Escrúpulos e seus tratamentos

O escrúpulo, em geral, é um medo doentio de cometer pecado. Assim o designa o Pe. William Doyle, jesuíta e congregado mariano do século XI, cujos escritos foram a fonte primária para este artigo.

Os dois tipos de escrúpulos

Há dois tipos de escrúpulos:

  • Escrúpulo intelectual
    Os escrúpulos intelectuais afetam apenas a inteligência e são, com efeito, apenas dúvidas. São mais frequentemente encontrados em almas avançadas, que se exercitam na vida espiritual e não são habitualmente escrupulosas. Assim que uma alma acometida por um escrúpulo intelectual adquire uma certeza moral de que o ato em questão não é pecado, o escrúpulo a deixa. Este tipo de escrúpulo é inofensivo e não precisa de nenhum tratamento.
  • Escrúpulo sensível
    Muito diferente é o caso dos escrúpulos que afetam a parte inferior da alma, a sensibilidade.  A partir de uma forte impressão produzida nos sentidos, a vontade se endurece e resiste aos fatos. Estes escrúpulos afligem normalmente almas impressionáveis. De fato, é sua natureza emocional que causa o escrúpulo. Uma definição prática do escrúpulo sensível é um estado inquieto de medo de pecar potencializado pelas impressões das partes inferiores da alma.

Um exemplo pode ajudar a clarear estes dois tipos de escrúpulos: Duas pessoas saem da Igreja no Domingo com medo de que, por suas distrações, não tenham cumprido o preceito de assistir a Missa. Aconselhando-se com o sacerdote após a missa, ouvem, as duas, que as distrações na Missa não anulam o cumprimento do preceito na Missa. A primeira alma, que tinha uma dúvida meramente intelectual, despede-se e volta para casa inteiramente satisfeita e em paz com o fato. A segunda alma, porém, mesmo tendo recebido o esclarecimento do sacerdote, em pouco tempo se torna novamente preocupada, fica ansiosa e pesada e tem uma vontade irresistível de ouvir outra opinião, ouvir uma explicação mais detalhada ou mesmo assistir outra missa ou confessar-se, como se não tivesse cumprido o preceito.

A primeira, em sua dúvida, sofreu do inofensivo temor de uma alma leal. A segunda sofre de um medo nervoso e apreensivo, que agita a sensibilidade e, embora pareça ser motivado por razões sobrenaturais de não querer ofender a Deus, normalmente é fruto de um orgulho egocêntrico, que não admite falhas e imperfeições em si mesmo. Essa alma sofre, verdadeiramente, uma aflição constante.

 

A dificuldade no tratamento dos escrúpulos

Um verdadeiro escrúpulo, sendo involuntário e espontâneo, não pode ser prevenido, mas tem cura: o desprezo do pensamento escrupuloso. No escrúpulo intelectual, como dissemos, não há grandes dificuldades. Mas para a alma acometida de escrúpulo sensível, este desprezo parece impossível. Quão enganada está uma alma escrupulosa quando se imagina “curada” ao entender plenamente a orientação do confessor e perceber a tolice de seus medos! Esta alma imagina que agora que vê claramente que seu temor era irracional as coisas irão melhorar, mas é aqui que a luta verdadeiramente começa. Sua vontade já foi endurecida por uma sensibilidade doentia. Tantas cadeias, tantos medos, tanta inquietação!  A cada tentativa de cura pelo confessor, a alma se vê como que presa por correntes invisíveis. Deus a ajudará, mas sua cura acontecerá através de repetidas vitórias, adquirindo o hábito de conquistar a si mesma.

Deus, que é sabedoria e luz, quer que o homem seja guiado por sua inteligência, não pela sua sensibilidade ou pelos sentidos cegos de sua natureza animal. Está, portanto, muito longe dos planos de Deus que uma homem regule sua conduta através da dúvida e do medo, que são inimigos da inteligência. Tanto é verdade que até mesmo as leis de Deus não nos obrigam a menos que, para nós, estejam claras e livres de dúvida.

Nosso caminho para o Céu já é difícil o suficiente com nossos deveres e com os desafios e dificuldades que encontramos a cada passo. Quão mais difícil seria fazer todas estas coisas com o peso de centenas de obrigações incertas e medos? Este estado intolerável está muito distante da bondade e sabedoria divina. O flagelo da escrupulosidade deseja minar o desígnio de misericórdia da Providência, substituindo a certeza pela dúvida, a razão pelo sentimento, condenando a alma a uma escuridão de ignorância e medo.

