Segundo Domingo da Quaresma
Ano Litúrgico, Tomo IV – D. Prosper Guéranger.
Tradução por um congregado mariano.
A meditação que nos é apresentada, neste segundo domingo, é uma das mais importantes desta época santa. A Igreja oferece a nós a lição que Nosso Salvador deu a três de Seus apóstolos. Esforcemo-nos para sermos mais atentos do que eles foram.
Jesus estava prestes a passar da Galileia para a Judéia, para que pudesse ir até Jerusalém e estar presente na festa da Páscoa. Foi aquela derradeira Páscoa, a qual começaria com a imolação do cordeiro simbólico, e terminaria com o sacrifício do Cordeiro de Deus, que tira os pecados do mundo. Jesus tinha se dado a conhecer a seus discípulos. Suas obras Lhe deram testemunho. Mesmo para os que antes eram, de certa forma, estranhos para Ele; todavia, quanto aos Seus discípulos, não tinham eles todos os motivos para serem fiéis a Ele, até a morte? Não tinham eles escutado Suas palavras, as quais tinham tanta força que lhes convenciam profundamente? Não tinham eles experimentado o Seu amor, ao qual era impossível resistir? E não tinham visto o quão pacientemente Ele havia suportado seus modos rudes e impróprios? Sim, eles deviam conhecê-lo. Eles escutaram o que foi dito por um de seus companheiros: Pedro declarou que Ele era o Cristo, o Filho do Deus Vivo 1. Não obstante, o julgamento que Nosso Senhor em breve enfrentaria era de um tipo tão terrível, que Ele misericordiosamente os prepararia contra a tentação, através de uma graça extraordinária.
A cruz deveria ser escândalo e pedra de tropeço 2 para muitos, e ai! Mais do que isso. Jesus disse aos Seus apóstolos na Última Ceia: “Esta noite serei para vós uma ocasião de queda 3“. Guiados pelo espírito da carne, como eles eram, então, o que pensariam quando o vissem apanhado por homens armados, algemado, arrastado de um tribunal para outro, e não fazendo nada para se defender! E quando descobrissem que o Sumo Sacerdote e os fariseus – aos quais Jesus incomodava por sua sabedoria e milagres -, tinham agora sido bem sucedidos em sua conspiração contra Ele, que choque! Mas ainda havia algo a mais: as pessoas que, alguns dias antes, o cumprimentavam tão entusiasticamente com seus Hosanas, exigiam agora Sua execução; e ele teria que morrer, entre dois ladrões, na cruz, entre os insultos de seus inimigos triunfantes.
Não nos causa temor que esses discípulos, ao testemunhar as humilhações e sofrimentos de Nosso Senhor, perderão a coragem? Viveram eles em Sua companhia por três anos, mas quando veem que as coisas que Ele anunciou estão realmente se cumprindo, a lembrança de tudo o que eles tinham visto e ouvido será capaz de mantê-los leais a Ele? Ou se acovardarão e fugirão? Jesus seleciona três entre os doze que são especiais para ele: Pedro, a quem Ele instituiu rocha sobre a qual a Igreja deve ser construída e para quem prometeu as chaves do Reino dos Céus; Tiago, filho do Trovão, que será o primeiro mártir entre os apóstolos; e João, o irmão de Tiago e seu discípulo amado. Jesus resolveu levá-los consigo e mostrar-lhes um vislumbre daquela glória, que, até o dia determinado para a sua manifestação, é escondida dos olhos dos mortais.
