Por que a Missa deve ser em latim?

Chegará um tempo em que um homem não poderá mais dizer: ‘Eu falo latim e sou cristão’ e seguir seu caminho em paz. Haverá fronteiras, fronteiras de todos os tipos entre os homens, e elas não terão fim — John Osborne, Luther, Cap. 2

Essa foi a declaração profética do Cardeal Caetano a Martinho Lutero, prevendo o fim da cristandade europeia após o início da Era do Protestantismo.

Ainda mais proféticas são as palavras de Dom Prosper Gueranger, fundador da Congregação Beneditina da França e primeiro abade de Solesmes após a Revolução Francesa, que escreveu em 1840 suas Instituições Litúrgicas com o objetivo de restaurar entre o clero o conhecimento e o amor pela liturgia romana. Em sua obra sobre a heresia antilitúrgica, ele escreveu o seguinte a respeito da língua latina, da liturgia e dos inimigos da Igreja:

O ódio pela língua latina é inato nos corações de todos os inimigos de Roma. Eles a reconhecem como o vínculo entre os católicos em todo o universo, como o arsenal da ortodoxia contra todas as sutilezas do espírito sectário. O espírito de rebelião que os leva a confiar a oração universal ao idioma de cada povo, de cada província, de cada século, produziu os seus frutos, e os próprios reformados percebem constantemente que o povo católico, apesar das suas orações em latim, aprecia melhor e cumpre com mais zelo os deveres do culto do que a maioria do povo protestante.

A cada hora do dia, o culto divino tem lugar nas igrejas católicas. O fiel católico, que o assiste, deixa sua língua materna à porta. Além dos sermões, ele não ouve nada além de palavras misteriosas que, mesmo assim, não são ouvidas no momento mais solene do Cânon da Missa. No entanto, esse mistério o encanta de tal forma que ele não inveja a sorte do protestante, mesmo que o ouvido deste último não ouça um único som sem perceber seu significado. Devemos admitir que foi um golpe de mestre do protestantismo ter declarado guerra à língua sagrada. Se alguma vez conseguir destruí-la, estará a caminho da vitória. Exposta ao olhar profano, como uma donzela que foi depravada, a partir desse momento a liturgia perderá muito de seu caráter sagrado, e muito em breve as pessoas descobriram que não valia a pena deixar de lado o trabalho ou o lazer para ir ouvir o que era dito da mesma forma que se fala no mercado

Desde a introdução de um novo missal na década de 1960, as missas têm sido celebradas com mais frequência em línguas vivas, como inglês, espanhol, português, etc. Uma das razões apresentadas para essa mudança litúrgica foi tornar a missa compreensível para os fiéis que não sabiam mais latim. No entanto, a frequência a essas missas diminuiu em muitos lugares e há muitos católicos que continuam a pedir que a missa em latim continue a ser celebrada. Por que esse apego ao latim? É apenas por razões estéticas ou sentimentais?

Qual é a origem histórica da introdução do latim na liturgia católica?

Embora Nosso Senhor Jesus Cristo pudesse falar todas as línguas, ele habitualmente usava apenas o aramaico, a língua dos judeus da Palestina de sua época. Quando os apóstolos se dispersaram após o cerco de Jerusalém pelos romanos, no ano 70 d.C., tiveram que adotar as línguas locais para poderem pregar. No Império Romano, a língua grega era o veículo universal para a literatura, para a correspondência mundana e para os negócios comerciais. Por essa razão, a Igreja primitiva falava grego e lia os livros sagrados nessa língua também. É por isso que o grego era predominante como língua litúrgica na origem da Igreja; o Kyrie Eleison, por exemplo, permanece até hoje. Isso, no entanto, não impediu os primeiros cristãos de rezarem em copta, siríaco ou armênio. Com o passar do tempo, o grego perdeu sua influência no Ocidente e o latim progressivamente tomou seu lugar. A liturgia romana seguiu esse movimento, adotando o latim como sua língua e mantendo-o até o século XX. No entanto, ainda hoje existem liturgias em grego, caldeu, siríaco, árabe, georgiano e eslavo.