 

Efeitos mortais da Escrupulosidade

A escrupulosidade deforma completamente o julgamento de uma alma em assuntos morais, tirando dela o sensus fidelium. Nas muitas ocasiões de alarme, em que a alma deve verdadeiramente estar atenta para não cometer alguma falta, a escrupulosidade faz esta alma ver centenas de pecados-fantasma e, através de um raciocínio equivocado, busca persuadi-la que aquelas ações e circunstâncias são verdadeiros pecados.

A escrupulosidade retarda todo o progresso da alma na perfeição. É verdade fundamental que não podemos amar a Deus a menos que acreditemos em seu amor por nós. A escrupulosidade, aos poucos, reprime essa verdade na alma e a paralisa para esforços generosos – a alma é dirigida pelo medo, não mais pelo amor. A todo instante, cria-se uma aflição da alma com seu Criador com sentimentos pessimistas com relação ao passado e presentes disposições e ações.

Em pouco tempo, a alma verdadeiramente acreditando-se em maus caminhos, desencoraja-se e muitas vezes começa a realmente cometer pecados mortais. Ainda que o pecado não seja uma consequência do escrúpulo, a escrupulosidade em geral causa estragos imensos na alma: torna a oração cheia de dificuldades, endurece a alma para as consolações do Divino Espírito Santo, destrói a confiança e a esperança, diminui a frequência aos sacramentos, pois a alma sempre se vê indigna de recebê-los, e assim a enfraquece pela ausência de seus efeitos. Além disso, a escrupulosidade quase elimina o poder de resistir às tentações, causa desencorajamento e pode levar, mesmo, ao desespero.

 

Remédios Gerais contra o Escrúpulo

As regras geral para o tratamento dos escrúpulos podem ser reduzidas a cinco: oração, vigilância, batalha contra o desânimo, obediência e generosidade na auto-conquista.

 

I. Oração
O preceito de Nosso Senhor de rezar para não cair em tentação evidentemente se aplica aos escrúpulos, que são um perigo real à nossa salvação. Derrotada será uma alma que pretenda vencer-se sem o auxílio sobrenatural, esquecendo-se das palavras do Divino Salvador: Sem mim nada podeis fazer

Em geral, a oração do escrupuloso é fria e difícil, sem consolações e pesada. Mas mesmo nesse caso e, diríamos, ainda mais nesse caso, deve-se manter fiel a ela uma alma vítima de escrúpulos.

 

II. Vigilância

Para uma alma escrupulosa, o que é a santa vigilância recomendada por Cristo? É a vigilância de um soldado diante de seu inimigo. Dormir, baixar as armas, desistir, negligenciar precauções seriam graves faltas contra a vigilância prescrita por Nosso Senhor.

Quão tola e perigosa é, então, a posição muitas vezes aconselhada e tomada por essas almas de “dar um tempo”, divertir-se um pouco com coisas profanas, deixar de rezar, mortificar-se, a fim de, afastadas desses exercícios perderem um pouco do “peso de consciência” causada pelos escrúpulos e vivam de forma mais tranquila, sem pensar tanto nos pecados, e, quando estiverem “curados”, voltarem à prática de piedade… Loucura! Como podem se considerar mais sábios que Nosso Senhor Jesus Cristo ao recomendar exatamente o oposto que Ele?!

 

III. Batalha contra o desânimo
Se há uma alma que sente os efeitos da tristeza e do desânimo como descrito pelo sábio: “A tristeza de um homem consome seu coração” (Pv 25,20), esta alma é a alma escrupulosa.

E a tristeza apenas aumenta o escrúpulo. A alma escrupulosa se vê, então, em um ciclo de tristezas do qual não consegue sair. Será necessário a essa alma buscar, com moderação, boas companhias e bons divertimentos, ocupar sua mente com bons pensamentos e, acima de tudo, ocupar-se de forma útil em algum trabalho, eis o melhor antídoto contra o desânimo e a depressão!

Nada mais lamentável que aquele que cresce e envelhece ao redor de suas preocupações e tristezas, negligenciando seus deveres de estado que, além de poder lhe dar a necessária e salutar distração, santificaria sua vida e o salvaria de muitos sofrimentos! Ora et labora. Reza e trabalha. Manter-se sempre ocupado é uma forte arma contra o escrúpulo.

 

IV. Obediência
Os dois remédios que ainda precisam ser discutidos são os mais importantes.

Sem perfeita e confiante obediência a um confessor experiente, não há cura para a escrupulosidade. Essa obediência consiste em duas coisas: obediência de ação, que executa exatamente o que diretor prescreveu, e obediência de inteligência, que crê em tudo o que se deve crer.

