A filoxera

Neste artigo, apresentamos um sonho de Dom Bosco contado por seu biógrafo, padre Lemoyne, em que se trata sobre a murmuração e seus efeitos em casas religiosas, congregações e, analogicamente, em relações humanas guiadas por princípios espirituais.

 

Parecia a Dom Bosco que se encontrava numa vastissima sala em Borgo San Salvario, em Turim. Religiosos e religiosas em grande numero, pertencentes a diversas ordens e congregações, estavam ali reunidos. Ao entrar Dom Bosco, todos os olhares se voltaram para ele, como se fosse esperado por todos.

No meio deles viu um homem de aspecto estranho, tendo na cabega uma faixa branca e com a pessoa envolvida numa espécie de lencol, como se fosse um capote. Dom Bosco quis saber de quem se tratava e lhe foi respondido que aquela cabeca estranha era ele mesmo, Dom Bosco. Representava talvez Dom Bosco que sonhava.

Foi adiante, pois, em meio aquela multidao de pessoas religiosas, que lhe faziam uma larga coroa ao redor, sorrindo-lhe, mas ninguém falava. Ele observava surpreendido, mas todos continuavam a olha-lo sorrindo e sem dizer palavra. Finalmente rompeu o silêncio e disse:

Por que vocês riem assim? Parece que queiram zombar de mim!

— Zombar de você? Esta enganado, nos rimos porque advinhamos o motivo que o conduziu aqui.
Como podem adivinhar, se eu mesmo nao saberia dizer por que vim? Asseguro que o rir de vocês me surpreende.

— O motivo que o trouxe aqui, disseram os religiosos, é este. Vocé pregou o retiro espiritual a seus clérigos em Lanzo.

E com isso?

— Agora vem procurar o que vai dizer na pregação de encerramento.

Que seja. Dêem-me então uma sugestão sobre o que devo dizer, algum aviso que ajude a fazer florescer sempre mais a Congregação de São Francisco de Sales. Ficaria agradecido.

—Uma só coisa nós sugerimos: diga a seus filhos que tenham cuidado com a filoxera.

A filoxera?! Mas em que entra a filoxera?

—Se você mantiver longe de sua congregação a filoxera, ela tera vida longa e florescer e fara um grandissimo bem as almas.

Mas não entendo vocês.

—Como, não entende? A filoxera é o flagelo que levou a ruina tantas ordens religiosas e foi a causa pela qual tantas não atingem mais hoje sua altíssima finalidade.

É inútil este aviso, se vocês nao se explicam melhor. Eu nao estou compreendendo nada.

—Então não valeu a pena estudar tanta teologia.

Parece-me ter cumprido o meu dever, mas nos tratados teológicos nunca encontrei que se fale de filoxera.

—E no entanto fala-se disso. Reduza ao sentido moral e espiritual esta palavra.

Na etimologia de filoxera não vejo nem mesmo um significado que, de longe, possa reduzir-se a sentido espiritual.

— Já que você não é capaz de explicar o mistério, eis que chega quem te dará a explicação.

 

Naquele momento, Dom Bosco notou certo movimento no meio da turba para deixar livre a passagem a alguém, e viu avançar para ele um novo personagem. Fixou-o, mas pareceu-Ihe que nunca o tinha visto, embora com seus modos familiares mostrasse ser um seu antigo conhecido. Apenas aproximou-se, Dom Bosco Ihe disse

O senhor chega mesmo na hora de tirar-me do embarago em que me colocaram estes senhores. Pretendem que a filoxera ameace destruir as casas religiosas e querem que eu a tome como tema da conclusão de nossos exercicios espirituais.

—Dom Bosco, que pensa ser tão sabio, não sabe estas coisas? E certo que se você combater com todo o poder esta filoxera e ensinar aos seus filhos o modo de combaté-la como se deve, sua sociedade não deixara de florescer. Sabe que coisa é a filoxera?

Sei que é uma doenga que ataca as plantas e as destrói, fazendo-as estiolar.

— Esta doença, do que é proveniente?

Origina-se de uma multidão infinita de animaizinhos que tomam conta de uma planta.

— Como se faz para salvar as plantas vizinhas da destruição?

Eis aquilo que não entendo mais.

