O Temor de Deus como o primeiro passo no caminho da perfeição

Sanctum et terribile nomen ejus, initium sapientiae timor Domini – Ps. 110, 9

No ofício de Vésperas do Domingo se reza esta passagem do salmo 110: “Santo e terrível é o Seu Nome, o temor do Senhor é o princípio da sabedoria”. É sabido que, quando se fala de Nome do Senhor nas Escrituras, normalmente se refere ao Verbo de Deus, que se encarnou e morreu por nós. É interessante notar aqui que o próprio salmista, antecipando o arcabouço doutrinário da Igreja, nos dá duas causas do temor de Deus: sua Santidade e sua Terribilidade.

O Temor de Deus é um dos dons do Espírito Santo. Todos os dons são infusão de graças grandiosas na alma batizada em estado de graça, além de ser, por isso, proveniente completamente da iniciativa divina, dado o devido consentimento da nossa parte. Esse consentimento, entretanto, não é passivo. É necessário trabalhar duro e lutar contra as próprias más inclinações para se obter esse influxo do Sopro Divino.

Na nossa vida cotidiana, na busca diária pela perfeição e pela santidade, todas as boas ações são inspiradas pelo Espírito Santo. Porém, vale ressaltar dois tipos de ação do Espírito Santo em nós: Na primeira, nasce a boa vontade no coração do cristão, e este, com o esforço e a lentidão daquele que ainda não possui proficiência na virtude, avança num ritmo tectônico, por vezes caindo, por vezes errando. Aqui é necessário clarificar que é a própria pessoa que dirige a si mesma, ainda que inspirada e guiada pelo Espírito Divino. Porém, nos é garantido que sempre Ele estará conosco nas nossas boas inspirações, afinal, de nós mesmos só nos vem nossos pecados e fraqueza, como diz a sequência de Pentecostes:

“Sine tuo numine,
nihil est in homine,
nihil est inoxium”
sem a Vossa luz, nada há no homem, nada há de inocente.

Na segunda, já não é mais a nossa vontade guiada por nós, mas o próprio Espírito Santo se apodera de nossa alma, de tal forma que nossas ações se tornam fáceis, agradáveis, perfeitas mesmo. Os obstáculos são retirados, as dificuldades desaparecem, a virtude e a graça fluem como um grande rio. Há o consentimento da própria pessoa que sofre essa ação do Espírito, mas é Ele quem age primeiramente.

A primeira ação se assemelha a um barco a remo, que avança lentamente e com grande esforço. Também se assemelha a uma criança pequena, que ainda não anda bem, que tropeça e se atrasa diante de um obstáculo maior. A segunda ação se assemelha a um barco a vela, que flui e corta as ondas sem dificuldade, com velocidade e graça. Também se assemelha a um pai que, se compadecendo do seu filho que cai e se detém diante de um obstáculo no seu caminho, o pega no colo e o leva, sem nenhum esforço da parte da criança.

De todos os dons, o temor de Deus é aquele que parece depender mais de nós, para se tornar ato, do que todos os outros. Este é o primeiro dos dons, o que, por isso, nos assemelha a crianças. Eis uma das muitas virtudes infantis que perdemos com o tempo e a vida. Feliz daquele que se mantém a si mesmo como uma criança diante de Deus, sempre pedindo ajuda, sempre se humilhando e pedindo socorro nas horas da tentação, dos perigos, nos momentos de grande dificuldade. Triste é aquele que se orgulha, que não pede ajuda, que, por vaidade, acha que incomodaria a Deus com seu pequeno problema. Engana-se quem pensa assim! Deus quer nos ver pedir, Deus é plenamente capaz de ouvir nossas preces e atender a cada um dos nossos pedidos, se for para nosso bem e para nossa salvação.

É importante lembrar-se também de que o Espírito Santo age em nós tanto nas ocasiões grandes e importantes quanto nas pequenas e corriqueiras. Pois assim como é possível (e mesmo necessário) exercer as virtudes tanto nas pequenas quanto nas grandes coisas, assim também pode o Espírito Santo agir em nós, pois “O vento sopra onde quer, e vós ouvis o seu som, mas não sabe de onde vem nem para onde vai. Assim acontece com todos os nascidos do Espírito” (S. João 3, 8).

Então ter o Temor de Deus é fácil, até as crianças conseguem. Como, então podemos adquiri-lo? Basta ter medo de Deus, medo do inferno, de sua justiça tremenda e implacável? Como se diz no Dies Irae, sequência da Missa de Defuntos:

“Quid sum miser tunc dicturus?
Quem patronum rogaturus,
cum vix justus sit securus?”

Que direi eu, miserável? A quem recorrerei como advogado, Quando até o justo não está seguro?

O que pode um mero pecador fazer diante de tamanha dureza, diante do nome Santo e Terrível? Pois o mesmo hino nos dá a resposta logo após:

“Rex tremendae majestatis,
qui salvandos salvas gratis,
salva me, fons pietatis.”

Ó Rei de tremenda majestade, Que salva os eleitos sem mérito algum, Salva-me, fonte de misericórdia.

