O desânimo

O desânimo é a tentação mais perigosa que o inimigo de nossa salvação pode empregar. Em outras tentações, ele ataca alguma virtude em particular e se mostra abertamente; no desânimo, ele ataca todas as virtudes, e o faz secretamente.

A armadilha é facilmente percebida em outras tentações: encontra-se na religião, muitas vezes até na razão, princípios que os condenam. O conhecimento do mal, para o qual não podemos cegar a nós mesmos, a consciência e as verdades da religião que foram despertadas, servem como ajuda para nos sustentar. Mas, no desânimo, não há nada em que nos apoiar: sentimos que a razão não é suficiente para nos habilitar a praticar todo o bem que Deus requer de nós. Por outro lado, não ousamos esperar receber de Deus todo o auxílio de que necessitamos para vencer nossas paixões; assim, ficamos desanimados e quase reduzidos ao desespero, o próprio ponto para o qual o diabo tenta conduzir a alma desanimada. Em outras tentações, percebemos claramente que é errado permitir que a mente demore nelas; mas no desânimo, que se disfarça sob uma multiplicidade de formas, vemos fortes motivos para ceder ao sentimento que não consideramos uma tentação. Esse sentimento, porém, nos faz imaginar que a perseverança na prática da virtude é impossível e deixa a alma sujeita a ser vencida por todas as suas paixões. Portanto, é de extrema importância evitar essa armadilha.

Que fique bem entendido, o desânimo é uma tentação e traz todas as marcas de ser tal; pois todo sentimento que se opõe à lei de Deus, seja em si mesmo ou pelas consequências que possa ter, é evidentemente uma tentação. É assim que julgamos todas as tentações às quais estamos sujeitos. Se tivermos um pensamento contra a fé, um movimento contra a caridade ou alguma outra virtude, consideramos isso uma tentação; nos afastamos dele e tentamos provocar atos opostos ao pensamento ou sentimento que nos colocou em perigo de ofender a Deus.

Agora, a esperança e a confiança em Deus são a nós ordenadas igualmente com a fé e as outras virtudes. Portanto, o sentimento que se opõe à esperança é tão proibido quanto o que é contra a fé ou qualquer outra virtude: tem, portanto, todos os traços de uma tentação real. A lei de Deus nos obriga freqüentemente a fazer atos de fé, esperança e caridade; e, portanto, nos proíbe todos os sentimentos intencionais contrários a essas virtudes sagradas e necessárias. Como, então, o desânimo pode ser visto de outra forma senão como uma tentação, e mesmo como uma tentação muito perigosa, já que expõe a alma cristã a abandonar toda obra de piedade?

Para tornar este perigo mais claro, devemos considerar o modo geral de conduta humana. Não é a esperança de sucesso que nos faz agir e nos anima a superar suas dificuldades? Remova-se a esperança de sucesso e logo caímos em inação. Ninguém, exceto um louco, se esforçaria por um objetivo que ele não espera obter. Na vida religiosa, o desânimo produz o mesmo efeito; ele se assenta no mesmo princípio: a falta de meios para alcançar o fim que nos propomos.

Quando perdemos a esperança de superar as dificuldades que podemos encontrar na prática de qualquer virtude, deixamos de tentar, ou debilmente nos esforçarmos, para fazê-lo. Esses esforços insuficientes apenas aumentam nossa fraqueza e, vencidos pelo desânimo, somos facilmente levados pela paixão que nos move. A sensação de nossa fraqueza primeiro nos coloca em dúvida e em dificuldade. Nesse estado, ocupados apenas pela dificuldade do combate, não distinguimos os princípios que deveriam nos guiar. O medo de não ter sucesso nos impede de empregar os meios que Deus nos deu, e nós, portanto, tornamo-nos indefesos contra nosso inimigo. Somos como uma criança que ao ver a aproximação de um gigante começa a tremer e se esquece que uma pedra atirada em nome do Senhor pode prostrá-lo. Da mesma forma, esquecemos que temos uma ajuda poderosa na bondade de um Pai terno, a quem só temos de invocar para ser vitorioso em todas as nossas lutas.

Na raiz do desânimo, portanto, está uma crise de esperança. A esperança, como já dito, é uma virtude teológica, como a fé e a caridade. Sua origem, assim, pode ser encontrada apenas em Deus, excluídos nossos próprios méritos. Não esperamos em Deus porque temos sido fiéis a Ele, mas esperamos Nele para que possamos obter a graça de sermos fiéis. Em que, então, se funda a esperança cristã e qual é o seu motivo, de acordo com a religião? O Papa Bento XIV, em sua forma de Ato de Esperança, apontou as perfeições divinas que constituem este motivo. O ato é este: “Ó meu Deus, espero em vós, porque sois fiel às vossas promessas, sois todo-poderoso, e porque vossas misericórdias são infinitas”. Nesse motivo, não há nada humano – tudo é retirado do próprio Deus. E poderia haver um motivo mais forte para nos fortalecer na esperança e confiança em Deus? Encontramos aqui a misericórdia de Deus, que está mais ansioso em derramar Seus dons sobre o homem do que o homem em recebê-los; que deseja seu verdadeiro bem e sua salvação com muito mais sinceridade do que eles próprios.