Embora a obediência de vontade e de inteligência ao confessor seja necessária para todas as almas, as almas escrupulosas precisam mais ainda delas:

  1. Porque a escrupulosidade, afetando a mente, tira o senso comum nos assuntos de consciência.
    A Providência nos deu este senso como um guia, e uma vez que esteja perdido, um substituto é enviado por Deus a alma na pessoa do padre diretor, vestido de autoridade divina.
  2. Porque a escrupulosidade não só tira o senso comum, mas perde a alma em um labirinto de dúvidas
    Por esse motivo a obediência é indispensável, de outra maneira como poderia a alma sair desse estado deplorável de confusão? Se uma planta é curvada pelo vento, é necessário um suporte que a ajude, dia após dia, a sobreviver à tempestade e, mais do que isso, a ganhar força para sobreviver sem sua ajuda aos poucos.
  3. Porque a escrupulosidade gera endurecimento da alma
    Sem esse laço doce da obediência o Demônio, através do escrúpulo, leva a alma onde quiser. Primeiro começam com dúvidas, depois se tornam ideias erradas, depois através de fortes impressões, tornam-se convicções invencíveis até finalmente tornarem-se regras de conduta, que apenas a obediência tem o poder de mudar.
  4. Porque a escrupulosidade afasta a alma dos sacramentos e a faz cometer extravagâncias
    Uma alma acometida por escrúpulos em geral segue uma linha de raciocínio que a afasta dos sacramentos: “Minhas confissões são ruins, por isso devo me preparar melhor, arrepender-me mais  antes de me confessar novamente“, ou “Não estou em paz, não me preparei bem, logo não irei comungar“, ou ainda “Minhas comunhões são ruins, quanto mais comungo, pior fico pois abuso do sacramento“, etc.Este tipo de ideia não deve ter o menor espaço na alma. Devem ser extirpados da alma. E, mais do que isso, devem ser combatidas vivamente, pois não são fáceis de vencer e permanecem na alma por muito tempo.

V. Generosidade na auto-conquista
A auto-conquista consiste em perseverantes atos de abnegação e renúncia. Medos vãos, pensamentos tolos, toda a confusão causada pela escrupulosidade em uma alma devem ser resolutamente combatidos em todo momento. Essa vitória sobre as impressões tolas é, também, uma vitória sobre a escrupulosidade. Essa vitória, porém, tem grande custo às almas covardes e sensuais. A princípio pode mesmo parecer impossível, mas que não se desesperem, e se inspirem em S. Luís Gonzaga, que por uma consciência terna estava exposto sempre ao perigo de escrúpulo, por heróicas mortificações e obediência ao confessor sempre os vencia imediatamente.

A montanha de dificuldades desaparecerá diante da perseverança. As impressões se tornarão menos vivas, fracas se desprezadas por uma perseverança generosa, e logo serão totalmente ignoradas e vencidas.

 

Remédios Particulares contra o Escrúpulo

Além destes remédios gerais, há algumas regras particulares e práticas para serem seguidas, que ajudarão a alma a se livrar do escrúpulo

 

I. Dúvidas devem ser ignoradas
A alma escrupulosa deve, quanto possível, dar pouca atenção às suas dúvidas, isto é, se o motivo é duvidoso, a alma deve ignorar todas as leis, proibições ou obrigações, bem como o medo de pecado. Mais do que isso, deve considerar como duvidosas todas as leis, obrigações e medos de pecado que não são certezas absolutas, isto é, evidentes como dois mais dois é igual a quatro. O conselho de um diretor douto pode ajudar a perceber o que é duvidoso, caso a alma tenha perdido o senso comum neste ponto.

Mais ainda, a alma deve evitar confessar-se de pecados já confessados, mesmo que a confissão não tenha sido muito boa, exceto em casos de invalidade evidente.

 

II. Fé na facilidade do perdão
A alma escrupulosa deve crer que seus pecados são perdoados imediatamente após a absolvição, mesmo com contrição imperfeita.

Mas, dirá a alma escrupulosa, como saber se houve a contrição necessária? Simples: Se houve sinceridade no firme propósito de não pecar novamente. Deus deseja tanto a conversão dos pecadores que reduziu ao mínimo as condições necessárias para o perdão. Pede-nos o Senhor apenas a mais ordinária boa vontade, isto é, o mais simples propósito de não pecar mortalmente.

 

III. Presumir decisões
Quando uma alma está atormentada pelo escrúpulo, deve presumir qual seria a decisão do diretor e agir imediatamente conforme, mesmo de maneira cega, se necessário. Isso inclui os esclarecimentos e relaxamentos diante de determinada situação.

