O purgatório visto pelos olhos da Fé

Em seguida, organizou uma coleta, enviando a Jerusalém cerca de dez mil dracmas para que se oferecesse um sacrifício pelos pecados dos mortos. Belo e santo modo de agir, decorrente de sua crença na ressurreição! Pois, se ele não julgasse que os mortos ressuscitariam, teria sido vão e supérfluo rezar por eles. Mas, se ele acreditava que uma belíssima recompensa aguarda os que morrem piedosamente, era esse um bom e religioso pensamento. Eis por que ele pediu um sacrifício expiatório para que os mortos fossem livres de suas faltas

2 Mc 12, 43ss

É muito proeminente na Igreja o oferecimento de orações e penitências pelas almas dos que morreram e estão detidos no Purgatório. Embora vejamos, com pesar, uma grande diminuição nessa prática de piedade — motivada sobretudo pelo deslocamento da doutrina quanto ao fim do homem por uma falsa noção da misericórdia de Deus e confusão na doutrina sobre o pecado, a pena, o mérito e as indulgências — é indelével do espírito cristão a oração pelos que já prestaram contas de suas vidas a Deus e agora padecem no fogo purificador do Purgatório, à espera do momento de verem a Deus.

Essa prática, vivamente recomendada pela Igreja, é muito agradável a Deus, por ser utilíssima aos fiéis falecidos e muito salutar aos vivos. Convém, portanto, considerarmos o que ensina a Igreja sobre o purgatório e por que devemos assistir às almas que ali estão.

 

O que a Fé nos ensina sobre o Purgatório

Diz-nos o Concílio de Trento (1545-1563) , em sua 25ª sessão, sobre o purgatório:

A Igreja Católica, instruída pelo Espírito Santo, apoiada nas Sagradas Letras e na antiga Tradição dos Padres, ensinou nos sagrados Concílios e recentemente também neste Concílio Ecumênico, que existe purgatório, e que as almas que nele estão detidas são aliviadas pelos sufrágios dos fiéis, principalmente pelo santo sacrifício do altar.

Igualmente no Concílio de Florença (1431-1445), podemos ler:

Se o verdadeiro penitente morre no amor de Deus antes de ter satisfeito, por dignos frutos de penitência, os pecados cometidos por ações ou omissões, definimos que suas almas são purificadas após a morte pelas dores do Purgatório; e que os sufrágios dos fiéis vivos ajudam a alivia-los dessas dores, nomeadamente o oferecimento de missas, orações, esmolas e outras obras de piedade

Assim, tendo recebido de Nosso Senhor a doutrina sobre o Céu e o Inferno, recebemos também a do Purgatório, ensinada pelo divino Redentor no Evangelho (Mt 5,22-26), pelo Apóstolo (I Cor 3, 12-15) e pelo Magistério da Igreja como visto. É este um lugar de expiação e punição em que estão cativas as almas daqueles que, mortos em estado de graça sem, porém, estarem puros o suficiente para comparecer diante de Deus, aguardam a purificação de suas almas.

Sabemos, assim, que de três modos pode uma alma se apresentar diante de Deus:

  1. Aqueles cujas almas estão corrompidas pelo pecado mortal, como pútridos cadáveres, vão para o lugar destinado a Satanás e seus anjos, o Inferno;
  2. Aqueles cujas almas estão puras dos pecados mortais e das manchas do pecado, isto é, dos pecados veniais e das penas temporais anexas aos pecados mortais e veniais, entrarão nos tabernáculos eternos, indo diretamente após o Juízo para o Céu;
  3. Aqueles, por fim, que estão isentos do pecado mortal, mas cuja pureza está obscurecida seja pelo pecado venial, seja pelos efeitos do pecado já perdoado, como vasos preciosos manchados pela ferrugem, vão aonde a ferrugem será removida pelo fogo: o purgatório.

As almas dos fiéis do purgatório são amadas e queridas por Deus, mas por não estarem puras o suficiente, ainda não podem ser admitidas à sua presença. Encontramos uma figura dessa realidade nas Escrituras, quando Absalão, após seu exílio, obtém o perdão de seu pai Davi, mas ainda não é admitido a sua presença:

E disse o rei a Absalão, [após o haver poupado da pena]: “Torne para a sua casa, e não veja a minha face”. Tornou, pois, Absalão para sua casa, e não viu a face do rei. Não havia, porém, em todo o Israel homem tão belo e tão aprazível como Absalão; desde a planta do pé até à cabeça não havia nele defeito algum. Assim ficou Absalão dois anos inteiros em Jerusalém, e não viu a face do rei. […] Disse, então, Absalão a Joabe: “Para que vim de Gesur? Melhor me fora estar ainda lá. Agora, pois, veja eu a face do rei; e, se há ainda em mim alguma culpa, que me mate.” Então foi Joabe ao rei, e assim lho disse. Então chamou a Absalão, e ele se apresentou ao rei, e se inclinou sobre o seu rosto em terra diante do rei; e o rei beijou a Absalão. (2 Sm 21, 33)

A beleza de Absalão é figura da beleza da alma do purgatório: está em estado de graça, é santa. Mas ainda manchada do pecado não é digna da presença do rei. Após os anos de exílio, o rei admite Absalão a sua presença e o beija. A imagem fala por si só.