Esta misericórdia é tão infinita, que toda a malícia da humanidade não a pode exaurir; e, depois de ter se manifestado tão maravilhosamente no dom que Deus nos concedeu, Seu único Filho para nosso resgate, não nos recusará a ajuda que Ele deseja nos proporcionar neste benefício inestimável. Os efeitos desta misericórdia divina nos foram prometidos pelas garantias que Deus nos deu, de vir em nosso auxílio, sempre que o pedirmos, para realizar nossa salvação. Deus, que é a própria verdade, não pode nos enganar e é essencialmente fiel às promessas que faz às Suas criaturas. Como, então, podemos ter qualquer ansiedade ou nutrir seriamente qualquer medo de que Ele nos rejeite ou nos abandone, quando O invocamos com confiança?  É verdade que, para conceder nossa oração, Deus requer que o invoquemos com confiança – mas devemos merecer obter Seus benefícios se os pedirmos com um coração duvidoso; duvidando da própria bondade de que experimentamos o efeito a cada instante de nossas vidas, e de tantos milhares de maneiras? Não, como diz o apóstolo São Tiago: “Que peça com fé, nada duvidando“. O coração que ora com dúvida e desconfiança nada obterá.

Deus sendo infinitamente rico, possui todo o bem, tanto na ordem da graça como na ordem da natureza. Sendo infinitamente poderoso, não há nenhum desses tesouros dos quais Ele não possa nos fazer participar. Sendo infinitamente bom, Ele está disposto a nos conceder, de acordo com Suas promessas, tudo o que é necessário para nossa salvação. É com base nesses motivos substanciais, extraídos das perfeições de Deus, que nós devemos encontrar nossa esperança e só assim nossa confiança pode ter aquela firmeza inabalável que deveria ter.

Os argumentos que mostram a necessidade da esperança cristã são prontamente admitidos; mas o demônio se esforça, por suas sugestões engenhosas, para fazer a alma desanimada encontrar pretextos para não aplicá-los a si mesma. A indolência ou aversão a tudo que causa problemas é comum a todos os homens. Quando nos dedicamos ao serviço de Deus, queremos desfrutar da felicidade de nossa condição sem que nos custe muito, esquecendo as palavras de Nosso Salvador: “O reino dos céus sofre a violência, e são os violentos o levam”(Mt 11,12). Lembremo-nos sempre de que Cristo não entrou em Sua glória antes de haver sofrido, e que Ele admitiu que Seus santos a compartilhassem somente depois cruzes e combates e sacrifícios, a renúncia de suas paixões e sua vontade própria.

O céu é uma recompensa; e só podemos conquistá-lo preferindo Deus e Sua santa vontade antes de todas as outras coisas, e estando prontos para sacrificar tudo o que é mais caro para nós sempre que Ele o exigir. Isso, então, é certo, e São Paulo o declara: “Também o que luta pelo domínio não é coroado, se não lutar legitimamente” (2 Tm 3, 5). Aspirar à coroa da justiça sem lutar é uma contradição às verdades da fé – esperar lutar e não sofrer é contrário ao bom senso. Mas muitas vezes é a partir do próprio conhecimento que temos do que Deus exige de nós, que o demônio usa seus argumentos para nos desencorajar, fazendo uso de nossa preguiça para nos intimidar de realizar o trabalho necessário.

Não nos custa nada seguir nossas inclinações naturais; custa-nos muito reprimi-los, e o inimigo de nossas almas nunca perde isso de vista e consegue, prontamente, nos fazer preferir o primeiro. Ele põe diante de nossos olhos uma representação viva das dificuldades que enfrentaremos no serviço de Deus, e que nossa vida será uma tortura e uma batalha constantes. Mas, por outro lado, ele oculta cuidadosamente a paz de coração que encontraremos obedecendo a Deus, as sólidas consolações que receberemos em nossas provações, a esperança de nossa recompensa eterna. Não, o diabo nos mostrará nossa fraqueza em toda a sua extensão, nos lembrará de nossas repetidas recaídas; mas a misericórdia de Deus e o apoio daquele braço todo-poderoso que tantas vezes nos sustentou, ele tentará nos fazer esquecer.

