Por que rezar em latim?

Lex orandi, lex credendi. A lei da fé é estabelecida e salvaguardada pela lei da oração, deste modo, ensina De la Hogue em seu tratado De Ecclesiam, o modo como rezamos é justamente estabelecido e instado a confirmar os dogmas de nossa fé. Assim, o dogma do pecado original é protegido e confirmado pelos exorcismos no rito do batismo; a doxologia, com a qual terminam todos os salmos, confirma a doutrina do mistério da Trindade; o rito externo de adoração eucarística manifesta e confirma o dogma da presença real de Cristo; todas as orações confirmam a necessidade da graça para fazer o bem; as orações oferecidas pelos mortos desde os tempos antigos, o dogma do purgatório. Nestes e em casos semelhantes, onde da mente da Igreja e do sensus fidelium se encontra a ligação mais estreita entre a oração da Igreja e o dogma, deve ser dito energicamente: A lei da oração é a lei da fé.

Apoiada nesse princípio, a Igreja sempre manteve e difundiu o latim como língua comum de sua lex orandi, suas oraçòes e liturgia. Não o fez para ocultar aos fiéis seus mistérios sagrados, e o prova a ordem do Concílio de Trento de que os padres frequentemente ensinem e expliquem os sentidos das orações em latim aos fiéis1, mas para proteger aquilo que de mais nobre possui de muitos perigos, uma vez que o latim, por sua imutabilidade e sacralidade protegeria a lex orandi das mudanças dos povos, culturas, línguas e tempos, e seu abandono engendraria mudanças na lex credendi: mudar a forma como se reza mudaria invariavelmente a forma como se crê. Isto é, efetivamente, o que nossos olhos testemunham nas últimas décadas.

Dissemos que a língua latina possui as características de imutabilidade e sacralidade. Analisemos, primeiro, esta afirmação.

 

A sacralidade do latim

A língua latina foi consagrada, pela inscrição mística anexada à Cruz: “Iesus Nazarenus Rex Iuodeorum – Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus”, foi escrita em hebraico, grego e latim (cf Jo 19, 19s). Estas foram as três línguas principais daquela época e, por concessão divina, foram, por assim dizer, destinadas e consagradas na Cruz para o uso litúrgico da Igreja. Através da inscrição na Cruz proclamaram ao mundo inteiro a dignidade, o poder e a glória do Redentor, a realeza e o domínio da graça que Ele adquiriu pela Sua morte cruenta; no altar, estas línguas continuam a viver através de todos os tempos, e servem para anunciar e celebrar até ao fim dos tempos a morte de Cristo para a nossa redenção, através da qual o reino da graça é cada vez mais alargado e firmemente estabelecido. Nos primeiros séculos, estas três línguas foram empregadas predominantemente, senão exclusivamente, no serviço litúrgico. Até hoje, na liturgia tradicional da Igreja, estas línguas estão presentes.

Destas três línguas, porém, o latim, desde cedo, ganhou precedência; pois, sendo a língua do mundo romano, tornou-se em todo o Ocidente, com a difusão do cristianismo, também a língua da liturgia. A Divina Providência escolheu a cidade eterna, Roma, como centro da Igreja Católica e difusora da verdadeira fé e assim, juntamente com a fé católica e o seu culto divino, as nações ocidentais também receberam o latim como língua da Igreja; pois nessa língua sempre foram celebrados os Sacramentos, embora as nações recentemente convertidas falassem uma língua diferente e não entendessem previamente o latim.

E, dessarte, o latim foi não só consagrado na Cruz, mas foi também santificado pelo uso da Igreja por dois mil anos. A língua da Igreja Romana, Mater et Caput, Mãe e Cabeça de todas as igrejas, tornou-se a língua comum de culto de todas as suas filhas, as igrejas católicas estabelecidas em todo o mundo. No início, o latim era compreendido e falado em muitas localidades como língua civil, mas continuou a ser a língua litúrgica mesmo depois de ter sido substituído por outras línguas na vida civil. Há muito tempo, a língua latina deixou de ser falada na vida diária e nas relações do mundo – lingua latina mortua est, mas ela continuará imortal pelo uso eclesiástico nas fórmulas, cânones e no culto divino até a consumação dos tempos.

