Morte, julgamento e o argumento de São Bernardo

“A morte vos espera em toda a parte, se fordes prudentes, esperai vós por ela em todo lugar” – São Bernardo de Claraval

A morte nos espera em toda a parte. ‘Basta estar vivo para morrer’, diz o jocoso ditado popular, que em si guarda preciosa verdade. E tal verdade deveria estar diante dos olhos de todo católico, como bem lembra S. Afonso de Ligório: “Todos sabemos que temos de morrer. Muitos, porém, se iludem, imaginando a morte tão afastada que jamais houvesse de chegar. Jó, entretanto, nos adverte que a vida humana é brevíssima: “O homem, vivendo breve tempo, brota como flor e murcha” (Jó 14, 1-2)”.

Talvez os afazeres da vida temporal, com toda a correria e pressa do mundo moderno, façam-nos esquecer desta certeza, daí a grande necessidade da vida de meditação, da oração diária, do pensamento na hora da morte, que longe de ser um pensamento melancólico, deve ser um pensamento de conformidade e de preparação. Para auxílio nesta prática, indicamos a obra de S. Afonso, Preparação para a Morte.

 

Na morte tudo se deixa

O consenso geral, quando se pensa na morte, é a imagem do moribundo no leito de morte, a sofrer por determinada enfermidade e tendo a chance de conversão nos últimos instantes da vida. Longe disto, a realidade é mais dura. Diversas vezes vê-se em noticiários atuais acidentes, confusões e rixas que levam à morte inocentes de forma tão rápida e inesperada que sequer possuem tempo para considerar o seu fim, muito menos para um último ato de contrição. Qualis vita, finis ita, diz o ditado latino: Assim a vida, assim a morte. Assim como se vive, da mesma forma se morrerá. Desconsiderando as exceções, se vivemos na graça de Deus, dificilmente seremos surpreendidos despreparados na hora da morte. Igualmente, caso se viva costumeiramente longe da graça de Deus, dificilmente conseguir-se-á uma morte em sua graça. 

Após a morte, tudo se deixa: os bens duramente alcançados pelo trabalho, os caprichos, as amizades temporais, os compromissos marcados, os planos traçados… tudo se torna irrelevante, diante do último instante de vida. Após isso vale apenas o estado da alma, o quanto pudemos amar a Deus e sofrer por Ele nesta vida e as contas que se deve prestar ao Divino Juiz. Continua S. Afonso: “Não deixes para amanhã o que podes fazer hoje (Ecl 9, 10); porque o dia presente passa e não volta; e amanhã a morte poderia apresentar-se e nada te permitiria fazer. Procura, sem demora, libertar-te do que te afasta de Deus. Rompe, sem tardança, com todo laço que te prende aos bens da terra, antes que a morte os venha arrebatar. Bem-aventurados os que, ao morrer, já se acham mortos para as afeições terrenas (Ap 14, 13). Estes não temem a morte, antes a desejam e abraçam alegremente”.

 

O julgamento e o argumento de São Bernardo

A hora da morte pode causar temor até mesmo aos grandes santos, embora consigam o conforto na vida que tiveram, na devoção a Nossa Senhora e no amor que tiveram a Deus. Até mesmo São João Bosco, que teve uma vida inteira intensa em oração e apostolado, rogava em seu leito de morte aos companheiros que rezassem para que salvasse sua alma: “Só peço uma coisa ao Senhor: que possa salvar minha pobre alma!”

Durante uma grave enfermidade que levou São Bernardo de Claraval às portas da morte em 1125, o santo abade de Claraval teve três visões que destacaram a gravidade da hora da morte e do julgamento. Essas visões foram registradas por Guilherme de S. Thierry, amigo muito próximo de São Bernardo: «O homem de Deus adoeceu; o seu corpo estava tão fraco e exausto que parecia prestes a expirar. Os seus discípulos e amigos reuniram-se à sua volta, como crianças junto do leito de morte do pai amado. Eu encontrava-me no número dos seus amigos. Já pronto (segundo se nos afigurava) a exalar o último suspiro, dir-se-ia num êxtase espiritual, presente no tribunal de Deus. Enfrentando-o, viu Satanás, que lhe apresentava uma série de acusações, disposto a assegurar a sua condenação. Quando o acusador terminou e o homem de Deus deveria replicar, confuso e aterrorizado apenas pode dizer: ‘Confesso-me indigno do céu e incapaz de obtê-lo por mérito próprio; todavia, Jesus, meu Senhor, possui-o por dois direitos distintos: o de Único-Gerado pelo Pai, e o da sua paixão. Satisfeito com o primeiro, Ele concedeu-me o segundo, e é com o direito dos méritos doados por Ele que reclamo a recompensa do paraíso’. Esta resposta confundiu de tal modo o demônio que abandonou o tribunal, enquanto o homem de Deus voltava a si».1

«No final do dia, quando os religiosos, segundo o costume, se reuniram para a leitura das conferências, o abade era deixado só no quarto de enfermos com os dois monges que o cuidavam. Sentindo-se violentamente atormentado para além de toda a tolerância, chamou um dos assistentes e implorou-lhe que buscasse algum alívio para o seu sofrimento numa prece. O bondoso irmão, que sabia como subordinar a modéstia à obediência, dirigiu-se à igreja e orou perante cada um dos três altares, dedicados a Santa Maria, São Bento e São Lourenço. No mesmo instante, a gloriosa Virgem, acompanhada por estes dois santos, todos com olhares plenos de doçura, aparecem à cabeceira do homem de Deus. A aparição foi tão clara e distinta, que ele reconheceu os seus visitantes imediatamente. Pousando as mãos no local onde a dor tinha a sua origem, fizeram-na desaparecer instantaneamente. Todos os sintomas da doença o abandonaram no mesmo momento».2

Esses e outros relatos semelhantes de santos mostram o temor da hora da morte e do julgamento de Deus, mas também a conformidade com a Vontade Divina, a resignação no julgamento e a confiança na Misericórdia de Deus, que tudo faz para que consigamos a graça da bem-aventurança, lembrando-nos de nos aproximarmos de Cristo enquanto ainda resta tempo nesta vida. Que como no exemplo de São Bernardo, possamos fazer da Paixão de Cristo a razão de nossa bem-aventurança eterna.

Por um Congregado Mariano


 

  1. São Bernardo de Claraval, Ailbe J. Luddy
  2. Ibidem

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