— Escute bem o que estou para lhe dizer. A filoxera comeca a aparecer sobre uma planta sã. Não passa muito tempo e todas as plantas mais próximas ficam infectadas, também as que se encontram a certa distancia, Ora, quando numa vinha, num pomar, num jardim aparece a doença, a infecção se estende rapidamente, e a beleza e os frutos esperados se perdem. Sabe como se estende o mal? Não por contato, porque a distancia o impede; não porque os animaizinhos desçam ao solo e atravessem o espaço que os separa das outras plantas. A experiéncia o prova: é o vento que levanta esta maldição e a espalha sobre os ramos das plantas ainda sadias. E sucede rapidissimamente tão grande desgraça! Pois bem, saiba que o vento da murmuração leva longe a filoxera da desobediência. Entende?

Começo a entender,

— Os prejuizos que traz essa filoxera levada por um tal vento são incalculáveis. Nas casas mais florescentes faz diminuir a caridade recíproca, depois o zelo pela salvação das almas. Entao gera ócio, depois tira todas as outras virtudes religiosas e, enfim, o escândalo as toma objeto de reprovação por parte de Deus e por parte dos homens. Não é preciso que algum dos depravados passe de um colégio para o outro. Basta esse vento que sopra de longe. Acredite! Essa foi a causa que conduziu a destruição certas ordens religiosas,

Tem razão. Reconheço a verdade daquilo que diz. Mas como por remédio a tamanha desgraca?

— Não bastam as meias medidas. E necessário recorrer a meios extremos. Para dar um basta a filoxera material, tentou-se desinfetar com enxofre as plantas infectadas. Recorreu-se a água com cal, inventaram-se outros expedientes, mas tudo isso serviu para nada, porque de uma só planta a filoxera arruína num instante a vinha inteira. Depois, de uma vinha se propaga aquelas da vizinhanca, e destas as outras, de modo que de uma região se estende a toda a provincia, dela vai a todo um reino e assim por diante.

E o personagem continuou explicando:

— Quer, pois, saber o único modo que existe para truncar eficazmente o mal, em seu principio? Apenas a filoxera se manifesta sobre uma planta, cortá-la cuidadosamente, cortar as sebes em torno e jogar tudo nas chamas. Se depois a vinha inteira for infectada, arrancar todas as plantas e reduzi-las a cinzas para salvar as vinhas vizinhas. Somente o fogo extermina tal doença. Por isso, quando numa casa se manifesta a filoxera da oposição à vontade dos superiores, a pouca atenção soberba para com as regras, o desprezo das obrigações da vida comum, você não demore: arranque pela raiz; rejeite seus membros, sem deixar-se vencer por uma perniciosa tolerância. Como fez com a casa, assim fará com o indivíduo. Às vezes pode parecer que um indivíduo isolado possa sarar e voltar novamente ao bom caminho; ou então você sentirá por ter de castigá-lo pelo amor que tem por ele ou também por alguma habilidade especial sua ou ciência, que parece redundar em louvor da congregação. Não se deixe levar por semelhantes reflexões. Pessoas dessa qualidade dificilmente mudarão de costume. Não digo que a conversão seja impossível. Sustento, porém, que acontece raramente, e tão raramente, que essa probabilidade não basta para induzir um superior a dobrar-se a sentença mais benigna. Talvez alguns poderão ir pior no meio do mundo. Que seja. Eles suportarão todo o peso de sua conduta, mas a congregação não virá a sofrer com isso.

E se realmente, mantendo-os na sociedade, se pudesse com a tolerância atraí-los para o bem?

— Esta é uma suposição sem valor. É melhor mandar embora um desses soberbos que conservá-lo com a dúvida de que possa continuar a semear a cizânia na vinha do Senhor. Guarde bem na memória esta máxima. Coloque-a decisivamente em prática, caso haja necessidade. Faça disso objeto de conferência aos seus diretores e seja esse argumento o tema para o encerramento de seus exercícios.

Sim, vou fazê-lo. Obrigado por seus avisos. Mas agora diga-me: quem é você?

— Não me conhece mais? Não se recorda quantas vezes nós nos vimos?

Enquanto o desconhecido assim falava, todos os presentes sorriam. Naquele momento tocou o sinal para levantar e Dom Bosco acordou.

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