A virtude da caridade

Quoniam Deus prior dilexit nos – I Jo. IV, 19

 

Pode-se definir a caridade: uma virtude teologal que nos faz amar a Deus como Ele se ama, sobre todas as coisas, por Si mesmo e ao próximo por amor de Deus. Tem, pois esta virtude um duplo objeto: Deus e o próximo. Mas estes dois objetos não fazem mais que um só, porque não amamos as criaturas, senão enquanto são uma expressão, um reflexo das perfeições divinas; é, pois, Deus que nelas amamos; e assim, acrescenta Santo Tomás, amamos o próximo, porque Deus está nele ao menos para que nele esteja. Eis porque não há mais que uma só e mesma virtude a caridade.

A virtude da caridade sobrenaturaliza e santifica o sentimento do amor, para com Deus, amor para com o próximo. Depois de algumas observações preliminares sobre o amor, trataremos: 1° da caridade para com Deus; 2° da caridade para com o próximo.

Observações preliminares

1°) O amor em geral é um movimento, uma tendência da nossa alma para o bem.

2°) O amor cristão é o que é sobrenaturalizado no seu princípio, no seu motivo e no seu objeto.

a) É sobrenaturalizado no seu princípio, pela virtude infusa da caridade, que reside na vontade; esta virtude, posta em ação por uma graça atual, transforma o amor honesto e eleva-o a um grau superior.

b) Fornece-nos, então, a fé um motivo sobrenatural, para santificar as nossas afeições: dirige-as primeiro para Deus; depois, para as criaturas, de tal sorte que, amando-as, amamos o próprio Deus.

c) O objeto do nosso amor torna-se, assim, sobrenatural: o Deus, que amamos, não é o Deus abstrato da razão, senão o Deus vivo da fé; assim, os homens são para nós filhos de Deus, nosso Pai comum, irmãos em Jesus Cristo, templos vivos do Espírito Santo. Tudo, pois, é sobrenatural no amor cristão.
Segundo Santo Tomás, a caridade acrescenta ao amor a ideia duma certa perfeição, proveniente duma grande estima do objeto amado. E assim, toda a caridade é amor, mas nem todo amor é caridade.

 

DO AMOR DE DEUS

Exporemos: 1° a sua natureza; 2° o seu papel santificador; 3° a maneira progressiva de o praticar.

I. Sua natureza

Para elucidar a noção do amor de Deus, explicaremos o preceito que no-lo impõe, o motivo em que se apoia e os diferentes graus pelos quais chegamos ao amor puro.

1°) O preceito: a) Já formulado no Antigo Testamento, é renovado e proclamado por Cristo Senhor Nosso como o resumo da Lei e dos Profetas: <<Amarás ao Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com todo o teu espírito>>. É dizer que devemos amar a Deus sobre todas as coisas e com todas as potências da nossa alma. S. Francisco de Sales explica excelentemente: <<É o amor que deve prevalecer sobre todos os nossos amores e reinar sobre todas as nossas paixões: e é o que Deus reclama de nós, que entre todos os nossos amores o seu seja o mais cordial, dominando sobre todo o nosso coração; o mais afeiçoado, ocupando toda a nossa alma; o mais geral, empregando todas as nossas potências; o mais elevado, enchendo todo o nosso espírito, e o mais firme, pondo em exercício toda a nossa força e vigor>>.

b) O preceito da caridade é, em si, sem limites, porque a medida de amar a Deus é amá-lo sem medida; obriga-nos, pois, a tender incessantemente para a perfeição e a nossa caridade deve ir sempre crescendo até à morte; é necessário querer alcançá-la, precisamente porque é fim, basta, para não faltar ao preceito, viver em estado de atingir um dia essa perfeição, ainda que seja na eternidade.

Sem embargo, as almas, que aspiram à perfeição, vão subindo cada vez mais alto, esforçando-se por amar a Deus não somente com toda a sua alma, mas ainda com todas as suas forças. É este, afinal, o ideal a que nos leva o motivo de caridade.

