Notas de leitura sobre a Carta Encíclica “Libertas Præstantissimum” de Leão XII

Introdução

A liberdade é o dom exclusivo dos seres dotados de inteligência, pelo qual o homem se torna senhor de seus atos. A liberdade é potência (ou meio) que se realiza (reduzindo-se a ato ou atingindo o seu fim supremo) pela obediência à razão e a consequente prática do bem moral. Mas o seu uso pode ser desorientado pela busca de bens ilusórios, destruindo a ordem legítima e conduzindo para a perdição voluntária. Deve, portanto, ser auxiliado pela autoridade e pelas leis, em vista de alcançar a perfeição da liberdade. Ora, em primeiro lugar, a liberdade deve se submeter à autoridade e às leis eternas de Deus, o qual inscreveu no coração do homem a lei natural, reflexo daquela, e a qual deve ser modelo das leis humanas. Da autoridade divina derivam-se todas as demais formas de autoridade: a da Igreja, a dos governantes, a dos chefes de família e a dos demais superiores. Porém, como vimos no artigo anterior sobre este tema, muitos homens julgam erroneamente que a Igreja é inimiga da liberdade, porque ou seu conceito está adulterado ou sua extensão está exagerada (cf. n. 1).

O presente artigo é apenas um resumo e, na medida de nossas limitações, uma aplicação às circunstâncias atuais da Carta Encíclica Libertas Præstantissimum, de 1888, promulgada pelo Papa Leão XIII. Resumimos a primeira parte da encíclica, de maior caráter doutrinal, acrescentando apenas quando julgamos necessário algum comentário ou exemplo para ilustrar as ideias com consequências mais próximas a nós. A finalidade da Encíclica era tratar da questão pujante das liberdades modernas, consideradas, mesmo em seus elementos viciosos, naquele século como hoje, os maiores bens do homem moderno e o fundamento das constituições políticas dos Estados (cf. n. 2).

A Liberdade Moral no Indivíduo

O fim da encíclica é tratar da liberdade moral, seja no indivíduo, seja na sociedade. Mas, como a liberdade natural é o princípio do qual decorrem as demais espécies de liberdade, convém tratar primeiro desta (cf. n. 3).

A liberdade natural é própria dos seres dotados com o uso de inteligência ou razão, e é nela que consiste manifestamente a causa de o homem ser responsável pelos seus atos. Ora, e pela inteligência que somos capazes de considerar o que devemos escolher e o que devemos rejeitar, o bem que devemos praticar e o mal que devemos combater. Os demais animais seguem apenas o seu instinto e não são capazes de refletir sobre a justiça, formando um conceito universal desta virtude para o aplicar em circunstâncias particulares. Apenas o homem é naturalmente livre (cf. n. 4)

O Papa demonstra que a Igreja Católica, bem ao contrário do que seus inimigos a caluniam, é a maior defensora desta doutrina da liberdade. Utiliza como um dos exemplos o Concílio de Trento, o qual combateu a heresia protestante, segundo a qual a natureza humana havia sofrido uma depravação total com o pecado original, o que a impossibilitava de praticar realmente o bem. Nem a Redenção operada por Cristo restabelecia verdadeiramente a amizade entre Deus e o homem, mas apenas “revestia” o fiel com a justiça de Cristo, para que fosse visto como agradável por Deus Pai, permanecendo, porém, sua natureza corrompida e incapaz de boas obras. Daí o surgimento de uma doutrina como a da predestinação, isto é, a escolha divina antecipada, desde a eternidade, por aqueles que se salvariam e os demais que se condenariam, não importando o que estes fizessem. Aqui se ouve ecoar o “crê firmemente e peca muitas vezes” de Lutero. Contra esta aberração sobre Deus e o homem, a Igreja reafirmou a bondade e a justiça divinas e, por outro lado, a liberdade humana, nos decretos sobre o pecado original e a justificação (cf. n. 5).

Assim, se a liberdade é a faculdade de escolher entre os meios que conduzem a um fim determinado, e sendo característica do bem agir propriamente sobre o apetite ou a vontade, então o livre-arbítrio é a característica da vontade. Ora, mas é impossível à vontade mover-se, sem o prévio conhecimento da inteligência (o bem desejado pela vontade é o bem conhecido pela inteligência). Em outras palavras, é impossível querer algo que se não conhece, ao menos em parte. Portanto, a liberdade, assim como a vontade, da qual é a característica, tem por objeto um bem conforme à razão. E tanto mais atingirá sua perfeição quanto maior for a conformidade deste bem com a razão. Por isso Deus mesmo, que é a própria Verdade, é o nosso sumo bem (cf. n. 6).

Decorre daí, portanto, que a possibilidade de pecar não é verdadeira liberdade, mas uma escravidão. Porque embora a adesão a um bem falso e enganador seja um indício de que o indivíduo possua o livre-arbítrio, constitui na verdade um defeito da liberdade, do mesmo modo como enganar-se constitui um defeito na inteligência. E levando em conta que a vontade depende do ato prévio da razão, quando ela deseja um objeto que se afasta da reta razão, cai num vício, que nada mais é do que a corrupção e o abuso da sua liberdade. Neste sentido, o Papa Leão XIII refuta o falso conceito de liberdade, que não passa de verdadeira licenciosidade:

“Todo o ser é o que lhe convém segundo a sua natureza. Logo, quando se move por um agente exterior, não age por si mesmo, mas pelo impulso de outrem, o que é próprio de escravo. Ora, segundo a natureza, o homem é racional. Por isso quando se move segundo a razão, é por um movimento próprio que ele se move, e opera por si mesmo, o que é essência da liberdade; mas, quando peca, procede contra a razão, e então é como se fosse posto em movimento por um outro e sujeito a uma dominação estranha. É por isso que ‘aquele que comete o pecado é escravo do pecado’” (Libertas n. 7).