Nossa salvação já nos é graça, já nos é “gratis”, sem mérito algum da nossa parte. Esse Rei de tremenda majestade também é a fonte da misericórdia. Ele também é um de nós, nasceu, padeceu, morreu. Também ele sabe da nossa fraqueza e da nossa dor. Na sua força, há perdão, na sua justiça, há misericórdia.

Existe, porém, o temor dos pecadores, dos condenados. O medo de pensar na morte, o medo de pensar nas coisas santas (conquanto essas coisas acusam sua má vida). O medo, enfim, que Adão e Eva tiveram depois de haverem pecado, o medo que o servo infiel teve que o levou a esconder o talento, o medo que São Pedro teve quando negou seu Mestre. Esse medo é ruim, fonte de mais pecados, e leva, por fim, à perdição.

Existe outro temor, o temor servil, daquele que faz o bem e rejeita o mal por medo do inferno, por medo da justiça divina. Esse diz: se não houvesse inferno, eu teria outra vida. Ou: que pena que isto ou aquilo é pecado. Esse é um temor ruim, carregado de vícios.

Há um certo tipo de temor servil que pode nos ser útil, o medo do julgamento divino. Este medo é útil na educação das crianças e na conversão de pessoas mais simples, que acabaram de sair de uma vida de pecados. Este medo produz conversões e pode levar a uma vida de virtude. O Concílio de Trento o declarou dom de Deus, contra os protestantes. [ESVC,16]

Existem, por fim, o temor filial, o temor das crianças. A criança vê a grandeza e justiça de seu pai, olha então para si mesma e seus erros, suas fraquezas, sua ignorância. Olha novamente ao pai e vê nele, apesar da sua justiça, sua bondade e misericórdia, enfim, seu grande amor por ela. Na dúvida, essa criança corre aos braços de seu pai, fugindo da sua justiça no próprio abraço desse juiz. Ela confia que estará segura ali de si mesma e da justiça de seu pai. Esse é o temor dos santos, o temor do qual os patriarcas e profetas tanto falaram no Antigo Testamento.

Há uma relação íntima entre o dom do Temor e a virtude teologal da Esperança. Temos a confiança em Deus, confiança em Sua Palavra que não volta atrás, confiamos na Sua misericórdia. Ora, se o temor de Deus não teme ao próprio Deus e Sua justiça, então o que ele teme? O que põe medo no justo, qual o maior temor do santo?

Ora, tão grande e bondoso Pai nunca nos deixará. “Quem nos separará do amor de Cristo? A tribulação? A angústia? A perseguição? A fome? A nudez? O perigo? A espada?” (Rom. 8,25). Só há uma coisa que pode separar o justo do seu Senhor, que pode nos separar de Deus. A saber: nós mesmos. Nossa capacidade de pecar, de pecar mortalmente em particular, eis o grande perigo. Dos nossos inimigos, esse é o maior. O mundo nos expõe à vergonha, ao escárnio, à pobreza e à nudez. O demônio nos envia sofrimentos e tentações, mas só a nossa própria carne é capaz de, efetivamente, nos separar de Deus. Como diria Cícero, contra um senador traidor: “O inimigo está dentro dos portões”.

Portanto, a alma que possui o temor de Deus é uma alma cheia de temperança. Toma os devidos cuidados nos seus negócios dessa vida, foge incessantemente das ocasiões de pecado, tanto quanto do pecado em si. Faz a guarda dos olhos e a guarda do coração, porque podemos pecar mesmo em pensamento. Há uma grande relação entre o dom do Temor e a virtude da temperança.

Este dom de Temor é assim uma ajuda, tanto para a piedade que ele favorece, tanto para a esperança que acentua, quanto para a temperança que faz reinar. Quando a alma, tendo recebido esse dom do Temor e com medo de se separar de Deus, põe-se totalmente entre suas mãos, para que ele não a deixe e faça dela o que quiser, quando a alma foge do pecado e das ocasiões, ela entrou no estado de almas timoratas.

Esta alma não é escrupulosa porque o escrúpulo não tem nada a ver com o dom de Temor; o escrúpulo é uma enfermidade, uma provação natural ou sobrenatural. Esta alma não tem, tampouco, uma consciência muito larga, apesar de ter uma certa largueza de espírito, mas que não vai até o desprezo das pequenas coisas. Ela se estabelece de uma só vez no justo meio, a igual distância de um medo exagerado e de uma consciência demasiadamente aberta; tem uma consciência justa, timorata.

São almas notáveis por sua retidão. São justas, “estão no mundo, mas não pertencem a ele”. São amáveis e agradáveis, sem perder o senso de firmeza. O Temor anima cada um dos seus julgamentos. (ESVC, 19, 20)

Lembremos sempre que “Deus começa a reinar em uma alma quando esta alma está sob inspiração do dom de Temor de Deus que faz os pobres de espírito”.

 

Referências

Gardeil, A. O. P., O Espírito Santo na Vida Cristã (ESVC);
Scupoli, Pe. Lourenço, O Combate Espiritual e o Caminho do Paraíso (CECP);
Catecismo Romano;
Sagradas Escrituras, Salmos;
Liber Usualis.

Por um congregado mariano

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