2°) O motivo da caridade não é o bem que se recebeu ou se espera de Deus, mas a sua infinita perfeição, ao menos como motivo finalmente predominante. Outros motivos se podem, pois, juntar a este, motivos de temor salutar, de esperança, de gratidão, contanto que o motivo indicado seja verdadeiramente predominante. Por conseguinte, o amor de si mesmo, enquanto subordinado ao amor de Deus, concilia-se com a caridade. Quando, pois, os Santos condenam tão asperamente o amor de si mesmo, ou o amor próprio, trata-se do amor desordenado de si mesmo.

a) a caridade é uma amizade, e a amizade não pode ser senão recíproca, pois tem por fundamento a comunicação e por fim a união. b) Se se quer um critério, para distinguir o amor puro do amor interessado, pode-se dizer que o primeiro consiste em amar a Deus por Ele ser Bom em Si e em Lhe querer bem, e que o segundo consiste em amar a Deus, enquanto é Bom para nós e em nos querer bem a nós mesmos.

3°) Quanto aos graus do amor, distingue quatro S. Bernardo:

1) O homem ama-se, primeiramente, a si mesmo por si mesmo; porque é carne e incapaz de gostar de outra coisa diversa de si mesmo.

2) Depois sentindo sua insuficiência, começa a buscar a Deus pela fé e a amá-lo como um auxílio necessário; neste segundo grau, ama a Deus, não ainda por Deus, mas por si mesmo.

3) Dentro em breve, porém, à força de tratar e frequentar a Deus como um arrimo necessário, vai vendo pouco a pouco como Deus é suave e começa a amá-lo por Ele mesmo.

4) Enfim, o último grau, que bem poucos alcançam na terra, é amar-se a si mesmo unicamente por Deus e, por conseguinte, amar a Deus exclusivamente por Ele mesmo.

 

II. Papel santificador do amor de Deus

1°) A caridade é em si a mais excelente e, por isso mesmo, a mais santificante das virtudes; já o provamos, mostrando que ela constitui a própria essência da perfeição, que encerra todas as virtudes e lhes dá uma perfeição especial, fazendo convergir os seus atos para Deus, amado sobre todas as coisas.

Mais que as outras virtudes, efetivamente, é a caridade unificante e transformante.

a) É a alma inteira que se une a Deus com todas as suas faculdades: o espírito, pela estima e pela memória frequente de Deus; a vontade, pela submissão perfeita à vontade divina; o coração, subordinando todos os nossos afetos ao amor divino; as nossas energias, pondo-as todas ao serviço de Deus e das almas. b) Unindo-a toda inteiramente a Deus, transforma-a: o amor faz-nos sair de nós mesmos, levanta-nos para Deus e leva-nos a imitá-lo, a reproduzir em nós as duas divinas perfeições; queremos, porque o estimamos como um modelo e desejamos, parecendo-nos mais com ele, penetrar mais e mais na sua intimidade.

2°) Nos seus efeitos contribui a caridade muito eficazmente para a nossa santificação.

a) Estabelece entre a nossa alma e Deus uma certa simpatia ou com naturalidade, que melhor nos faz compreender e gostar a Deus e as coisas divinas.

b) Centuplica as nossas energias para o bem, comunicando-nos uma força indomável, para vencer os obstáculos e nos levar aos atos de virtude mais excelentes; porque <<o amor é forte como a morte, fortis ut mors dilectio>>. Que força intrépida não dá à mãe o amor para com seu filho!

c) Produz também uma grande alegria e dilatação da alma: é, efetivamente, a posse inicial do Bem Supremo, inchoatio vitae aeternae in nobis; e esta posse enche-nos a alma de alegria: <<dans vera cordis gaudia>>.

d) Esta alegria é seguida de perfeita e profunda paz e serenidade.

 

III. A prática progressiva do amor de Deus

Princípio geral. Sendo o amor o dom de si mesmo, será tanto mais perfeito o nosso amor para com Deus, quanto mais completamente nos dermos a Ele, sem reserva e sem retorno: ex tota anima, ex totó corde, ex totis viribus. E, como neste mundo é impossível darmo-nos, sem nos sacrificarmos, tanto mais perfeito será o nosso amor quanto mais generosamente praticarmos o espírito de sacrifício por amor a Deus.

1°) Os principiantes exercitam o amor de Deus, esforçando-se por evitar o pecado, sobretudo o pecado mortal e suas causas.

a) Praticam, pois, o amor penitente, doendo-se amargamente de terem ofendido a Deus e de lhe terem roubado a sua glória. Este amor produz dois efeitos: 1) separa-nos cada vez mais do pecado e da criatura; 2) reconcilia-nos e une-nos a Deus infiltrando no coração sentimentos de contrição e humilhação que já são um princípio de amor. Como diz S. Francisco de Sales <<o amor imperfeito deseja-O e reclama-O, a penitência busca-O e encontra-O, o amor perfeito abraça-O e estreita-O>>.

b) Praticam ainda, em seu primeiro grau, o amor de conformidade com a vontade divina, obedecendo aos seus mandamentos e aos da Igreja e suportando corajosamente as provações que a Providência lhes envia, para os ajudar a purificar a alma.

