Meditação sobre os pecados próprios
Ponto I
Considera o número grande e horrível dos teus pecados, do qual poderá ser que a menor parte sejam os que tens na memória; mas que de alguma sorte te lembres deles ao menos confusamente, discorre por todos os lugares em que estiveste, por todas as ocupações que tiveste e por todos os anos que viveste. Oh, como é comprida aquela cadeia de culpas que tens cometido até agora! Sendo ordinariamente um pecado princípio e disposição para outro, não tens deixado parte da tua vida passada que não tenhas profanado com a tua maldade.
Os teus sentidos não foram até agora mais que umas portas por onde entrou o pecado no teu coração. As tuas potências interiores a que têm servido mais frequentemente que a serem instrumentos de todos aqueles vícios, dos quais é capaz o teu estado? Sendo que somente deixaste de cometer aquele mal de que não foste tentado ou de que não tiveste comodidade para o cometer. Sobretudo a tua vontade, feita para amar ao sumo Bem, quantas vezes se fez tão abominável com as coisas indignas e abomináveis que amou, voltando as costas para Deus com uma incrível facilidade, como se não tivesses sobre ti nem lei nem Senhor a quem obedecer.
Portanto, se não queres voluntariamente fazer-te cego, deves confessar que a tua alma é como Jó era no seu corpo, toda cheia de chagas e de podridão e como que uma peçonhenta postema diante dos olhos de Deus. E se um só pecado, se é venial merece a morte, e se é mortal merece demais o inferno , quantas vezes tens tu merecido morrer e quantas mereceste ser precipitado no inferno?
Poderás logo tu negar que a misericórdia de Deus tem sido muito grande para contigo, pois não somente te suportou a ti carregado de tantas culpas, mas te tem, além disso, feito tanto bem? Até quando queres prosseguir em abusar desta mesma divina Misericórdia?
Dá-te duma vez por vencido à bondade do Senhor; confessa a tua malícia e detesta-a quando puderes; pede ao mesmo Deus um arrependimento igual aos teus excessos, propondo de amar daqui por diante a Deus tanto mais fervorosamente, quanto mais ousadamente o tens ofendido, e confiando que Ele benignamente te dará os seus auxílios para não tornares jamais a ofendê-lo.
Ponto II
Considera, além disso, o número e o peso dos teus pecados. Falando das culpas veniais, cada uma delas é o maior mal do mundo, excetuando unicamente o pecado mortal; e falando das culpas graves, todo o pecado grave, por ser um mal que toca a Deus , vence com infinito excesso todos os males que pertencem puramente às criaturas. Portanto, quem empreendesse agravar a todas as criaturas possíveis, como todos estes agravos haviam de ser sempre de perfeições finitas e limitadas, não se poderiam comprar a um só pecado mortal, que agrava e ofende todas as perfeições infinitas de Deus.
Por esta razão a dívida que pelas suas culpas contrai uma alma pecadora, é tão grande que a não podem satisfazer todas as obras boas dos santos e nem as da Virgem Santíssima, ainda que se multiplicassem mil vezes; nem há outra coisa que possa fazer contrapeso na balança da Divina Justiça ao peso dum pecado, senão a Cruz do Redentor.
É pois, o pecado o sumo de todos os males, o único e verdadeiro mal; e todos os outros que nós chamamos males, são uma sombra de mal em comparação do pecado, que só é mal verdadeiro. E assim, se pudessem vir em competência com um pecado todas as penas do inferno, sem ele seria menos infeliz quem as padecesse todas do que quem cometesse uma só culpa grave.
Este é o peso duma só ofensa grave contra a vontade divina. Donde tem certamente um coração de pedra quem não estremece de ter cometido tantas culpas tão francamente como se ofendesse a um Deus fingido.
Que te resta, pois, senão chorar esta temeridade e esta dureza, desejando uma dor maior que todas as dores, para honrares com ela aquela Majestade infinita que tão enormemente desprezaste? Pede de coração a Deus esta dor, já que és tão miserável que podes pecar , mas não te podes dignamente arrepender sem ajuda daquela graça que tantas vezes tens desmerecido: representando ao mesmo Deus que, assim como mostrou tanto a sua paciência em sofrer os teus pecados, assim mostre agora a sua bondade e a sua onipotência em os destruir, concedendo-te o dom da verdadeira penitência.
Ponto III
Considera a medida, além do número e do peso das tuas culpas. Esta medida é a retribuição que deste àquela outra tão grande medida dos benefícios divinos que recebeste.
Considera, pois, um pouco atentamente a multidão e excelência dos bens que Deus te tem concedido, tanto aqueles que são comuns a todos, quanto aqueles que são especiais, nos quais foste preferido às outras criaturas. Pondera logo quanto desmereceste estes benefícios; pondera também a infinita grandeza do teu benfeitor, que é Deus, pela qual todo o dom mais pequeno vem a ser sumamente estimável; e juntamente pondera o seu infinito amor para contigo, elegendo-te desde a eternidade para te fazer tanto bem. Se o Senhor viesse do Céu à terra, se fizesse pobre, se humilhasse, padecesse e morresse somente por amor de ti, que diriam os anjos e os homens vendo-te tão ingrato para com o mesmo Senhor? Pois é certo que não menos te tem Ele obrigado, porque com tanto amor se humilhou, trabalhou, padeceu e morreu por ti, como se fosses somente tu no mundo o que havias de receber o fruto.
Vendo-te, pois, tu obrigado por tantos e tais benefícios, te devia parecer impossível não somente o querer, mas também o poder ofender a Deus, e devias tu também dizer: como é possível que eu tão gravemente ofenda ao meu sumo Benfeitor? Porém, tu não somente O pudeste e quiseste ofender, depois de receber d’Ele tantos benefícios, mas ainda no mesmo tempo em que Ele tos fazia com tanta liberalidade, O ofendeste com incrível ingratidão, servindo-te dos mesmos benefícios como de armas que arrojavas contra o próprio Deus.
Oh, coisa estupenda que Deus te tenha criado de nada, e que tu por nada O tenhas desprezado e injuriado! Que Deus te tenha anteposto a tantos e tantos para te fazer bem, e que tu O tenhas posposto ao teu corpo que é um saco de terra e de podridão! Que Deus fosse morto para te dar vida, e que tu em vez de dar a vida por Ele lhe tenhas renovado e aumentado as chagas; e em vez de O amar como deves, O tenhas amado menos que uma sombra de bem que já passou!
Confere um pouco juntamente estas duas medidas, aquela com que tu foste medido de Deus pelos benefícios, e aquela com que tu lhe correspondeste com as culpas, e confunde-te a ti mesmo diante do mesmo Senhor e diante dos anjos e santos da sua corte que tão fielmente O serviram: renova também diante d’Ele a tua profissão de cristão, obrigado por tantos títulos a servir a teu Criador e Redentor. Pasma de que todas as criaturas te tenham sofrido, e não se voltassem contra ti para vingarem as injúrias que tens feito ao seu Senhor. Confessa que tens merecid
o que a terra se abra e te subverta, que o ar te sufoque, que o sol te abrase com os seus raios, e que se faça outro inferno de propósito para ti, com fogo muito mais abrasador e com demônios muito mais cruéis, pois pela tua ingratidão tens sido pior que os mesmos demônios.
Finalmente, já que Deus te concede tempo para te emendares, promete uma nova vida para o futuro, pedindo ao Senhor que a tantos benefícios que te tem feito, ajunte este de te perdoar as tuas culpas passadas e dar-te abundante graça para nunca mais eternamente O tornares a ofender.