A missa romana tradicional, em todos os seus elementos essenciais, foi transmitida à Igreja por São Pedro, o primeiro papa, foi elaborada pelos próprios apóstolos, segundo Santo Ambrósio, e atingiu sua maturidade completa e perfeição com os papas São Vitor (século II), São Dâmaso (século IV) e São Gregório Magno (século VI). Como escreveu o grande estudioso litúrgico Pe. Adrian Fortescue, esta missa é “a mais venerável de toda a cristandade, com uma história de uso ininterrupto muito mais longa do que a de qualquer rito oriental, não havendo dúvida de que as partes essenciais da missa são de origem apostólica”.

Diante dessa maturidade e perfeição, a fim de salvaguardar a incorruptibilidade do rito, o latim foi mantido de São Vítor até nossos dias. Uma história de dezoito séculos!

 

Quais são as principais razões a favor do latim como língua litúrgica?

São principalmente sete razões.

1ª razão – A preocupação com a unidade dogmática

O Papa Pio XII salienta que “o uso da língua latina constitui ao mesmo tempo um sinal imponente de unidade e uma salvaguarda eficaz contra a corrupção da verdadeira doutrina” (Mediator Dei).

A Igreja Católica é depositária das verdades da fé, sem as quais “é impossível agradar a Deus” (Hb 11,6) O uso do latim na liturgia é uma forma inequívoca de evitar a heresia; as traduções dos textos litúrgicos, que são constantemente atualizadas, aumentam o risco de erro na transmissão do ensinamento divino. É por isso que a Igreja mantém o latim há tanto tempo como um baluarte protetor da integridade de seus dogmas. Isso porque dogmas imutáveis exigem uma língua imutável. Sobre este ponto, o cardeal Alfons Stickler salientou que:

A língua vernácula muitas vezes vulgarizou a própria missa, e a tradução do latim original resultou em graves mal-entendidos e erros doutrinários. A correção teológica da missa tridentina corresponde à incorreção teológica da missa do Vaticano II — Em um discurso proferido em 11 de maio de 1996, em Nova York

2ª razão – A preocupação com a estabilidade

As línguas vivas faladas, como o inglês ou o português, por exemplo, estão sempre mudando, de forma perpétua e profunda; é certo que, se nossos bisavós voltassem à vida hoje, teriam dificuldade em compreender a linguagem de seus bisnetos. Ora, celebrar a missa em uma língua viva é condenar o texto litúrgico a essas alterações e variações contínuas. Isso é o que está estabelecido de forma inegável nas múltiplas edições da Missa Nova editadas em 1969. É por isso que é preferível preservar a língua latina, que está morta, ou seja, não muda mais.  De fato, é sabido que o significado das palavras muda com o passar do tempo, devido ao uso cotidiano. Palavras que antes tinham um bom significado agora são usadas em um sentido vulgar ou ridículo. A Igreja, iluminada pelo Espírito Santo, escolheu uma língua que não está sujeita a tais mudanças.

3ª razão – A preocupação com a Tradição

A Igreja Católica venera a Sagrada Tradição. Utilizar uma língua morta na liturgia nos traz algo do Deus eterno e imutável. É por isso que o Papa Pio X disse que “os verdadeiros amigos do povo (católicos) não são revolucionários nem inovadores, mas tradicionalistas” — Carta sobre o Sillon; 25 VIII 1910.

4ª razão – A preocupação com a universalidade

O Papa Pio XI afirma expressamente sobre esta questão que: “A Igreja, precisamente porque abrange todas as nações e está destinada a perdurar até ao fim dos tempos, requer, pela sua própria natureza, uma língua que seja universal, imutável e não vernácula.” — Officiorum Omnium, 1922

Como o latim foi falado em vários países durante muitos séculos, é imparcial e não suscita ciúmes entre as nações. Não é prerrogativa de ninguém e, portanto, pode ser aceito por todos. É por isso que tem sido mantido pela Igreja Católica como uma língua universal, unindo os fiéis na prática da religião em todos os tempos e em todos os lugares. Isto porque uma Igreja universal requer uma língua universal. Ao falar sobre esta questão, o cardeal Stickler afirmou que:

Esta Babel do culto comum resulta numa perda de unidade externa na Igreja Católica mundial, que outrora estava unificada numa voz comum.  Devemos admitir que, apenas algumas décadas após a reforma da língua litúrgica, perdemos a possibilidade anterior de rezar e cantar juntos, mesmo em grandes encontros internacionais, como os Congressos Eucarísticos, ou mesmo durante as reuniões com o Papa, como centro externo da unidade da Igreja. Não podemos mais cantar e rezar juntos — Discurso proferido em 20 de maio de 1995 em Fort Lee, Nova Jersey, apud Catholic Family News, (II:7, julho de 1995), p. 10

5ª razão – O latim tem muitas qualidades linguísticas

Nobre e harmonioso, o latim protege o mistério sagrado do profano e do vulgar; claro e preciso, evita a imprecisão e a ambiguidade; conciso e diversificado, impede a introdução da loquacidade e da monotonia. É por isso que incita, de maneira inimitável, à solenidade e à contemplação da oração.

