A Pobreza de Espírito e o Dom do Temor

Beáti páuperes spíritu: quóniam ipsórum est regnum cœlórum.

Segundo Santo Tomás de Aquino e Santo Agostinho, há uma relação direta entre os dons do Espírito Santo e as sete Bem-Aventuranças do Sermão da Montanha. O Dom do Temor está associado à bem-aventurança da Pobreza de Espírito. Como se dá isso? Como ser “pobre de espírito” nos dá o Temor?

Ora, Deus é muito bom e muito sábio: nos dá ferramentas simples para operar nossa salvação e santificação. Precisamos, para amá-l’O, ser pobres. Isso é fácil, para a maior parte das pessoas. Nascemos todos pobres, nus e chorando. Ainda que nos seja dado, pela família, algum bem, não há garantia de que esse bem se manterá. Quem tem a comida hoje, pode não ter amanhã. Parece-nos, portanto, que não basta ser pobre, no sentido de não possuir muitos bens. Existe um tipo de pobreza que é agradável a Deus. É a pobreza de espírito.

Deus fez todas as coisas. Deus, por ser criador de tudo, merece toda honra e glória. É para a maior glória de Deus que o sol nasce e se põe todo dia, que os pássaros cantam e que a vida acontece. “Os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia as obras das suas mãos” (Salmo 19, 2). Além disso, antes mesmo da criação, Deus é. A Santíssima Trindade se vê, se conhece e se ama desde sempre e para sempre, para além do tempo. A glória intrínseca, como se diz no Catecismo Romano, é muito maior que a glória de Deus na criação, extrínseca. Então por que Deus precisa de nós? Que teríamos nós que nem os céus, nem a terra, nem mesmo o próprio Deus pode dar?

A nossa vontade. A nossa liberdade. Nossos pensamentos e ações, a escolha nossa para o bem, para Deus. Eis o que Deus ainda não tem. É só isso que falta para a glória de Deus ser completa e absoluta. Nosso Senhor faz questão de nos criar assim, de nos fazer capazes de escolhê-l’O, pois é evidente que vale mais ser amado por opção do que por obrigação. “Dá-me, filho meu, o teu coração, e os teus olhos observem os meus caminhos” (Prov. 23, 26).

Ora, nós vivemos num mundo cheio de bens. Bens externos a nós, comida, pessoas, bens materiais. Também existem bens internos, como nossos talentos, habilidades e desejos. Tudo reflete algum aspecto da grandeza de Deus. Porém, somos seres de natureza ferida. Possuímos a mancha do pecado original, dos nossos primeiros pais. A sensibilidade, operação da alma mais ligada ao corpo, grita e tenta tomar o controle de nossa vontade a todo momento. O mundo, das invenções e modas humanas, nos seduz, nos suborna, praticam “gaslighting” contra nós. O próprio demônio, a antiga serpente, nos conhece melhor do que nós, nos envia tentações direcionadas e sabe bem das nossas fraquezas. Por conta disso, nossa vontade está dividida, nossa liberdade não é dada inteiramente a Deus, e a glória de Deus não se faz completa na criação enquanto não nos santificamos, enquanto ainda estamos presos a vícios e apegos desordenados. O que fazer para nos livrar desses pesos, nos entregar inteiramente a Deus, realizar em nós o propósito de Deus na sua criação?

O desapego dos bens terrenos e o amor à pobreza

Tudo que há na terra é concupiscência dos olhos, concupiscência do espírito, concupiscência da carne”, segundo São João. A inspiração do Temor nos arma contra essas tentações, nos desapega das riquezas, da independência desordenada, da carne. São Paulo diz: “O que era pra mim – do ponto de vista humano – um ganho, olho com imundície”. Para a alma timorata, um objeto de desejo da carne se torna objeto de horror, pois esse objeto é capaz de separá-la de seu Criador.

É evidente que Nosso Senhor deu, através dos conselhos evangélicos, todas as ferramentas para a nossa santificação: a obediência, a pobreza, a castidade, que são também os votos dos religiosos. A vida religiosa é a realização plena do evangelho na vida do cristão. O religioso é, por assim dizer, um “cristão profissional”, e daí vem todo respeito e admiração que devemos ter pela vida religiosa. Eles escolheram a melhor parte.