Assim, Ele deixa o restante de Seus discípulos na planície perto da Nazaré, e vai na companhia com os três privilegiados em direção a uma alta colina chamada Tabor, que é uma continuação do Líbano, e que o salmista nos diz para nos alegrar em nome do Senhor4. Assim que alcançou o cume da montanha, os três apóstolos observam uma mudança repentina sobre Nosso Senhor; Seu rosto brilha como o sol, e as suas humildes roupas tornam-se brancas como a neve. Observam que dois veneráveis homens se aproximam e lhe falam sobre o que Ele está prestes a sofrer em Jerusalém. Um é Moisés, para quem foi dada a Lei; o outro é Elias, o profeta, o qual foi arrebatado em uma carruagem ardente sem ter passado pelos portões da morte. Estes dois grandes representantes da religião judaica – a Lei e os Profetas – adoram humildemente a Jesus de Nazaré. Os três apóstolos não são apenas deslumbrados pelo brilho que veem de seu Divino Mestre; mas estão cheios de tal arrebatamento de prazer, que não podem suportar o pensamento de deixar o lugar. Pedro propõe permanecer e construir três tendas: para Jesus, Moisés e Elias. E enquanto admiram a vista gloriosa e contemplam a beleza da natureza humana de Jesus, uma nuvem brilhante soa alto e uma voz é ouvida falando com eles: é a voz do Eterno Pai, proclamando a divindade de Jesus e dizendo: “Este é o meu filho amado”.
Esta transfiguração do Filho do Homem, esta manifestação de Sua glória, durou apenas alguns momentos: a missão dele não era no Tabor: era a humilhação e o sofrimento em Jerusalém. Cristo, portanto, retirou o brilho que Ele permitiu revelar; e quando voltou aos três apóstolos, os quais, ouvindo a voz da nuvem, sentiram medo, eles não podiam ver ninguém exceto Jesus. A nuvem brilhante desapareceu; Moisés e Elias desapareceram. Que favor lhes foi concedido! Lembrar-se-ão do que viram e ouviram? Eles testemunharam tamanha revelação da divindade de seu querido Mestre! É possível que, quando chegada a hora do julgamento, eles irão esquecer, e duvidarão de Deus ser Deus? E quando o virem sofrer e morrer, eles se envergonharão e negarão a Nosso Senhor? Ai! O Evangelho nos contou o que se passou.
Pouco tempo depois, Nosso Senhor celebrou Sua Última Ceia com Seus discípulos. Quando a ceia terminou, Ele os levou para outro monte, o Monte das Oliveiras, que fica a leste de Jerusalém. Deixando o restante na entrada do jardim, ele avança com Pedro, Tiago e João, e depois diz-lhes: “Minha alma está triste até a morte: ficai aqui e vigiai comigo 5“. Ele se retira a uma pequena distância deles e reza para Deus Pai. O coração de Nosso Redentor está pesado de angústia. Quando retorna aos três discípulos, está enfraquecido pela agonia sofrida, e Suas roupas estão encharcadas de Sangue. Os apóstolos estão cientes de que Ele está triste até a morte, e que está próxima a hora em que Ele deve ser preso: eles estão vigiando? Estão prontos para defendê-Lo? Não: eles parecem ter se esquecido d’Ele: estão profundamente adormecidos, porque os olhos estão pesados. No entanto, algum momento, e todos terão fugido dele, e Pedro, o mais valente de todos, estará jurando que nunca conheceu o Homem.
Após a Ressurreição, nossos três apóstolos fizeram grande expiação por sua conduta covarde e pecaminosa, e reconheceram a misericórdia com que Jesus buscou fortalecê-los contra a tentação, mostrando-lhes Sua glória no Tabor poucos dias antes da Sua Paixão. Não esperemos até que O tenhamos traído: reconheçamos imediatamente que Ele é Nosso Senhor e Nosso Deus. Em breve estaremos celebrando a memória de Seu Sacrifício; como os apóstolos, devemos vê-lo humilhado por seus inimigos e suportar os castigos da justiça divina. Não devemos permitir que a nossa fé seja enfraquecida, quando virmos o cumprimento das profecias de Davi e Isaías, de que o Messias deve ser tratado como um verme da Terra6 e ser coberto de feridas, de modo a tornar-se como um leproso, o mais rejeitado dos homens, e o homem das dores7. Devemos lembrarmo-nos do grande momento do Tabor, e das adorações dadas a Ele por Moisés e Elias, da nuvem brilhante e da voz do Eterno Pai. Quanto mais o virmos humilhado, mais devemos juntar nossas aclamações com aquelas dos anjos e dos vinte e quatro anciãos, os quais São João, uma das testemunhas da Transfiguração, ouviu gritar com grande voz: Digno é o Cordeiro imolado de receber poder, riqueza, sabedoria, força, glória, a honra e o louvor8!”