 

IV. Visão leniente as próprias faltas
O escrupuloso não deve exagerar suas próprias faltas, nem para seu confessor nem, muito menos, para si mesmo. A razão para isso é óbvia. A escrupulosidade consiste em ver o pecado onde não existe, ou em exagerar a malícia de ações apenas repreensíveis. A imaginação vê como por uma lente, o julgamento se torna deformado e alma começa a se caluniar, mentindo sobre si mesma sob o pretexto de maior segurança.

A experiência nos mostra como uma alma escrupulosa, ao exagerar seus pecados por segurança, aos poucos passa a se ver dessa maneira e, mais do que isso, cai em erro maior: Engana o próprio padre diretor. Com isso, tenta a Deus, mentindo ao diretor e recebendo dele, muitas vezes, repreensões e decisões mais severas do que necessárias, tudo isso a vista de satisfazer o senso perturbado pelo escrúpulo. Deve-se sempre ter uma visão leve das próprias faltas, jamais aumentando a gravidade ou exagerando a severidade de nenhuma delas, mas mesmo diminuindo, se for necessário, diante de situações e circunstâncias reais.

 

V. Prontidão em agir
Quantas almas escrupulosas que, como abelhas de flor em flor, vão em busca de vários conselhos e tornam isso quase uma obsessão, perguntando várias vezes, de forma diferente ou nem isso, as mesmas cosias, fazendo o confessor repetir o mesmo conselho, tendo mais de um confessor, perguntando para outras pessoas, enfim, jamais se satisfazendo com o que é ordenado ao invés de simplesmente praticar imediatamente o que é decidido pelo confessor!

Na vida espiritual, algo adiado é algo que não foi feito. A menos que ajam imediatamente, esquecem o que deviam fazer ou lembram de maneira imperfeita, o que gera mais dúvidas e em pouco tempo o escrúpulo só cresce.

 

VI. Interpretação branda dos conselhos
As pessoas escrupulosas devem tomar cuidado de, ao agir sob obediência, interpretarem o conselho da maneira mais branda possível. Na dúvida, como já dito, ignorem-se os caminhos severos e se tome o mais brando e leve. Um exemplo disso são as penitências. O confessor dá determinada penitência a uma alma escrupulosa após a confissão. Não satisfeita, a alma duplica ou triplica a penitência, ou a substitui por algo mais severo, por medo de que o que foi passado pelo diretor não satisfaça. Esse é um grande erro a se evitar. Se o padre pediu apenas uma Ave Maria em penitência por algo, a pessoa escrupulosa deve evitar fazer mais do que isso, como se o ordenado pelo diretor fosse  ineficiente.

 

VI.  Evitar muitas perguntas
Almas escrupulosas devem evitar encher suas mentes e diários espirituais de perguntas para fazer ao diretor. Ao contrário, devem, como já dito, desprezar suas dúvidas assim que surgem. O esforço de conservar essas dúvidas para serem esclarecidas apenas as aumentará e enraizará na alma.

 

VII. Recepção dos Sacramentos
A confissão e a comunhão frequentes são as grandes curas para o escrúpulo, e também o maior alvo dos ataques do Inimigo. Sobre isso, dedicaremos artigo futuro.

 

Jugum meum suave est

 

Vinde a mim todos vós que estais fatigados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo,
e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração, e achareis des­canso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave, e o meu peso leve

Mt 11, 29ss

 

A Vida Cristã é, verdadeiramente, uma vida cheia de desafios, renúncias e sacrifícios, mas as palavras do Divino Redentor não podem se perder em meios aos medos de nossa fragilidade. Devemos, sempre, com a mais resoluta vontade, fazer tudo tanto quanto possível por Deus, por amor, não por medo ou por pena de pecado. A vida do cristão cuja maior virtude é o medo do inferno é cheia de inquietação, temores e tristezas, mas a vida daquele que decide, por amor, renunciar ao mundo, esta é coroada com a alegria e leveza, pois em Cristo encontra-se o repouso para nossas almas.

Essa noção se impõe mais ainda aos congregados marianos, cujas regras os convocam a buscar mais que o ordinário, buscar uma bondade acima do comum dos fiéis, ser elite moral e espiritual. Cuidemos, pois, para não cair no escrúpulo, nem ter a visão embaçada por medos e rigorismos. Evitemos o mundano, renunciemos ao perigoso, fujamos do duvidoso, busquemos a perfeição, mas por amor ao Bom Deus, que de sua misericórdia nos conduz através das Regras e da Espiritualidade da Congregação à perfeição cristã, não permitindo que o escrúpulo ocupe em nossas almas o lugar daquele amor puro que Nossa Senhora nos inspira: Magnificat anima mea Dominum, et exultavit spiritus meus in Deo salutari meo. Misericordia eius a progenie in progenies timentibus eum!

 

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