É preciso que nós, leigos, imitemos o quanto possível, as virtudes dos religiosos. Ainda que tenhamos bens, não nos apeguemos a eles. Como fazer isso? Ora, toda obra de Deus começa pela oração. Rezar, rezar sempre, rezar sem cessar. Pedir de Deus o dom do Temor.

Depois: pensar nas nossas vontades, sonhos e desejos. Analisar friamente sua origem, seu verdadeiro propósito no nosso coração. É preciso também analisar nossos medos, o que nos tira a paz, o que nos faz ficar inquietos e inseguros.

Seria a falta de dinheiro? Talvez, quando um dos nossos bens sofre uma avaria, isso nos rouba a paz. Mas de quem é, de fato, esse bem? Não é tudo de Deus? Não é tudo dom de Deus, que Deus dá livremente? Talvez seja um emprego, uma situação no trabalho. Ora, o bom católico é um bom trabalhador, e o segredo da riqueza honesta é um trabalho de qualidade. Mas, se já fazes isso, que mais temer? Se alguém lhe mancha a reputação, “rezai pelos que vos perseguem”. Se é uma crise econômica, ou uma mudança do mercado que o aflige, lembre-se de que Nosso Senhor é o Senhor da História e que tudo está nas mãos da Providência. “Fui moço e agora sou velho, mas nunca vi o justo abandonado, nem sua descendência mendigando o pão” (Salmos 37, 25). Aprende a desprender-se das coisas dessa terra, foge da curiosidade e das vãs informações. Viva nesse mundo como se fosse morrer amanhã. Pois, se todo dia pensares assim, um dia estarás certo.

Duas são as poderosas ferramentas que a Providência nos dá para chegar nesse ideal cristão, na pobreza de espírito: a desconfiança de si mesmo e a confiança em Deus.

A desconfiança de si mesmo e a confiança em Deus

Segundo o padre Scupoli (CECP, 17), “A desconfiança de ti mesma, filha, te é necessária de tal maneira, neste combate, que, sem ela, não conseguirás a desejada vitória, nem chegarás a vencer uma só das tuas pequeninas paixões.”

Por conta de nossa natureza decaída, presumimos muito de nossas próprias forças, possuímos todos uma falsa estima de nós mesmos. Nada somos, mas pretendemos ser alguma coisa. Vê-se, então, a profunda ligação da pobreza de espírito com a mãe de todas as virtudes: a humildade. O que é, pois, a humildade, senão a verdade?

Deus quer em nós um leal conhecimento de nós mesmos: toda graça e virtude nos vem d’Ele. Nada somos sem Ele.

Também o diz o padre Scupoli (CECP, 18), “(sobre a desconfiança de nós mesmos) No entanto, somente ela não basta. Porque se, além disto, não pusermos toda a nossa confiança em Deus, esperando d’Ele, e somente d’Ele, os auxílios necessários e a vitória, cedo os poremos em fuga e seremos vencidos por nossos inimigos”.

É importante lembrar que “O nosso auxílio está no nome do Senhor, que fez os céus e a terra” (salmo 124, 8). Se nós não podemos, Ele pode. Nós não somos, mas Ele é, desde sempre e para sempre.

Para alcançarmos essa confiança precisamos, primeiramente, rezar, pedindo a graça. Depois, precisamos contemplar a onipotência e a benevolência de Deus. Ora, basta refletir um pouco para percebermos que Deus é onipotente, absolutamente tudo é possível para Ele. Ele também é infinitamente bondoso, e quer nos ajudar em todas as nossas dificuldades.”Pedi, e dar-se-vos-á; buscai, e encontrareis; batei, e abrir-se-vos-á” (S. Mateus 7, 7). Ora, a palavra de Deus não passará. Se nos é prometido aquilo que pedirmos, para nossa salvação, isso nos será dado. Basta pedir, e pedir com insistência.