As reminiscências mais sagradas, a história e os atos da Igreja Católica estão intimamente ligados ao latim. Desde o início do cristianismo celebrou-se o sublime mistério da Missa, administraram-se os meios sacramentais da graça, Deus foi glorificado, os homens foram santificados e conduzidos à salvação nesta língua. É sem dúvida elevado e inspirador oferecer o sacrifício da Missa e rezar na mesma língua e nas palavras que ressoaram outrora na boca dos cristãos do início da Igreja, nos mártires, nas virgens e confessores, nossos pais na fé nas profundezas das Catacumbas, nos dourados áreas das antigas basílicas e nas suntuosas catedrais da Idade Média, na boca, enfim, de todos os santos! Na língua latina, inúmeros santos, bispos e sacerdotes de todos os tempos ofereceram o sacrifício da Missa, rezaram e cantaram; nele as mais magníficas fórmulas litúrgicas foram compostas por orações de beleza incomparável.

Além disso, separar para Deus uma língua, um conjunto de vestes, luzes, aromas, templos, cantos, instila o sentimento de admiração e reverência que nos lembra que estamos adorando e implorando a ajuda do Deus transcendente Todo-Poderoso de uma forma totalmente distinta da conversa comum com um amigo. É ele o criador do universo e de cada um de nós. É ele o senhor supremo de todos nós. É ele o tremendo juiz que virá para julgar vivos e mortos e separar ovelhas de bodes. É Ele, também, por fim, nosso pai. E ao dirigirmo-nos a Ele em uma linguagem separada só para isso não fazemos diferente de Nosso Senhor Jesus Cristo, que no alto da cruz, no momento de maior entrega, disse em uma língua separada só para Deus aquelas doces palavras: “Eloí, Eloí, lamá sabactâni“.

Não deveria esta antiga língua latina do serviço divino, tão venerável e consagrada na sua origem e uso, ser-nos extremamente querida e preciosa, para que não a abandonássemos a qualquer preço ou fôssemos privados dela na celebração da Santa Missa?

 

A imutabilidade do latim

Como afirma São Roberto Bellarmino, “se o sacrifício da Missa fosse oferecido no vernáculo, seria necessário mudar frequentemente as palavras do sacrifício sempre que o vocabulário, que é comum numa época, deixasse mais tarde de ser o vernáculo”. Vale ainda considerarmos a feliz afirmação de G. K. Chesterton: “Toda língua viva é uma língua moribunda, mesmo que não morra. Partes dela estão perpetuamente perecendo ou mudando de sentido; só há uma saída desse fluxo; e uma língua deve morrer para tornar-se imortal”. E foi o que ocorreu com a língua latina.

A morte do latim é colocada pelos estudiosos entre os séculos VII e IX, segundo áreas geográficas: em todo caso, séculos após o fim do Império Romano. Portanto, na nossa tentativa de definir o latim, podemos certamente dizer que em algum momento o latim morreu, o que significa que se tornou uma língua morta, desprovida de falantes nativos. E sua morte foi precisamente o que o fez se tornar imortal: As línguas vivas, como foi dito anteriormente, mudam; línguas mortas, não. Numa Europa onde os estados individuais assumiam lentamente a sua forma geográfica, política e linguística, o latim representava o elemento de unidade, não apenas linguística, mas também cultural e religiosa.

Dessa forma, o latim tem uma estabilidade, precisão e consistência incomparáveis: uma língua imutável para uma fé imutável. Ao contrário das línguas faladas que estão constantemente em estado de fluxo, mudança, evolução e involução, a língua latina permanece a mesma.

 

Arsenal da ortodoxia e fonte de devoção

Dadas estas duas características, sua sacralidade e imutabilidade, a conservação do latim é não é um fenômeno estético, saudosista, retrógrado, mas uma verdadeira busca pela manutenção da ortodoxia da félex orandi, lex credendi. Pois, como afirma Dom Gueranger: “O ódio pela língua latina é inato no coração de todos os inimigos de Roma. Reconhecem-no como o vínculo dos católicos em todo o universo , como o arsenal da ortodoxia contra todas as subtilezas do espírito sectário. Devemos admitir que foi um golpe magistral do protestantismo ter declarado guerra à língua sagrada. Se algum dia conseguisse destruí-lo, estaria no bom caminho para a vitória”, e isso se dá porque, como afirma Pio XII, “o uso da língua latina que prevalece em grande parte da Igreja oferece ao mesmo tempo um imponente sinal de unidade e uma salvaguarda eficaz contra a corrupção da verdadeira doutrina .”

