A Regra de Vida e a Presença de Deus

Um humilde servo de Deus fará tudo o que lhe cabe da sua melhor maneira possível, reconhecendo, porém, suas ações sempre como insuficientes e, após terminar tudo, dirá com um espírito sincero e humilde: sou um servo inútil. Este, tendo seus pensamentos elevados ao serviço de Deus, trabalha dia a dia para que suas ações se prestem a esse fim.

Em nossa época, fazer mais do que o necessário é visto como coisa de monges e penitentes do deserto para os que vivem no Mundo; os congregados, porém, devem voltar seus olhos para o Céu de maneira diferente e por amor filial devem se dedicar em observar tudo aquilo que possa dar maior glória a Deus. Quanto maior a nossa generosidade, mais graças e favores do Céu.

A Santíssima Virgem será, nesse caminho, nossa Mestra: por uma série de atos heróicos, Ela sempre fez muito mais do que o necessário, e sempre o fez por amor. Consideremos, como exemplo, sua Purificação: Como se fosse uma mulher impura, Nossa Senhora subiu ao templo para se purificar seguindo a lei de Moisés. Mas Ela era mais pura que o maior dos Serafins!  Os congregados marianos, em sua imitação, encontrarão doçura ao fazer mais do que apenas o necessário, contentando-se não apenas em estar quites com Deus, através do seguimento dos mandamentos, mas livremente observando as Regras e fazendo tudo o que concorra para a maior glória de Deus, mesmo os mais duros sacrifícios e renúncias, não por obrigação, pois essas coisas não se obrigam sob pena de pecado, mas por amor dAquele que voluntariamente, sem ser a isso obrigado, desceu dos Céus e se deitou em uma manjedoura, por amor.

Para se encorajar em manter sua frágil natureza sob a graça e estes propósitos heróicos, os congregados marianos devem frequentemente lembrar-se dos múltiplos favores concedidos gratuita e livremente por Deus e pensar em modos de retornar esses favores à Infinita Bondade. Devem dizer, como a Santíssima Virgem: fez em mim grandes coisas aquele que é poderoso, e cujo Nome é santo, considerando uma por uma as graças e misericórdias gerais ou pessoais dadas por Deus.Devem, também, pensar que receberam o favor especial, negado a muitos, de não terem sido punidos por tantas iniquidades cometidas e lançados à fúria dos demônios. Pela manhã, ao abrirem seus olhos, devem os congregados elevar suas mentes e agradecer a paciente bondade de Deus por estarem vivos e em graça, e não no inferno.

Atos frequentes de gratidão e ação de graças ajudarão a lembrar todos os favores recebido por Deus e quão pouco foi feito em retribuição, e muitas vezes de forma mesquinha. Aquele que considerar estas coisas jamais agradecerá suficientemente a divina majestade.

Em imitação à Gloriosa Senhora, devem, por fim, os congregados acostumar-se a buscar como testemunha de seus atos mais a Deus que aos homens. O homem tem sua presença limitada, Deus, porém, por sua imensidão está presente em toda parte. O homem pode fechar seus olhos para não ver algo, mas os olhos de Deus tudo vêem. Muitos se dizem cristãos, mas impudentemente pecam e praticam o erro na presença de Deus que é ao mesmo tempo seu Juiz e Testemunha! Que ousadia! Que desprezo! Que loucura! E que desgraça para aquele que peca buscando garantir que não é visto por nenhum homem, mas se esquece que está sendo visto por Deus.

Deus tudo vê. Vê a mim também! Não como um juiz ávido por condenação e perdição, mas como um pai amoroso que tudo dá a seus filhos e recebe deles só pecados e ingratidão. Uma alma elevada pela Graça e iluminada pela Fé tem um grande horror de pensar no Pecado na presença das Três Adoráveis Pessoas da Santíssima Trindade. Muito mais temeria esta alma pecar diante dos olhos de Deus do que se toda a humanidade tivesse seus olhos fixos nela.

A prática da presença de Deus dará espaço para a virtude mais eminente da Rainha das Virgens, a Pureza. Esta virtude não se alcança sem a generosidade que aqui expomos. A impureza é vencida pela fuga, não pela luta. Pela humildade, não pelas próprias forças; Devem os congregados, por isso, diante da impureza, fugir não apenas do que é estritamente pecado, mas também de suas sugestões e instrumentos. Instrumentos que às vezes parecem inofensivos, e cujo usufruto pode não ser mesmo pecado em si, mas que inclinam a alma para a mesquinharia e a tibieza. Devem, por isso, evitar os livros e demais divertimentos e companhias que instigam o fogo da paixão, pois inevitavelmente estes esfriam as devoções e, secretamente, sem que se dê conta, instigam a alma com um veneno que dificilmente encontra antídoto. Não devem eles cair na máxima “mas todos os outros fazem isso“, pois é mais prudente salvar-se com poucos, à imitação dos santos, dos mártires, dos confessores da fé que em sua vida sempre buscaram fazer mais do que o necessário, que perder-se com a multidão. Não havia conforto para os que se afogavam no Dilúvio, eles aprenderem a um alto preço que Noé era mais feliz na arca com poucos que eles com todos os outros que se condenaram.

Os congregados devem buscar exatidão em se conformar com a Regra da Fé, e detestar tudo aquilo contrário a ela que se apresenta falsamente como “Novidade dos Tempos”, lembrando-se sempre que são filhos dAquela que durante o tempo de perseguição e provação da Igreja é chamada de Estandarte, e que durante os tempos de paz e conquista é o cetro da fé católica. Devem os congregados ter um olhar estrito e atendo a cada pequeno desvio que cometem da estrada comum da Igreja dirigida, desde sempre, pelo Espírito Santo e voltar a este caminho.

O Demônio parece mais experiente em seduzir as almas e usa de grandes artifícios e ousadia para isso. Por dezesseis séculos 1 ele apareceu como uma serpente, tal como é, de modo que todos podiam percebê-lo. Em nossos tempos, ele se apresenta falsa e astuciosamente como um Anjo de Luz. Às vezes, aqueles de quem devemos mais friamente fugir são os que aparentam seguir a “iluminação dos tempos” e que tem sempre grande zelo por Reformas, mudanças e contestações sobre a Moral e a Disciplina da Igreja, esforçando por minar a Pedra.

Deve, por isso, o congregado suspeitar das novas doutrinas provenientes de novos mestres. Devem temer mais os que furtam de modo escondido e insuspeito do que ladrões que roubam publicamente. Tomem cuidado para não se deixar orientar e instruir por essas doutrinas oferecidas como cálices dourados, mas que estão cheias de abominações.

Rules and Instructions for the Sodality of Our Lady (1703), pp. 55-61
Tradução e grifos por um congregado mariano

  1. O texto original, aqui traduzido, foi publicado em 1703

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2 Resultados

  1. 14 de setembro de 2018

    […] noção se nos impõe mais ainda a nós, congregados marianos, cujas regras nos pedem buscar mais que o ordinário, buscar uma bondade acima do comum dos fiéis, ser elite moral e espiritual. Cuidemos para não […]

  2. 19 de fevereiro de 2019

    […] Nossos pensamentos, diz S. Bernardo, de­vem estar na investigação da verdade, “in investi­gatione veritatis“; e nossas afeições no fervor da caridade, “in fervore caritatis“. Desta maneira, o espirito e o coração estando aplicados a Deus e como que possuídos de Deus, no meio até das ocupações exteriores, não perde Deus de vista e se está sempre no exercício de seu amor e de sua presença. […]