Proponho, com a ajuda do Pe. Scupoli (CECP, 19), um exercício para aumentar em nós a confiança em Deus:

Quando te ocorre à mente algo a fazer, alguma batalha a encetar, ou urge alguma vitória sobre ti mesma, antes de começares, medita sobre a tua fraqueza e, depois, quando já talvez isto que nada podes, pensa sobre o poder, a sabedoria e a bondade divina. Confia, então, somente n’Ele e decide-te a agir e combater generosamente. Com estas armas e a oração combaterás e trabalharás.

 

Como saber se se age com desconfiança de si e confiança em Deus

Observa o sentimento que nasce à tua primeira queda. Sentes desânimo? Sentes tristeza, raiva de si, frustração? Ora, não é de se presumir que um ser decaído, com a natureza ferida, venha a cair e falhar? Pois, se é previsível a tua queda, porque te frustras? Acaso é de se chorar quando a chuva cai, ou quando o sol esquenta e seca tudo que toca? Pois, se não te entristeces com isto, o que vês quando cais, quando erras?
Quem se entristece com a própria queda nunca confiou em Deus, mas confiava apenas em si. Esperava de si algo, sendo que é nada. Quem confia em Deus não desanima nem se entristece na queda. Pelo contrário, se reconhece novamente um nada, um verme da terra, e redobra sua confiança em Deus, redobra seus esforços, sem olhar para trás, sem se admirar com seu próprio drama. “Este sente um arrependimento sincero, mas calmo e pacífico, da ofensa a Deus, e continua sua rota, perseguindo os inimigos, com energia e resolução, até feri-los de morte” (CECP, 21).

Não tome para si que o sentimento de pusilanimidade, de aversão ao pecado, de inquietude, logo apoś uma queda provém de virtude. Isso é uma soberba oculta, um profundo apego à ideia de si mesmo, disfarçado de bons sentimentos. O humilde não se sente assim, pois nada presume e só confia em Deus. Vê tudo sob a luz da verdade, em particular de si mesmo, e vê bem sua própria miséria e fraqueza.

Tenha sempre em mente que nada é possível sem Deus. Nunca, nunca confie em si. Basta confiar em Deus e continuar lutando:

É mister que se tenha em mente que, nesta batalha espiritual, nunca perde quem ainda combate e ainda confia em Deus. E o auxílio divino nunca falta, conquanto os combatentes sejam, por vezes, feridos. Combater: isto é tudo. O remédio para os ferimentos é eficaz para aqueles que, com confiança, procuram a Deus e a seus auxílios. Quando menos esperarem, seus inimigos estarão mortos.

Porque é deles o reino dos Céus

As almas que temem a Deus, que se esvaziam de si e do mundo, que rejeitam as honras dessa vida, que desconfiam perfeitamente de si, e igualmente confiam em Deus, essas almas só precisam perseverar. “Já estão no caminho infalível; mesmo se ainda não as possuem de modo definitivo, no entanto, as riquezas dos céus são delas. Essas almas aceitaram o espírito de empobrecimento, o conservam, e dizem: Olho tudo que é criado como uma imundície, não quero mais ter comércio com as riquezas inferiores; todo o seu tesouro está em Deus, elas possuem o reino dos céus! Sem dúvida, isso é só um começo, um dom interior. Mas o Espírito Santo que os mantém sob seu sopro não as abandonará e, por suas outras inspirações, as fará subir de perfeição em perfeição, as conduzirá até a possessão definitiva do reino dos céus, ao qual a pobreza de espírito conduz a certeza de nossa esperança.” (ESVC, 31)

Peçamos à Virgem Santíssima, Refúgio dos pecadores e Mãe da Divina Graça, para que possa interceder por nós junto a Deus Pai, para que nos dê o dom do Temor, através da desconfiança de nós mesmos e da confiança em Deus, para alcançar nessa terra essa bem-aventurança da pobreza de espírito, para que nosso também seja o reino dos céus.

Referências

Gardeil, A. O. P., O Espírito Santo na Vida Cristã (ESVC);
Scupoli, Pe. Lourenço, O Combate Espiritual e o Caminho do Paraíso (CECP);
Catecismo Romano;
Sagradas Escrituras, Salmos;
Liber Usualis.

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