Esperava-se que a rejeição do “ultrapassado” latim e a adoção da língua vernácula de modo praticamente universal em nossas paróquias e vida de oração traria uma nova primavera espiritual, mas foi exatamente o oposto que veio. Um inverno eclesial de frieza e superficialidade, de livre exame e impiedade. E por isso, também é a defesa do latim a busca de um oásis em meio à secura espiritual de nosso tempo. Rezar em uma língua sagrada, separada unicamente para o culto divino, manifesta a transcendência de Deus, Sua beleza, Seu poder, Sua onisciência e Sua santidade, e ensina-nos humildade, estimulando nossa devoção. É o latim aquele véu através do qual podemos ser iluminados pelos raios divinos, empregando a expressão do Doutor Comum.

“E se”, afirma Santo Agostinho, “há alguns presentes que não entendem o que está sendo dito ou cantado, eles sabem pelo menos que tudo é dito e cantado para a glória de Deus, e isso é suficiente para eles participarem. devotamente.”2. Esta bela linguagem de oração eleva a mente e o coração através de meios como o canto sagrado, o gregoriano e a polifonia. A beleza inerente do latim é evidente mesmo para aqueles que o ouvem cantado, orado ou cantado no nível natural.

Por fim, a língua latina unifica todos sob uma única língua, combatendo assim a destruição da torre de Babel e, de uma forma prática, dando continuidade ao dom do Pentecostes, permitindo que pessoas de todas as nações compreendam e rezem juntas em una voce (uma só voz) universalmente. Afirma, nesse sentido, Bento XVI: “Precisamente na multiplicidade de línguas e culturas, o latim, durante tantos séculos veículo e instrumento da cultura cristã, não só garante a continuidade com as nossas raízes, mas continua a ser tão relevante como sempre para fortalecer os laços de unidade da fé na comunhão da Igreja”.

O latim de uma forma única une os fiéis na doutrina e na crença na mesma fé imutável. É ele o baluarte da Lex Orandi tradicional da Igreja, protegido incessantemente pelos papas e concílios, sob pena de excomunhão e censuras eclesiásticas para aqueles que ousassem atentar contra seu uso. Mesmo o Concílio Vaticano II, tido como a origem do abandono do latim, ordenou seu uso e difusão: “O uso da língua latina deve ser preservado nos ritos latinos3. “Devem ser tomadas medidas para que os fiéis também possam dizer ou cantar juntos em latim as partes do Ordinário da Missa que lhes dizem respeito4

De onde veio, então, a marginalização do latim? Foi para substituir a Lex Orandi da Igreja e acomodá-la a uma nova Lex Credendi que o latim foi abandonado. Por sua sacralidade e imutabilidade, ele era incompatível com a mutabilidade e dessacralização dos nossos tempos impostos à liturgia e à fé da Igreja. Seu abandono foi para nós um exílio. Perdida nossa pátria, nossa língua, nosso culto, e assim, nossa fé.

Voltemos, pois, corajosamente, à nossa pátria. Voltemos ao latim.

 

Por um congregado mariano
da Congregação Mariana da Imaculada Conceição e Santo Afonso de Ligório, Manaus/AM

  1. Sessão XXII, capítulo 8: “Se bem que a Missa encerre grandes ensinamentos para o povo fiel, contudo pareceu aos Padres não ser conveniente se celebrasse ordinariamente na língua vulgar [cân. 9]. Por isso, conservando o rito aprovado em toda parte de cada uma das Igrejas e da Santa Igreja Romana, Mãe e Mestra de todas, e para que as ovelhas de Cristo não sintam fome e não suceda que os pequeninos peçam pão e não haja quem lho reparta (Lam. Jr. 4, 4), manda o santo Concílio aos pastores e a cada um dos que têm cura de almas, que durante a celebração da missa expliquem frequentes vezes por si ou por outros algo sobre o que se lê na missa, e falem sobre algum mistério deste santíssimo sacrifício, principalmente nos domingos e festas.”
  2. O Catecismo Explicado, Pe.S
  3. Sacrossanctum Concilium, 36
  4. Sacrossanctum Concilium, 54.

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