não é a conivência com o erro, pois isso seria falta contra a virtude da Justiça).
Peçamos aos Corações de Nosso Senhor Jesus Cristo e de Maria Santíssima, para que infunda em nós o Dom da Piedade, e que nos traga a Justiça, a Paz e a Mansidão do espírito.
Referências
- André Gardeil, O.P. O Espírito Santo na Vida Cristã.
- Adolphe Tanquerey. Compêndio de Teologia Ascética e Mística.
- Fustel de Coulanges. A Cidade Antiga.