Totalmente absorvidos pelo pensamento de nossa fraqueza e as dificuldades do que empreendemos, caímos no desânimo, em vez de exclamar com o santo rei Davi: “Embora eu ande no meio da sombra da morte, não temerei males: pois vós estais comigo “(Salmos 22). Nesse estado de desânimo, temos apenas uma vaga esperança de que Deus nos ajudará; dificilmente o esperamos, dificilmente ousamos pedi-lo; talvez, até mesmo, tenhamos medo de alcançá-lo, para que não nos obrigue a abandonar certas más inclinações que a nós são agradáveis. Nessa condição, desesperados por sermos capazes de perseverar em tal vida de auto-violência, lutamos fracamente, se é que lutamos. Nossa primeira recaída serve para confirmar essa impressão – de que é inútil resistir e de que devemos apenas esperar o tempo em que nossas paixões serão mais fracas.

Daí em diante, tudo se torna mais difícil. A repulsa e o espírito de indiferença com relação a nossos deveres tomam posse de nossa mente e coração, e esses deveres são assim tornados ainda mais difíceis. Os nossos exercícios de piedade omitimos por completo ou feitos tão negligentemente que dificilmente podem agradar a Deus. Um estado de distração e dissipação da mente e do coração sucedem à vida interior que antes tínhamos. Abandonamos nossas práticas piedosas, resistimos à graça, silenciamos a voz de nossa consciência e até evitamos entreter bons pensamentos. Seguimos apenas a curva de nossas inclinações e caprichos, onde não encontramos resistência. Em Sua misericórdia, Deus às vezes pode falar conosco, mas começamos a temer a voz que nos impele a nos livrar dos grilhões da preguiça e da mornidão. Este é o ponto para o qual o inimigo de nossa salvação tem procurado nos conduzir; ele queria nos impedir de refletir e de trabalhar para nossa salvação; e ele conseguiu.

Como vencer tão grave perigo? Ouvindo a voz de nosso Salvador: “Basta para cada dia o seu mal. Não vos preocupeis…” (Mt 6, 34). Sempre devemos considerar os males que se apresentam a nós de modo separado. Temos apenas que responder pelo presente e, portanto, atormentar-nos com o futuro incerto é uma loucura, é armar ciladas para a própria destruição. Por que deveríamos sofrer na imaginação o que talvez nunca tenhamos que sofrer na realidade? “Basta para o dia o seu mal“. Expor-se à tentação é contrário à religião e à prudência cristã.

Se, então, uma pessoa comete violência contra si mesma por amor de Deus, e na esperança de recompensa – se, em qualquer prova a que está exposta, ela se ocupa exclusivamente com essa prova, e pensa apenas em como dela tirará o maior benefício – essa pessoa facilmente passará por todas as provas sucessivamente, pela graça de Nosso Senhor, e com grande mérito para si mesmo.

Tomemos por exemplo uma pessoa na vida religiosa que sente uma repulsa pelo jugo e restrição da obediência e da regra. Suponhamos que, em vez de se superar em cada ocasião, essa pessoa comece a considerar a dificuldade de uma vida inteira passada em tal constrangimento; sua coragem diminui com a perspectiva, e ela está pronta para se desesperar. Consideremos, ao contrário, que ela apenas olhe para isso como a restrição de um dia, ou meio dia, ou apenas em conexão com um dever presente específico: somente nessa consideração, metade da dificuldade desaparece e ela descobre que sua força é igual à fraqueza. E, de fato, freqüentemente é apenas uma prova momentânea, e o problema cessa quando a determinação é tomada com firmeza.

Tenhamos certeza, também, de que estamos muito enganados, se pensarmos que a dificuldade que experimentamos na auto-mortificação e no cumprimento de nossos deveres por amor de Deus continuará tão viva e dolorosa como a encontramos no início. A experiência nos ensina que, por princípios meramente naturais, quando frequentemente realizamos qualquer ação, ou com a ajuda da graça divina nos acostumamos a agir por bons motivos, contraímos um hábito de fazê-lo que se torna mais fácil a cada repetição. Qualquer dificuldade que existia no início diminui gradualmente e finalmente desaparece. Devemos apenas, por enquanto, fazer violência a nós mesmos, e realizarmos nossas ações com fidelidade e exatidão quanto ao tempo e lugar, e logo descobriremos que as fazemos, por assim dizer, instintivamente, e o motivo religioso parece se apresentar por si mesmo.

Além disso, a religião ensina-nos que Deus recompensa os esforços que fazemos para nos superarmos, concedendo graças que não só diminuem nossas dificuldades, mas até nos fazem sentir prazer no que no início foi tão doloroso. E mesmo que a prova continue por mais tempo, Ele nunca permitirá que ultrapasse as nossas forças auxiliado pela graça que Ele concedeu e que podemos obter sempre através da oração. Confiemos nesta promessa, pois ela nunca pode falhar.

Nunca nos detenhamos na incerteza de nossa perseverança sem nos lembrarmos da garantia de Deus de que nos ajudará e nos recompensará; somente isso nos fortalecerá e reanimará nossa confiança para vencer o desânimo

Pe. J. Michael em “Spiritual Despondency and Temptations”
Tradução e adaptação por um congregado mariano

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