2°) Os proficientes praticam o amor de complacência, de benevolência, de conformidade com a vontade de Deus e por essa via chegam ao amor de amizade.

a) O amor de complacência nasce da e da reflexão: pela fé sabemos e pela meditação convencemo-nos de que Deus é a plenitude do ser e da perfeição, da sabedoria, do poder, da bondade.

b) Por essa via atraímos a nós as perfeições da divindade: Deus torna-se o nosso Deus; alimentando-nos das suas perfeições, da sua bondade, da sua doçura, da sua vida divina.

c) Transforma-se este amor em compaixão e condolência, quando contempla a Jesus padecendo.

Do amor de complacência nasce o amor de benevolência, isto é, um desejo ardente de glorificar e fazer glorificar aquele amamos. O amor de benevolência manifesta-se pelo amor de conformidade: para estender em profundeza o reino de Deus, não há nada mais eficaz que cumprir a sua santíssima vontade: fiat voluntas tua sicut in caelo et in terra. É que o amor é antes de tudo a união, a fusão de duas vontades numa só: unum vele, unum nolle; e, como só a vontade de Deus é boa e sábia, nós é que devemos, evidentemente, conformar a nossa vontade com a dele: <<non mea voluntas, sed tua fiat>>. Esta conformidade conduz-nos à amizade com Deus. A amizade implica, além da benevolência, a reciprocidade ou o dom mútuo dos dois amigos. Ora, é isso precisamente o que se realiza na caridade.

Vejamos, pois, o que é o amor de Deus para conosco, para compreendermos qual deve ser o nosso amor para com Ele. O seu amor conosco é: 1) eterno: <<in caritate perpetua dilexi te>>; 2) desinteressado, porque, bastando-se plenamente a si mesmo, não nos ama senão para nos fazer bem; 3) generoso: porque se dá todo inteiramente, vindo Ele próprio habitar como amigo em nossa alma; 4) preveniente: porque não somente é o primeiro a nos amar, mas ainda nos solicita, mendiga o nosso amor, como se tivesse necessidade de nós.

 

DA CARIDADE PARA COM O PRÓXIMO

I. Natureza da caridade fraterna

A caridade fraterna é indubitavelmente uma virtude teologal, contanto que se ame o próximo por Deus. Se amássemos o próximo unicamente por si mesmo ou por causa dos serviços que nos pode prestar, não seria caridade. O que devemos, pois, ver no próximo é Deus. Ainda quando os homens não se encontrem em estado de graça ou não tenham fé, são chamados a possuir estes dons sobrenaturais e é nosso dever contribuir, ao menos pela oração e pelo exemplo, para a sua conversão. Que poderoso motivo para nos levar a amá-los como irmãos e como as divergências de opiniões que nos separam, são pequeninas diante de tudo quanto a eles nos une!

 

II. Papel santificador da caridade fraterna

Para entender, basta citar alguns textos de S. João: <<O que ama a seu irmão, permanece na luz e não há nele escândalo. Mas aquele que tem ódio a seu irmão está em trevas>>. E continua: <<Todo aquele que tem ódio a seu irmão, é homicida>>. E conclui assim: <<Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque a caridade vem de Deus>>. Não se pode afirmar mais explicitamente que amar o próximo é amar a Deus e gozar de todos os privilégios vinculados ao amor divino.

Demais, Jesus nos diz que considera como feito a Si mesmo todo o serviço prestado ao menor dos Seus. Como é consolador este pensamento para aqueles que praticam a caridade fraterna e dão esmola corporal ou espiritual ao próximo; e mais ainda para aqueles cuja vida é inteiramente devotada às obras de caridade ou apostolado! A cada instante prestam serviço a Jesus na pessoa de seus irmãos; e, por conseguinte, também a cada instante Jesus lhes cultiva a alma, para a adornar e santificar.

 

III. Prática da caridade fraterna

1°) Os principiantes aspiram sobretudo a evitar os defeitos contrários à caridade e a praticar os atos que são de preceito.