6ª razão – A  variedade de línguas é resultado do pecado

A variedade de línguas é um castigo (Gn 11,7), uma consequência do pecado; foi infligida por Deus para que a raça humana se dispersasse pela face da terra. A Santa Igreja, a imaculada Esposa de Jesus Cristo, foi estabelecida com o propósito expresso de destruir o pecado e unir toda a humanidade; consequentemente, convém que ela fale a mesma língua em todos os lugares.

7ª razão – O exemplo do próprio Cristo

Muitas vezes se negligencia ou se esquece completamente que o próprio Cristo adorava com o povo judeu em hebraico. Essa língua hebraica não era a língua contemporânea da época, pois o aramaico era a língua dos judeus naquele tempo, e ainda assim eles adoravam a Deus nessa língua morta, à qual o próprio Cristo se conformou e aprovou.

O padre James L. Meager, em sua conhecida obra “Como Cristo rezou a primeira Missa” (Tan Books), afirma que:

Os sermões desses antigos pregadores chegaram até nós sob o nome de Targuns e Midrashes. Mas eles não fizeram nenhuma alteração no hebraico antigo de Moisés e do Templo, e os serviços da sinagoga até os nossos dias (por volta de 1906) permanecem no hebraico puro, que apenas os judeus eruditos compreendem atualmente. As pessoas que criticam o fato de a missa ser celebrada em latim, grego e línguas que o povo não compreende não percebem que Cristo adorava nas sinagogas, onde os serviços eram celebrados em uma língua morta

O Papa Bento XIV (1740-1758) estabeleceu uma regra sobre o uso da língua vernácula na liturgia:

A Igreja deve ter em conta, de forma constante e firme, que, embora a língua do povo possa mudar, a língua da liturgia não deve ser alterada. Assim, a missa deve ser celebrada na língua em que era celebrada desde o início, mesmo que essa língua seja já antiquada e estranha ao povo, pois basta que os eruditos a compreendam. – De Missae Sacrificio, 2, II

O Concílio de Trento, por sua vez, resumiu bem a opinião da Igreja sobre o latim como língua do rito romano nas seguintes palavras: “Se alguém disser que a missa deve ser celebrada apenas na língua vernácula, seja anátema.”

Por fim, o Papa Pio VI condenou a noção de que a missa deveria ser celebrada “na língua vernácula” como “imprudente, ofensiva aos ouvidos piedosos, insultuosa para a Igreja e favorável às acusações dos hereges contra ela” (Dz 1533).

É verdade que o latim já não é falado normalmente, mas para acompanhar esta missa sem dificuldade, existem missais bilingues que têm, de um lado, o texto das orações em latim que o padre diz e, do outro lado, a tradução na língua corrente do povo. Com um pouco de prática, está ao alcance de todos unir-se às orações que são ditas. Além disso, querer compreender tudo do Mistério Divino, que é a Santa Missa, é impossível, pois o mistério, por definição, é uma verdade que não se pode compreender totalmente.

Como escreveu bem o padre Michael Muller em 1885, em sua conhecida obra “Deus, o Mestre da Humanidade”, a saber:

Se a missa ou os sacramentos não fossem nada mais do que uma oração comum, lida para o povo, então talvez a língua comum de cada país fosse a mais adequada para usar; mas, então, também, a religião perderia seu caráter principal de Divindade, e o sacerdócio seria despojado do único caráter que distingue seus membros dos leigos. Não culpamos, portanto, os protestantes por usarem a língua comum do povo em suas orações públicas, pois, como não têm sacrifício nem sacerdote, eles foram apenas consistentes em deixar de lado a língua quando rejeitaram o sacrifício e o sacerdócio – Pg. 502-3

Santo Afonso de Ligório, ao escrever sobre esta questão, afirma:

