São Bernardo de Claraval – O Doutor Melífluo
[…] o seu estilo vivaz, florido, abundante e sentencioso é tão suave e doce que atrai o espírito do leitor, deleita-o e eleva-o para as coisas do alto; excita, alimenta e dirige a piedade; força, enfim, o ânimo a procurar atingir os bens que não são caducos e passageiros, mas verdadeiros, certos e eternos. Por isso os seus escritos foram sempre tidos em grande consideração; e deles a própria Igreja tirou não poucas páginas celestiais e ardentes de piedade para a sagrada liturgia.1 Parecem vivificadas pelo sopro do Espírito Santo e resplandecentes de tal esplendor de luz que nunca se podem apagar no decurso dos séculos, pois nascem da alma de quem escreve, sequioso de verdade e caridade e desejoso de nutrir os outros e conformá-los com a sua imagem”.2
Assim diz o Papa Pio XII sobre os escritos de S. Bernardo de Claraval, na sua encíclica Doctor Melilfluus, pela ocasião do oitavo centenário da morte do abade de Claraval. Pela eloquência e doçura de suas palavras, ficou conhecido como doutor melífluo, isto é, que tem doçura como o mel.
Aquele que já dedicou seu tempo pelas páginas do restaurador da ordem cisterciense pode atestar: é possível contemplar seu zelo pela Igreja e seu amor por Deus na ponta de sua pena. Como não se admirar e não ser comovido à devoção pela Mãe de Deus, ao ler seu sermão sobre a Confiança em Nossa Senhora? Ou pelo seu hino Ave Maris Stella? Ou ainda pelo seu tão difundido Tratado sobre o Amor de Deus? Por seus escritos pode-se admirar o poder que S. Bernardo tinha para arrastar multidões à conversão e à vida elevada nos mais desconhecidos claustros dos mosteiros medievais, conduzindo-os à salvação eterna. E justamente um desses casos confirma esta sentença.
Por volta do ano 1131, converteu-se um erudito de nome Henrique Murdach, que dirigia uma escola na Inglaterra e possuía grande prestígio em seu país. A devoção do mosteiro de Claraval espalhava seu aroma de santidade pela Europa, arrebatando muitos a entregarem-se a Cristo nesta casa. Esta atração chegou às terras inglesas, a ponto de Henrique e seus discípulos também serem atraídos. Dois de seus discípulos, Guilherme e Ivo, partiram para Claraval e contaram a S. Bernardo que seu mestre também inclinava-se a se retirar do mundo. Por isto, o santo abade quis colaborar com a graça Deus, escrevendo ao mestre uma das mais belas cartas de sua época, demonstrando todo o conhecimento das Sagradas Escrituras, que meditava dia e noite, e o seu zelo pela maior glória de Deus. Por esta carta pode-se atestar as palavras de Pio XII a seu respeito:
Ao seu amado Henrique Murdach, de Bernardo, abade de Claraval. Que importa que flutueis na oscilante corrente da fortuna, se não conseguis pousar o pé no rochedo? Todavia, se tomastes uma resolução definitiva, de forma a poderdes dizer ao Senhor com o Salmista: ‘Jurei e estou empenhado em seguir os mandamentos da tua justiça’ (Sal. 118, 106), tanto a prosperidade como a adversidade não lograrão separar-vos mais da caridade de Cristo (Rom. 8, 39). Oh, se conseguísseis compreender o que está escrito: ‘Os olhos não viram, ó Deus, além de ti, que coisas preparaste para os que te amam! (Is., 64, 4; 1 Cor., 2, 9). Dizem-me que estudais os profetas: ‘Julgais compreender o que ledes?’ (Act., 8, 30). Em caso afirmativo, decerto não ignorais que Cristo é o objetivo das declarações pronunciadas. Ora, quem desejar alcançar Cristo será melhor sucedido seguindo os seus passos do que lendo a seu respeito. Por que devereis procurar na página escrita a Palavra que agora se oferece à vossa contemplação visivelmente? Do seu esconderijo por detrás dos profetas, Ele avançou para ser visto pelo pecador; desceu dos cumes coroados de névoa da Lei, ‘como um noivo ao emergir da câmara nupcial’ (Sal. 18, 6), para o límpido Evangelho. ‘Quem possui ouvidos que ouça’ (Apoc., 2, 7) a Palavra que sai do templo: ‘Se alguém tem sede, que venha até mim e beba’ (João, 7, 37), e: ‘Vinde a mim todos os que trabalhais e sentis fatigados, e refrescar-vos-ei’ (Mat., 11, 25). Estareis receoso de sucumbir à fadiga onde a Própria Verdade promete amparar-vos? Oh, se ‘as águas escuras nas nuvens do ar’ (Sal. 17, 12) vos deliciam tanto, que tesouros de alegria sagrada não obtereis das doces fontes do Redentor! (Is., 12, 3). Oh, se provásseis ao menos uma vez, ‘o belo trigo’ com que o Senhor inundou Jerusalém! (Sal. 147, 3). Com que satisfação não abandonaríeis então aos judeus amadores da escrita essas migalhas duras com que eles se contentam! Prouvera a Deus que fôsseis meu condiscípulo na escola de amor divino em que Jesus é o mestre! Prouvera a Deus que me fosse permitido oferecer ao Espírito Santo o vaso purificado do vosso coração para Ele encher com o bálsamo que ‘ensina todas as coisas!’ (1 João, 2, 27). Com que agrado partilharia convosco o pão celestial que, ainda quente, fumegante e tenro do forno, se assim me posso exprimir, Cristo oferece frequentemente aos seus pobres! Oh, se pudesse comunicar-vos que pequenas gotas Deus, na sua bondade, faz cair sobre mim da ‘chuva livre’ que Ele ‘pôs de parte para a sua herança!’ (Sal. 67, 10). Acreditai quem pode falar pela experiência: encontrareis mais instrução nos bosques do que nos livros. As árvores e as pedras ensinar-vos-ão o que nunca aprendereis de professor humano algum. Julgais impossível ‘sugar mel dos rochedos e azeite da pedra mais dura?’ (Deut. 32, 13). Não está escrito que ‘as montanhas verterão doçura e as colinas inundar-se-ão de mel e leite’ (Joel, 3, 18), ‘e que os vales se cobrirão de trigo?’ (Sal. 64, 14). Há muito mais que gostaria de dizer-vos; na verdade, quase não consigo conter-me; porém, como necessitais agora mais de preces do que de instrução, ‘que o Senhor vos abra o coração na sua lei e nos seus mandamentos e vos mande em paz’ (Mac., 1, 4). Adeus3
Os próprios alunos reconheceram que nada mais podiam acrescentar à carta, escrevendo apenas ao fim: “a esta prece, nós, Guilherme e Ivo, dizemos amen. Que mais podemos dizer? Sabeis como ansiamos ver-vos e porquê; todavia, até que ponto desejamos essa satisfação não podeis compreender e a nós impossível exprimir por palavras. Rogamos, portanto, a Deus que, como não nos procedestes aqui como devíeis ter feito, podeis, ao menos, ter a graça de seguir-nos. Nisso dar-nos-eis uma lição de humildade, mostrando-nos que o mestre não se envergonha de caminhar nas pisadas dos seus discípulos”.
Esta carta terminou qualquer indecisão que ainda restasse no mestre, que dirigiu-se a Claraval e tomou o hábito cisterciense, levando vida piedosa e depois sendo enviado para a fundação do mosteiro cisterciense de Vauclair, na diocese de Laon, e depois nomeado, a pedido dos próprios monges, para abade do mosteiro de Iorque, na sua terra natal.
Após essas palavras, podemos concluir com o comentário de Pio XII:
Claramente se deduz dessas palavras que s. Bernardo, com o estudo e contemplação, procurou unicamente dirigir para a Suma Verdade os raios de verdade recolhidos de toda a parte, estimulado pelo amor, mais do que pela sutileza das opiniões humanas. Dessa Verdade impetrou luz para as inteligências, chama de caridade para os ânimos, as retas normas para o comportamento moral. É essa a verdadeira sabedoria, que supera todas as coisas humanas e tudo conduz à sua fonte, ou seja a Deus, para lhe converter os homens. O doutor melífluo, na verdade, não se dando na agudeza do seu engenho, procede lentamente através dos incertos e mal seguros meandros do raciocínio; não se baseia nos artifícios e hábeis silogismos, de que abusavam muitas vezes no seu tempo os dialéticos, mas, como águia que procura fitar o sol, com voo rapidíssimo tende para o vértice da verdade. A caridade, com que agia, não conhece impedimentos e como que dá asas à inteligência. Para ele, a doutrina não é meta última, mas caminho que conduz a Deus; não é coisa fria, em que inutilmente o espírito possa deter-se, como se vagueasse enfeitiçado por flutuantes fulgores, mas é movido, impelido e governado pelo amor. Por isso são Bernardo, amparado por tal sabedoria, meditando, contemplando e amando, eleva-se ao supremo ápice da ciência mística, e une-se com o próprio Deus, gozando já nesta vida mortal a bem-aventurança infinita.
- Cf. Brev. Rom. in festo Ss. Nom. Iesu; die III infra octavam Concept. immac. B.M.V; in octava Assump. B.M.V; in festo septem Dolor. B.M.V; in festo sacrat. Rosarii B.M.V; in festo s. Iosephi Sp. B.M.V; in festo s. Gabrielis Arch.
- Cf. Fénelon, Panégyrique de St. Bernard.
- LUDDY. Ailbe J., São Bernardo de Claraval, p. 492-493