A Vida Interior e Santo Inácio
A vida interior consiste em duas sortes de atos, a saber: nos pensamentos e nas afeições. É sobretudo nisso que as almas perfeitas diferem das imperfeitas e os bem-aventurados dos que vivem ainda sobre a terra.
Nossos pensamentos, diz S. Bernardo, devem estar na investigação da verdade, “in investigatione veritatis“; e nossas afeições no fervor da caridade, “in fervore caritatis“. Desta maneira, o espirito e o coração estando aplicados a Deus e como que possuídos de Deus, no meio até das ocupações exteriores, não perde Deus de vista e se está sempre no exercício de seu amor e de sua presença.
A essência da Vida Interior consiste nas operações de Deus na alma, suas luzes e inspirações e na cooperação da alma com os movimentos da graça. É preciso, ainda, observar cuidadosamente a que o Espírito Santo nos conduz: no começo de nossas ações, peçamos a graça de bem fazê-los e notemos até os menores movimentos de nosso coração
Uma das ocupações da vida interior é observar e reconhecer:
- O que vem de nós mesmos
Nossos pecados, nossos maus hábitos, nossas paixões, nossas inclinações, nossas afeições, nossos desejos, nossos pensamentos, nossos juízos, nossos sentimentos. - O que vem do Demônio
Suas tentações, suas sugestões, seus artifícios; suas ilusões, pelas quais procura nos seduzir - O que vem de Deus
Suas luzes, suas inspirações, os movimentos da graça, seus desígnios a nosso respeito e os caminhos por onde quer nos conduzir.
Não devemos, por isso, empregar todo o nosso tempo de recolhimento à oração e à leitura espiritual; é preciso empregar uma parte em examinar a disposição de nosso coração, em reconhecer o que nele se passa, em discernir o que é de Deus, o que é da natureza, o que é do demônio, em nos conformar com a conduta do Espírito Santo, e firmar-nos na determinação de tudo fazer e sofrer por Deus.
Muitos obstáculos se levantam contra a Vida Interior:
- Os objetos exteriores nos atraem a si pela aparência de algum bem que acaricia nosso orgulho ou nossa sensualidade.
- O demônio, movimentando os fantasmas da imaginação, despertando as lembranças e idéias das coisas passadas, excita em nós perturbações, escrúpulos, e diversas paixões; realizando isso sobretudo naqueles que não tendo ainda o coração perfeitamente purificado, lhe oferecem mais possibilidade e são mais submissos ao seu poder
- Somente com o sofrimento nossa alma entra em si mesma, vendo em si apenas pecados, misérias e confusão. Para evitar essa visão importuna e humilhante, lançamo-nos imediatamente para o exterior e procurarmos suas consolações nas criaturas. Devemos, por isso, detê-la cuidadosamente no seu dever.
A ausência da Vida Interior e seus efeitos
Sem a vida interior, não sairemos jamais da Vida Purgativa. Em todas as nossas obras, talvez grandes e belas em aparência, sempre se misturarão muitos defeitos e imperfeições, sentimento de amor próprio, vaidade, vontade própria, etc. Sem a vida interior, jamais chegaremos à Vida Iluminativa, que consiste em reconhecer em todas as coisas a vontade de Deus nem na Vida Unitiva, que consiste na união interior da alma com Deus.
Tudo transborda nos Santos, porque eles obtêm por suas preces uma bênção e uma virtude que tornam seus trabalhos eficazes. Nossos superiores, nossas regras, nossos deveres podem muito bem nos indicar o que devemos fazer, mas não nos dizem com que disposições interiores devemos fazer.
Encontrar-se-ão, às vezes, pessoas que, ocupadas dias inteiros e anos no estudo e nas tramas dos empregos exteriores, terão dificuldade em dar um quarto de hora por dia à leitura espiritual! Daí vem que não produzimos frutos; porque nossas funções não são animadas do espírito de Deus. Um homem interior fará mais impressão sobre os corações por uma só palavra animada do espírito de Deus, que um outro por um discurso inteiro que lhe tivesse custado muito trabalho e em que tivesse esgotado toda a força de seu raciocínio.
