Um pouco da herança da Idade Antiga à Filosofia medieval

Um pedagogo alemão chamado Christoph Keller (ou também Cellarius, em latim), nascido no século XVII, condensou a divisão da história que hoje conhecemos como a tríade idade antiga, média (ou medieval) e moderna.

Para Cellarius, a idade média é compreendida entre a época do imperador Constantino (324 d.C.) até a tomada de Constantinopla pelos turcos (1453 d.C.). Alguns utilizam-se didaticamente como termo inicial a tomada de Roma pelo chefe germânico Odoacro, no ano de 476. O referido pedagogo sempre manifestou-se pela inutilidade da intitulada “idade das trevas”.

A verdade é que existem profundas críticas a esta divisão, pois não há uma lógica racional nos marcos temporais pré-estabelecidos, bem como é no mínimo estranho considerar que os mil anos de história da idade média sejam os únicos ausentes de crescimento civilizatório, onde as pessoas foram estupidamente enganadas e, num passe de mágica, o renascimento do século XV tenha vindo salvá-las.

De qualquer forma, podemos considerar que os medievais não se viam também como superiores, mas eram como herdeiros de pessoas muito importantes. Bernardo de Chartres, do Século XII, fez uma interessante comparação:

Somos comparáveis a anões montados nos ombros de gigantes, o que nos possibilita ver mais coisas que os antigos e mais longínquas; não pela acuidade de nossa própria vista nem pela nossa grande estatura corporal, mas porque nos levantam e nos exaltam àquelas alturas pela sua grandeza gigantesca

Bem, o filósofos da idade média tinham para si alguns como verdadeiros filósofos, os quais, quando não era santos, ou eram pagãos ou infiéis. O filósofo por excelência para os universitários dos séculos XIII e XIV era Aristóteles, um pagão, ou seja, um homem que viveu antes de Cristo sem qualquer contato com a mensagem cristã. Outros seriam Avicena, Averróis e Maimônides, todos infiéis, os dois primeiros muçulmanos e o último judeu.

 

Santo Agostinho e a relação da cultura cristã e profana

O fato é que antes de mais nada é necessário mencionar um Santo bastante difundido na idade medieval, que na divisão histórica atualmente utilizada, viveu durante a Idade Antiga.

Aurelius Augustinus, isto é, Santo Agostinho (354 – 430) foi responsável por solidificar uma linhagem filosófica cristã que relacionava o cristianismo com a cultura profana, quando esta tem algo de aproveitável.

Ele foi professor de retórica antes mesmo de sua conversão, tendo sido um grande estudioso da cultura antiga tardia. Quando converteu-se, pôs a serviço do cristianismo a cultura anteriormente aprendida. Além disso, refletiu fortemente sobre a operação de síntese dos elementos da cultura antiga com o cristianismo, fornecendo aos estudiosos posteriores um ideal cultural e orientações filosóficas.

A exemplo, no seu livro A doutrina cristã, o Santo cita uma passagem do livro de Êxodo que trata da ordem de Deus ao judeus para que, antes de partirem do Egito, pedissem emprestado aos egípcios objetos de ouro, prata e roupas de luxo, e os tomassem para si (Ex 3, 21-22). No Livro da Sabedoria, explica-se que não se tratou tal ação de roubo, mas que os judeus estavam tomando o que lhes era devido por terem trabalhado tanto tempo como escravos na terra dos faraós.

Santo Agostinho observa neste episódio um valor simbólico, ou seja, como deve ser a atitude do cristão em relação à cultura pagã. Logo, as verdades enunciadas pelos filósofos pagãos não devem ser temidas, mas retomadas deles, como se fossem injustos detentores desses bens culturais, porque se serviam mal deles, usando-os para cultos de deuses falsos. Portanto, os cristãos devem, de forma análoga, espoliar dos pagãos a cultura, como os judeus espoliaram bens dos egípcios.

Outro ponto importante dos sermões de Santo Agostinho é a sua interpretação acerca do escrito no livro do Profeta Isaías, capítulo 7, versículo 9: “Se não crerdes, não compreendereis”.

Para ele, tanto a expressão “Entenda eu e crerei” quanto “Antes, crê para entender” são verídicas, mesmo parecendo paradoxas, pois são a síntese da relação entre a fé a razão. Por um lado, é preciso entender algo para crer nele, ou seja, compreender que não se trata de algo absurdo, podendo ser entendido e aceito como objeto de fé, portanto, “entende para crer”. Por outro, o mistério da fé não é algo impenetrável, na opinião de Santo Agostinho e, por isso, uma vez crendo, é possível entendê-lo procurando analogias que esclareçam as verdades. Logo, “crê para entender”.

 

Governo de Carlos Magno e as artes liberais

O Imperador Carlos Magno, governante do Sacro Império Romano Germânico e rei dos lombardos e francos durante parte dos séculos VI e VII, não sabia ler, mas buscou a restauração da instrução do reino. Para isso, contratou um monge inglês chamado Alcuíno, o qual havia sido formado em uma linha inspirada na preocupação do recolhimento dos benefícios das artes liberais da antiguidade tardia. São elas divididas em dois grupos: trivium (ou trívio) e quadrivium (ou quadrívio).

A primeira é responsável pelo estudo dos diferentes aspectos da palavra, dividida em gramática, dialética (ou lógica) e retórica; e a outra pelo caráter matemático, ou seja, aritmética, geometria, música e astronomia. Alguns dos mestres de Alcuíno dedicaram-se às artes liberais como instrumento de interpretação das Sagradas escrituras. Até mesmo o próprio Santo Agostinho considerava esse estudo essencial à leitura e compreensão das escrituras.

Para Alcuíno, das sete artes liberais, a que merece destaque é a gramática, matéria explicativa das palavras e enunciados. Santo Agostinho menciona em A doutrina cristã que para a correta leitura das Escrituras, pelo menos é preciso conhecer as “figuras de linguagem”, pois, do contrário, serão cometidos enganos elementares e grosseiros.

Desse ponto histórico, os medievais extraíram a preocupação constante com as análises linguísticas.

 

Baseado no Livro O que é a Filosofia Medieval de Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento.

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