 

O que e como pagam as almas no purgatório?

Duas são as possíveis dívidas das almas do Purgatório:

  1. As penas contraídas pelo pecado venial, incapaz por si mesmo de levar a alma à condenação, mas capazes de a manchar e sobrecarregar de imperfeições, esfriando-lhe a caridade;
  2. As penas contraídas pelo pecado mortal que ainda não foram suficientemente reparadas. Todo pecado mortal traz consigo uma culpa e uma pena. A culpa leva ao inferno e é perdoada na confissão. A pena, temporal, porém, deve ser paga nesta vida – por orações, penitências, boas obras, indulgências – ou na próxima – pelo fogo. Aqui, paga-se a um Pai Indulgente. Lá, paga-se a um inexorável juiz a quem aparecerá tudo o que estava escondido, e nada ficará sem castigo, como canta a liturgia na sequência Dies Irae

Como pagam as almas estas penas? É por um duplo sofrimento, a pena de dano e as penas dos sentidos:

  1. A pena de dano é a ausência de Deus. É esta a mais intensa pena possível. Diferentemente, porém, da pena de dano do inferno, no purgatório ela não é eterna e as almas não se desesperam por esse abandono, antes o assumem como meio de preparação para a alegria do Céu
  2. A pena dos sentidos, por sua vez, consiste nos sofrimentos conforme ensinado por São Paulo: “Serão eles salvos, mas como que pelo fogo” (I Cor 3, 15). Desse fogo diz a Imitação de Cristo: “Uma hora nele será mais severo que mil anos de penitência aqui“. A pena dos sentidos no purgatório, assim o entendem os doutores da Igreja, é a mesma do inferno — excetuando apenas a eternidade e a presença dos demônios

Por quanto tempo, por fim, duram essas penas? Nosso Senhor o diz no Evangelho: Até que se pague o último centil. E quando será esse momento para cada alma? Apenas Deus o sabe. Quanto mais a purificar, maior o tempo. E nada podem as almas fazer por si mesmas senão sofrer o tempo determinado pela Justiça Divina. Nós, porém, podemos abreviar esse tempo por nossos méritos.

 

Iremos nós ao purgatório?

Se tivermos a alegria de nos salvarmos, é bem provável que sim. Como, então, fazer que seja o mais breve possível? Evitando a todo custo, mesmo da própria vida, todos os pecados e faltas pelas quais são contraídas estas dívidas. Infelizmente pelo esfriamento de nosso amor a Deus, frequentemente tomamos por pouco a quantidade de pecados que cometemos — sobretudo se já estamos em pecado mortal, por exemplo. No entanto, mais do que nos cegar e endurecer cada vez  mais, cada novo pecado é uma nova dívida contraída a ser paga.

Mais do que evitar todos os pecados, abreviamos nosso Purgatório ou o evitamos totalmente expiando essas penas enquanto há tempo, e amando a Deus fervorosamente, pois o fogo da caridade extingue o fogo do purgatório.

Confiemos, por fim, em Nossa Senhora. Em seu escapulário e em seu Rosário, as promessas de abreviação dos tormentos do purgatório.

 

Como aliviar as almas dos fiéis que jazem no Purgatório?

A maneira por excelência é a Santa Missa e a aplicação das indulgências, mas também nossas pobres orações, esmolas, penitências. Aqui se revela uma grande misericórdia de Deus: Com tão pouco podemos fazer tanto por essas almas. Temos nós a chave do purgatório em nossas mãos. Uma indulgência plenária aplicada a uma a livraria do purgatório instantemente. Uma missa bem rezada em sua intenção, traria a ela alívio em meio àqueles sofrimentos e abreviaria seus dias no fogo purificador.

Poderíamos nós ser surdos ao clamor dessas almas? Poderíamos nós trocar aquilo que elas realmente precisam, isto é, o refrigério da Santa Missa, as indulgências, nossas orações e penitências, por ações puramente humanas, por lembranças, sentimentos de saudade, simples comemorações, atos sociais?

Estas almas aflitas são, com efeito, nossos irmãos, talvez nossos amigos e parentes. Não podendo ajudar a si mesmo, esperam de nós esse auxílio. Deus assim ordenou que fosse, pois assim exercemos a caridade e revestimo-nos da esperança. Ao atendê-las, ainda, unimo-nos à Igreja de sempre, a seus cemitérios, seus sinos, suas missas de requiem, seus ofícios de defuntos, suas exéquias e orações. Ao atender estas almas, por fim, adquirimos para nós um penhor para quando chegar também o nosso momento — se tivermos a graça de nos salvarmos e não tivermos a graça ainda maior de evitar o purgatório: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.” (Mt 5, 7)

Requiem Aeternam dona eis, Domine, et lux perpetua luceat eis
Requiescant in pace. Amen.

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