Os inovadores defendiam que a missa deveria ser celebrada apenas na língua vulgar: Lutero deixou esta questão à escolha do celebrante (lib. De form. Missae.), mas a Igreja Católica, por várias razões, ordenou o contrário: pois, (São Roberto) Belarmino observa com justiça (de missa c. 11) que a oblação da missa consiste mais no ato que é realizado do que nas palavras: uma vez que, sem oferecer-lhe em palavras, a própria ação pela qual a vítima, Jesus Cristo, é apresentada no altar, é uma verdadeira oblação. Para a consagração, as palavras são, de fato, necessárias: mas estas são ditas, não para instruir o povo, mas para oferecer o sacrifício. E mesmo as palavras da oblação não são dirigidas ao povo, mas a Deus, que compreende todas as línguas. Até mesmo os judeus, em suas funções públicas, usavam a língua hebraica, embora ela tivesse deixado de ser sua língua vulgar após o cativeiro babilônico. Além disso, sempre foi costume no Oriente celebrar em grego ou caldeu, e no Ocidente, em latim: esse costume existia depois que essas línguas deixaram de ser comumente compreendidas nas nações ocidentais.

O uso da língua latina era necessário no Ocidente, a fim de preservar a comunicação entre as igrejas: se esse costume não existisse, um alemão não poderia celebrar na França. Além disso, acontece frequentemente que as palavras de uma língua não podem expressar toda a força de certas frases em outra língua: portanto, se em diferentes países a missa fosse celebrada em diferentes línguas, seria difícil preservar a identidade do sentido. O uso da língua comum também era necessário para a uniformidade constante no rito prescrito pela Igreja na administração dos sacramentos e como forma de prevenir cismas na Igreja: grande confusão surgiria com a tradução do missal romano para as línguas de vários países. Por isso, os bispos da Grã-Bretanha suplicaram unanimemente a Alexandre VII, em 1661, que suprimisse a tradução do missal romano (a ser usado pelo celebrante) para a língua francesa, publicada pelo Dr. Voisin em 1660. Em 12 de janeiro do mesmo ano, o Papa condenou-a.

Além disso, se os padres de todos os países celebrassem na língua vernácula, não poderiam comunicar-se entre si em diferentes nações. Além disso, não é correto que o povo ouça, todos os dias, os mistérios da nossa fé na língua vulgar, sem uma explicação do ministro da religião, adaptada à sua capacidade. – Exposição e Defesa de todos os pontos da Fé discutidos e definidos pelo Sagrado Concílio de Trento, pg. 302-303

Como afirma Pio XII em sua encíclica Mediator Dei, a Igreja é, sem dúvida, um organismo vivo e, como organismo também no que diz respeito à Sagrada Liturgia, ela cresce, amadurece, se desenvolve, se adapta e se acomoda às necessidades e circunstâncias temporais, desde que a integridade de sua doutrina seja salvaguardada.

Não obstante, a temeridade e a ousadia daqueles que introduzem novas práticas litúrgicas ou apelam ao renascimento de ritos obsoletos, em desacordo com as leis e rubricas, merecem repreensão. Causou-nos grande dor constatar (…) que tais inovações estão realmente a ser introduzidas, não apenas em detalhes menores, mas também em questões de grande importância. São, de fato, aqueles que fazem uso da língua vernácula na celebração do augusto Sacrifício Eucarístico; aqueles que transferem certos dias festivos — que foram designados e estabelecidos após madura deliberação — para outras datas; aqueles, finalmente, que excluem dos livros de orações aprovados para uso público os textos sagrados do Antigo Testamento, considerando-os pouco adequados e inoportunos para os tempos modernos.

O uso da língua latina, habitual em uma parte considerável da Igreja, é um sinal manifesto e belo de unidade, bem como um antídoto eficaz para qualquer corrupção da verdade doutrinária. (Pio XII, Mediator Dei, 1947)

Essas censuras, tão próximas às mudanças que removeram na prática (ainda que mantendo na teoria, como está nos textos conciliares) o Latim na Missa, são eloquentes demonstrações dessa temeridade e ousadia.  E qual o antídoto proposto pelo Papa? Voltemos ao latim.

Preleção do Pe. Raymond Taouk
Tradução e grifos por um Congregado Mariano

 

Artigos Relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *