A Vida Interior e Santo Inácio

A vida interior consiste em duas sortes de atos, a saber: nos pensamentos e nas afeições. É sobretudo nisso que as almas perfeitas di­ferem das imperfeitas e os bem-aventurados dos que vivem ainda sobre a terra.

Nossos pensamentos, diz S. Bernardo, de­vem estar na investigação da verdade, “in investi­gatione veritatis“; e nossas afeições no fervor da caridade, “in fervore caritatis“. Desta maneira, o espirito e o coração estando aplicados a Deus e como que possuídos de Deus, no meio até das ocupações exteriores, não perde Deus de vista e se está sempre no exercício de seu amor e de sua presença.

A essência da Vida Interior consiste nas operações de Deus na alma, suas luzes e inspirações e na cooperação da alma com os movimentos da graça. É preciso, ainda, observar cuidadosamente a que o Espírito Santo nos conduz: no começo de nossas ações, peçamos a graça de bem fazê-los e notemos até os menores movimentos de nosso coração

Uma das ocupações da vida interior é ob­servar e reconhecer:

  1. O que vem de nós mesmos
    Nossos pe­cados, nossos maus hábitos, nossas paixões, nos­sas inclinações, nossas afeições, nossos desejos, nos­sos pensamentos, nossos juízos, nossos sentimentos.
  2. O que vem do Demônio
    Suas tentações, suas sugestões, seus artifícios; suas ilusões, pelas quais procura nos seduzir
  3. O que vem de Deus
    Suas luzes, suas inspirações, os movimentos da graça, seus desígnios a nosso respeito e os caminhos por onde quer nos conduzir.

Não devemos, por isso, empregar todo o nosso tempo de recolhimento à oração e à leitura espiritual; é pre­ciso empregar uma parte em examinar a disposi­ção de nosso coração, em reconhecer o que nele se passa, em discernir o que é de Deus, o que é da natureza, o que é do demônio, em nos conformar com a conduta do Espírito Santo, e firmar-nos na determinação de tudo fazer e sofrer por Deus.

Muitos obstáculos se levantam contra a Vida Interior:

  1. Os objetos exteriores nos atraem a si pela aparência de algum bem que acaricia nosso orgu­lho ou nossa sensualidade.
  2. O demônio, movimentando os fantasmas da imaginação, despertando as lembranças e idéias das coisas passadas, excita em nós perturbações, escrúpulos, e diversas paixões; realizando isso so­bretudo naqueles que não tendo ainda o coração perfeitamente purificado, lhe oferecem mais pos­sibilidade e são mais submissos ao seu poder
  3. Somente com o sofrimento nossa alma entra em si mesma, vendo em si apenas pecados, misérias e confusão. Para evitar essa visão importuna e humilhante, lançamo-nos imediatamente para o exterior e procurarmos suas consolações nas cria­turas. Devemos, por isso, detê-la cuidadosamente no seu dever.

 

A ausência da Vida Interior e seus efeitos

Sem a vida interior, não sairemos jamais da Vida Purgativa. Em todas as nossas obras, talvez grandes e belas em aparência, sempre se misturarão muitos defeitos e imperfeições, sentimento de amor próprio, vaidade, vontade própria, etc. Sem a vida interior, jamais chegaremos à Vida Iluminativa, que consiste em reconhecer em todas as coisas a vontade de Deus nem na Vida Unitiva, que consiste na união interior da alma com Deus.

Tudo transborda nos Santos, porque eles obtêm por suas preces uma bênção e uma virtude que tornam seus trabalhos eficazes. Nossos superiores, nossas regras, nossos deveres podem muito bem nos indicar o que devemos fazer, mas não nos dizem com que disposições interiores devemos fazer.

Encontrar-se-ão, às vezes, pessoas que, ocupadas dias inteiros e anos no estudo e nas tra­mas dos empregos exteriores, terão dificuldade em dar um quarto de hora por dia à leitura espiritual! Daí vem que não produzimos frutos; porque nossas funções não são animadas do espírito de Deus. Um homem interior fará mais impressão sobre os corações por uma só palavra animada do espírito de Deus, que um outro por um discurso inteiro que lhe tivesse custado muito trabalho e em que tivesse esgotado toda a força de seu raciocínio.