Evitam, pois, com o maior cuidado, para não contristarem a Jesus e ao próximo: a) Os juízos temerários, as maledicências e calúnias contrárias à justiça e caridade; b) as antipatias naturais que, sendo consentidas, dão muitas vezes causa a faltas de caridade; c) as palavras ásperas, zombeteiras, desdenhosas, que não podem deixar de gerar ou atiçar inimizades; e até mesmo essas picuinhas que se dizem à custa do próximo e causam muitas vezes pungentíssimas feridas; d) as rixas e disputas ásperas e orgulhosas, em que cada um quer fazer triunfar a sua opinião e humilhar o próximo; e) as rivalidades, as discórdias, os mexericos que não fazem senão semear dissensões entre os membros da grande família cristã.

Há sobretudo um mal que devemos nos forçar a evitar, custe o que custar, o escândalo, isto é, tudo quanto pudesse, com alguma probabilidade, levar os outros ao pecado. A tal ponto isto é verdade que devemos abster-nos cuidadosamente de tudo quanto, indiferente ou até mesmo permitido em si, possa vir a ser, por causa das circunstâncias, ocasião de falta para os outros. Como exemplo, S. Paulo nos diz: <<Se um alimento escandaliza a meu irmão, abster-me-ei para sempre de carne, para o não escandalizar>>.

Estas palavras necessitam ser meditadas ainda hoje. Há cristãos que se permitem leituras, espetáculos, danças mais ou menos inconvenientes, sob pretexto que tudo isso não lhes faz mal. Poderia ser contestada esta asserção; porque, infelizmente, muitas das pessoas, que falam desse modo, andam tantas vezes iludidas. Mas, em todo caso, pensam elas porventura no escândalo que daí resulta para os outros que disso toma pretexto para se entregar com maior risco a prazeres mais perigosos ainda?

Não deverão os principiantes evitarem somente estas faltas; deverão praticar o que está ordenado, em particular, sofrer com paciência as fraquezas do próximo e perdoar as injúrias.

1- Sofrerão com paciência o próximo, apesar dos defeitos. Acaso não temos nós também os nossos que o próximo é forçado a suportar? Ao invés de condenar os defeitos dos outros, examinemo-nos para ver se os não temos semelhantes ou talvez mais graves e pensemos, antes de tudo, em nos corrigir: medice, cura teipsum.

2- É também um dever perdoar as injúrias e reconciliar-nos com os inimigos, com aqueles que nos fizeram ou a quem nós fizemos algum mal. Porque o primeiro dom que se deve oferecer a Deus é um coração puro de toda a frieza e inimizade contra seu irmão. É justo, pois nós pedimos a Deus que nos perdoe as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido.

2°) Os proficientes esforçam-se por atrair a si as disposições tão caridosas do Coração de Jesus.

Não esquecem que o preceito da caridade é o seu preceito e que a sua observância será o sinal distintivo dos cristãos: <<Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros>>.

E assim se esforçam os proficientes por se aproximarem dos exemplos do Salvador. a) A Sua caridade é preveniente: Ele foi o primeiro a nos amar quando nós éramos ainda seus inimigos. b) a Sua caridade é compassiva. A exemplo de Cristo Nosso Senhor, devemos ter grande compaixão de todos os infelizes e socorrê-los na medida das nossas posses; quando esses recursos se esgotarem, demos ao menos a esmola do nosso tempo, duma boa palavra, de boas maneiras. Não nos deixemos enfadar com os defeitos dos pobres, mas à esmola corporal juntemos alguns bons conselhos que algum dia produzirão seus frutos. c) A sua caridade foi generosa: por amor a nós se dignou passar trabalhos, padecer e morrer. Há de ser essa caridade em nós cordial e simpática: porque a maneira de dar vale mais ainda que o que se dá. Há de ser inteligente, dando aos pobres não somente um pedaço de pão, mas, se é possível, os meios de ganhar honestamente a vida. Enfim, há de ser apostólica, fazendo bem às almas por meio da oração e do exemplo; e algumas vezes, discretamente, por meio de sábios conselhos.

3°) Os perfeitos amam o próximo até à imolação de si mesmos: <<Tendo Jesus dado a sua vida por nós, também nós devemos dar a nossa vida por nossos irmãos>>.

Esta caridade manifesta-se, principalmente, por um amor especialíssimo para com os inimigos, pedindo especialmente por eles e fazendo-lhes bem em todas as ocasiões, assim, praticamos o que nos pede Cristo Senhor Nosso: <<Amai a vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos perseguem e caluniam>>.

Desta forma, se aproxima a alma Daquele que faz brilhar o seu sol tanto sobre os maus como sobre os bons.

 

Extraído e adaptado do Compêndio de Teologia Ascética e Mística de Adolphe Tanquerey.

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