Por fim, nunca teremos paz se não nos unirmos interiormente a Deus. O repouso de espírito, a alegria, o sólido contentamento somente se encontram na vida inferior. Santo Agostinho compara os que não têm a vida interior bem regulada aos maridos que têm mulheres intratáveis e de mau humor: Saindo de suas casas pela manhã, só voltam o mais tarde possível, porque temem a vida doméstica. Do mesmo modo, aqueles que não têm a paz interior, só encontrando acusações e remorsos de consciência, evitam tanto quanto podem entrar em si mesmos.
O que importa saber sobre a vida interior
Ninguém se dará à vida interior na velhice, se não o fez na mocidade, de maneira que se não alcançamos nos nossos retiros uma vontade inviolavelmente resolvida a cultivar a vida interior, a todo preço, cairemos no nosso estado primitivo e acabaremos piores do que começamos. Três ou quatro anos parecem, à maior parte dos teólogos, necessários para adquirir a vida interior, mas o costume das grandes ordens em não fazer senão um ano ou dois de noviciado parece indicar que esse tempo basta, se for bem empregado, para entrar na vida interior.
Nosso principal cuidado deve ser em vigiar sobre nossa vida interior para reconhecer-lhe o estado e para corrigir-lhe as desordens. Permanecendo imersos e como que sepultados numa infinitude de erros e imperfeições que não vemos nunca e que não veremos senão na hora da morte interior, o pecado mortal, seremos todos absorvidos no enredo e opressão das ocupações exteriores.
A ruína das almas, no caminho da perfeição, vem da multiplicação dos pecados veniais, donde se segue a diminuição das luzes e das inspirações divinas, das consolações espirituais e dos outros socorros da graça, depois de uma grande fraqueza para resistir aos ataques do inimigo e enfim a queda em alguma falta grave, que nos faz ver que não vigiamos sobre as desordens do nosso coração
É exatamente esta ausência de nós mesmos e esta negligência em regular nosso interior, que são causa de que os dons do Espírito Santo sejam em nós quase sem efeito e que as graças sacramentais permaneçam inúteis em nós. Cada vez que nos confessamos e comungamos, os dons do Espírito Santo crescem em nós, mas não são visíveis os seus efeitos. Isso vem de nossas afeições desordenadas e dos nossos defeitos habituais, os quais deixamos que nos dominem mais do que as graças sacramentais e os dons do Espírito Santo.
Vigiando o nosso interior, vamos adquirindo, pouco a pouco, um grande conhecimento de nós mesmos e alcançamos a direção do Espírito Santo. Não vigiando, passam dez ou vinte anos sem que se avance um pouco para alcançar a perfeição. O espírito se distrai e o coração seca entre todos os exercícios da vida religiosa. Abrimos os olhos no declínio da vida e trememos à aproximação do julgamento de Deus, mas já pode ser tarde demais.
O meio de evitar todos esse males é regular bem o nosso mundo interior e praticar essa vigilância que Deus nos recomenda tão frequente: Vigilate – Vigiai.
Ora et Labora
É preciso unir a ação com a contemplação, de modo que nos entreguemos à ação na medida em que nos aproximamos da contemplação. Quanto mais orarmos, melhores resultados obteremos dos nossos atos. Se muito pouco conhecemos do nosso eu, nada fazemos ao que nos rodeiam a menos que a isso nos impulsione a obediência, ou por outro lado, nada faremos pelos outros e nos perderemos a nós mesmos.
Persuadamo-nos de que, no desempenho das nossas funções, não obteremos fruto se não nos aproximarmos de Deus e se não nos desprendermos de todo interesse próprio. Iludimo-nos facilmente neste assunto. Entregamo-nos às obras de zelo e de caridade, mas seria por verdadeiro zelo e caridade pura? Não seria porque achamos nisso satisfação e porque não amamos nem a oração nem o estudo, ou porque poderíamos ficar nos nossos aposentos, e sofreríamos o recolhimento?