Por fim, nunca teremos paz se não nos unirmos interiormente a Deus. O repouso de espírito, a alegria, o sólido contentamento somente se encontram na vida inferior. Santo Agostinho compara os que não têm a vida interior bem regulada aos maridos que têm mulheres intratáveis e de mau humor:  Saindo de suas casas pela manhã, só voltam o mais tarde possível, porque temem a vida doméstica. Do mesmo modo, aqueles que não têm a paz interior, só encontrando acusações e remorsos de consciência, evitam tanto quanto podem entrar em si mesmos.

 

O que importa saber sobre a vida interior

Ninguém se dará à vida interior na ve­lhice, se não o fez na mocidade, de maneira que se não alcançamos nos nossos retiros uma vontade in­violavelmente resolvida a cultivar a vida interior, a todo preço, cairemos no nosso estado primitivo e acabaremos piores do que começamos. Três ou quatro anos parecem, à maior parte dos teólogos, necessários para adquirir a vida interior, mas o costume das grandes ordens em não fa­zer senão um ano ou dois de noviciado parece in­dicar que esse tempo basta, se for bem emprega­do, para entrar na vida interior.

Nosso principal cuidado deve ser em vi­giar sobre nossa vida interior para reconhecer-lhe o estado e para corrigir-lhe as desordens. Permanecendo imersos e como que se­pultados numa infinitude de erros e imperfeições que não vemos nunca e que não veremos senão na hora da morte interior, o pecado mortal, seremos to­dos absorvidos no enredo e opressão das ocupa­ções exteriores.

A ruína das almas, no caminho da per­feição, vem da multiplicação dos pecados veniais, donde se segue a diminuição das luzes e das inspi­rações divinas, das consolações espirituais e dos outros socorros da graça, depois de uma grande fraqueza para resistir aos ataques do inimigo e enfim a queda em alguma falta grave, que nos faz ver que não vigiamos sobre as desordens do nosso coração

É exatamente esta ausência de nós mesmos e esta ne­gligência em regular nosso interior, que são causa de que os dons do Espírito Santo sejam em nós quase sem efeito e que as graças sacramentais per­maneçam inúteis em nós. Cada vez que nos confessamos e comun­gamos, os dons do Espírito Santo crescem em nós, mas não são visíveis os seus efeitos. Isso vem de nossas afeições desordena­das e dos nossos defeitos habituais, os quais deixamos que nos dominem mais do que as graças sa­cramentais e os dons do Espírito Santo.

Vigiando o nosso interior, vamos ad­quirindo, pouco a pouco, um grande conhecimento de nós mesmos e alcançamos a direção do Espírito Santo. Não vigiando, passam dez ou vinte anos sem que se avance um pouco para alcançar a perfeição. O espírito se distrai e o coração seca entre todos os exercícios da vida religiosa. Abrimos os olhos no declínio da vida e trememos à aproximação do julgamento de Deus, mas já pode ser tarde demais.

O meio de evitar todos esse males é regular bem o nosso mundo interior e praticar essa vigilância que Deus nos recomenda tão frequente­: Vigilate – Vigiai.

 

Ora et Labora

É preciso unir a ação com a contemplação, de modo que nos entreguemos à ação na medida em que nos aproximamos da contemplação. Quanto mais orarmos, me­lhores resultados obteremos dos nossos atos. Se muito pouco conhecemos do nosso eu, nada fazemos ao que nos rodeiam a menos que a isso nos impulsione a obe­diência, ou por outro lado, nada faremos pelos ou­tros e nos perderemos a nós mesmos.

Persuadamo-nos de que, no desempenho das nossas funções, não obteremos fruto se não nos aproximarmos de Deus e se não nos despren­dermos de todo interesse próprio. Iludimo-nos facilmente neste assunto. Entregamo-nos às obras de zelo e de caridade, mas seria por verdadeiro zelo e caridade pura? Não seria porque achamos nisso satisfação e porque não amamos nem a oração nem o estu­do, ou porque poderíamos ficar nos nossos apo­sentos, e sofreríamos o recolhimento?

A aplicação ao estudo é digna e necessária a um cristão, mas às vezes, não se sonha senão em povoar o espírito de conhecimento que servem mais para o endurecer e enfraquecê-lo do que para o en­ternecer pela devoção e inflamá-lo pelo fervor. É preciso cultivar, principalmente, a vontade. Comumente temos muita ciência, mas nos falta a necessária união com Deus.

 

 

A Vida Interior e Santo Inácio

Os Exercícios Espirituais de Santo Inácio conduzem a fins vários conforme as necessidades dos retirantes. Preparam-nos, segundo os casos, para fazer a escolha de uma vocação; a tomar resoluções para a reforma de sua vida; para iniciar na vida contemplativa e no puro amor de Deus.

Diz-nos o Pe. Roothan:

Nosso bem-aventurado Pai não dá as regras da união especial com Deus, mas prepara as almas para isso e a principal dis­posição que indica é o desprendimento e a abne­gação de si mesmo.

Em toda a extensão dos Exercícios, S. Inácio leva à vida interior, à conversão com Deus, à correspondência às luzes e às impressões da graça:

  • Primeira anotação
    Os exercícios são a arte de meditar e con­templar
  • Segunda anotação
    A alma deve encontrar nos exercícios não so­mente a inteligência, mas o sentido e o gosto das coisas que medita. 
  • Decima quinta anotação
    Nosso Senhor se comunica à alma devota e, num santo amplexo, a dispõe ao seu amor, ao seu louvor e ao seu serviço.

 

Vemos similar disposição na forma como estão ordenados os exercícios durante as semanas:

  • Primeira semana
    Preparação neces­sária – dispõe e purifica a alma pelo temor de Deus, o ódio do pecado e a penitência. Os colóquios são um verdadeiro exercício da vida contemplativa, em que a alma em doces en­tretimentos com Maria, com Cristo e com Deus, abre-se a todas as impressões que a graça lhe su­gere
  • Segunda semana
    A alma, contemplando os mistérios do Salvador, procura as luzes, as conso­lações e as afeições que lhe vêem da graça. A elei­ção se faz sob a influência divina no momento em que a alma é levada a fazer tudo pelo amor de Deus
  • Terceira semana
    Pedimos à Maria e a Jesus, que dividam conosco os sentimentos do Sal­vador na sua paixão, seu ódio do pecado, seu devotamento para com seu Pai e para com as almas
  • Quarta semana
    Participamos das alegrias de Jesus Ressuscitado e somos convidados a co­nhecer e a gozar particularmente os momentos em que nos sentimos fortemente emocionados e im­pressionados pela graça
  • Conclusão dos exercícios
    É a contemplação para excitar em nós o amor espiritual. Esta contemplação nos deve fixar na vida uni­tiva, na vida de amor por Deus e Nosso Senhor

Santo Inácio nos faz contemplar, à margem, os grandes benefícios da Providência: a Criação, a Redenção e os dons de Deus que nos são pessoais: Batismo, vocação, etc. Toda a contemplação é um olhar sobre Deus e o Reden­tor. Ele nos mostra a presença de Deus em todas as criaturas e sobretudo em nós mesmos que somos como “seus templos”. Nestas mesmas criaturas, Deus não está so­mente presente, mas vivendo, agindo, e como que sofrendo, o que nos deve levar a viver e a agir por ele. S. Inácio nos mostra em Deus a fonte de tudo o que há de bom nas criaturas. Todo bem desce de Deus como os raios vêm do sol e as águas da fonte. Nosso amor deve, então, remontar a Deus como tal.

As regras do discernimento dos espíritos poderiam chamar-se também regras da vida in­terior. S. Inácio nos faz distinguir a ação divina da ação da natureza e do demônio. A ação de Deus ou a graça tem seus característicos: é a paz, a alegria e o amor de Deus; são as condições da verdadeira vida interior à qual devemos tender e que devemos entreter em nossas almas. Os exercícios são um sumário, um mara­vilhoso bosquejo, um resumo dos meios a empre­gar e o caminho a seguir para chegar à união com Deus.

Extraído do livro “A Vida Interior” do Pe. Dehon,
adaptado por um congregado mariano

Artigos Relacionados