A aplicação ao estudo é digna e necessária a um cristão, mas às vezes, não se sonha senão em povoar o espírito de conhecimento que servem mais para o endurecer e enfraquecê-lo do que para o enternecer pela devoção e inflamá-lo pelo fervor. É preciso cultivar, principalmente, a vontade. Comumente temos muita ciência, mas nos falta a necessária união com Deus.
A Vida Interior e Santo Inácio
Os Exercícios Espirituais de Santo Inácio conduzem a fins vários conforme as necessidades dos retirantes. Preparam-nos, segundo os casos, para fazer a escolha de uma vocação; a tomar resoluções para a reforma de sua vida; para iniciar na vida contemplativa e no puro amor de Deus.
Diz-nos o Pe. Roothan:
Nosso bem-aventurado Pai não dá as regras da união especial com Deus, mas prepara as almas para isso e a principal disposição que indica é o desprendimento e a abnegação de si mesmo.
Em toda a extensão dos Exercícios, S. Inácio leva à vida interior, à conversão com Deus, à correspondência às luzes e às impressões da graça:
- Primeira anotação
Os exercícios são a arte de meditar e contemplar - Segunda anotação
A alma deve encontrar nos exercícios não somente a inteligência, mas o sentido e o gosto das coisas que medita. - Decima quinta anotação
Nosso Senhor se comunica à alma devota e, num santo amplexo, a dispõe ao seu amor, ao seu louvor e ao seu serviço.
Vemos similar disposição na forma como estão ordenados os exercícios durante as semanas:
- Primeira semana
Preparação necessária – dispõe e purifica a alma pelo temor de Deus, o ódio do pecado e a penitência. Os colóquios são um verdadeiro exercício da vida contemplativa, em que a alma em doces entretimentos com Maria, com Cristo e com Deus, abre-se a todas as impressões que a graça lhe sugere - Segunda semana
A alma, contemplando os mistérios do Salvador, procura as luzes, as consolações e as afeições que lhe vêem da graça. A eleição se faz sob a influência divina no momento em que a alma é levada a fazer tudo pelo amor de Deus - Terceira semana
Pedimos à Maria e a Jesus, que dividam conosco os sentimentos do Salvador na sua paixão, seu ódio do pecado, seu devotamento para com seu Pai e para com as almas - Quarta semana
Participamos das alegrias de Jesus Ressuscitado e somos convidados a conhecer e a gozar particularmente os momentos em que nos sentimos fortemente emocionados e impressionados pela graça - Conclusão dos exercícios
É a contemplação para excitar em nós o amor espiritual. Esta contemplação nos deve fixar na vida unitiva, na vida de amor por Deus e Nosso Senhor
Santo Inácio nos faz contemplar, à margem, os grandes benefícios da Providência: a Criação, a Redenção e os dons de Deus que nos são pessoais: Batismo, vocação, etc. Toda a contemplação é um olhar sobre Deus e o Redentor. Ele nos mostra a presença de Deus em todas as criaturas e sobretudo em nós mesmos que somos como “seus templos”. Nestas mesmas criaturas, Deus não está somente presente, mas vivendo, agindo, e como que sofrendo, o que nos deve levar a viver e a agir por ele. S. Inácio nos mostra em Deus a fonte de tudo o que há de bom nas criaturas. Todo bem desce de Deus como os raios vêm do sol e as águas da fonte. Nosso amor deve, então, remontar a Deus como tal.
As regras do discernimento dos espíritos poderiam chamar-se também regras da vida interior. S. Inácio nos faz distinguir a ação divina da ação da natureza e do demônio. A ação de Deus ou a graça tem seus característicos: é a paz, a alegria e o amor de Deus; são as condições da verdadeira vida interior à qual devemos tender e que devemos entreter em nossas almas. Os exercícios são um sumário, um maravilhoso bosquejo, um resumo dos meios a empregar e o caminho a seguir para chegar à união com Deus.
Extraído do livro “A Vida Interior” do Pe. Dehon,
adaptado por um congregado mariano