Portanto, é livre aquele que vive constantemente segundo a sua natureza (como animal racional), isto é, agindo conforme a razão. Ora, dada a realidade do pecado original e suas consequências, a vontade ficou inclinada a rejeitar os ditames da razão e a aceitar os impulsos desordenados da sensibilidade, a qual não avalia o valor moral, mas o prazer sensível dos bens que apresenta à vontade. Portanto, o homem por si mesmo carece de auxílios para dirigir sua vontade ao bem e desviá-la do mal

Dizemos que o homem é animal racional: animal por sua sensibilidade e racional por sua alma espiritual, dotada de inteligência e vontade. Ora, é próprio do homem operar por finalidade, isto é, empregando sua liberdade na escolha do bem julgado pela razão, ao contrário dos animais irracionais, que operam por necessidade, seguindo seus instintos, e escolhendo entre o que é nocivo e o que é conveniente para sua vida. Logo, há uma ordem da razão sobre o que é bom, e a vontade deve realizar; e sobre o que é mal, e deve ser evitado. Ora, essa ordenação da razão sobre a vontade, conforme Leão XIII, chama-se “lei”. O princípio da lei, portanto, está no próprio livre-arbítrio, isto é, na necessidade que tem o homem de não agir em desacordo com a lei. Por conseguinte, é absurdo afirmar que “o homem, sendo livre por natureza, deve estar isento de toda lei (que não tem necessidade dela)”.

A lei natural recebe esse nome porque é aquela ordenação da razão sobre a vontade que está presente naturalmente em cada homem. E não são uma multidão de leis, mas uma única lei natural porque é regida pelos mesmos princípios, pela mesma verdade, e aponta para o mesmo bem. Ora, ela não teria força de lei (e de lei universal) se não fosse promulgada por uma razão superior, uma autoridade, à qual nossa própria razão particular deve obediência. Portanto, a lei natural é a lei eterna de Deus, Criador e Governador do mundo, gravada nos seres dotados de razão (cf. n. 8).

Além da lei natural, Deus concedeu ao homem, em vista de sua ferida após o pecado original, auxílios adicionais e próprios para defender e guiar a vontade humana. O primeiro e mais excelente é a graça divina, a qual esclarece a inteligência e inclina para o bem moral a vontade, reforçada e fortificada. Esta graça (falamos aqui sobretudo da habitual), que pode ser concedida extraordinariamente por Deus em singularíssimas circunstâncias, nós a encontramos principalmente nos sacramentos, os quais ou nos fazem retomar a graça perdida ou nos aumentam esta mesma graça. Portanto, a vida sacramental é essencial para o aperfeiçoamento da liberdade humana.

A Liberdade Moral na Sociedade

O que a razão e a lei natural realizam para os indivíduos, a lei humana, promulgada para o bem comum dos cidadãos, realiza-o para a sociedade. Entre as leis humanas, há aquelas cujo objeto é a distinção entre o que é o bem (prescrevendo sua prática) e o que é mal (proibindo-o) naturalmente, as quais têm sua origem na lei natural e, portanto na lei eterna de Deus. Logo, o valor destas leis humanas se fundamenta, em última análise, na autoridade divina, e o seu fim deve ser afastar do mal e chamar ao bem os indivíduos, ou ao menos preservar o bem da sociedade (cf. n. 10).

Há, finalmente, aquelas que, apesar de serem suas consequências, não procedem diretamente do direito natural, mas têm o fim de precisar os pontos em que a lei natural se pronuncia de maneira mais vaga ou geral. A título de exemplo, Leão XIII cita o preceito da lei natural que manda aos cidadãos contribuirem para a ordem e a prosperidade social com o seu trabalho. Ora, falta a determinação da medida, das condições e do objeto com o qual se fará essa contribuição. Portanto, cabe aos preceitos da lei humana realizar esta determinação, para que os cidadãos possam ser auxiliados a contribuirem proporcionalmente para o bem comum (cf. n. 11).

Portanto, na ordem social, a liberdade consiste em que, com o auxílio das leis civis, mais facilmente possam os indivíduos viver segundo as prescrições da lei eterna. Por isso, o valor das leis humanas consiste em serem derivações da lei eterna. Neste sentido, uma lei que esteja em desacordo com os princípios da reta razão e com os interesses do bem público não tem verdadeiramente força de lei, pois, ao contrário de seu verdadeiro fim, afastaria os homens do bem para o qual a sociedade foi formada (cf. n. 12).

Desta forma, a liberdade humana, tanto na ordem individual como na social, naturalmente supre a necessidade de obedecer à uma regra suprema e eterna, a autoridade divina, que protege e leva a liberdade à sua perfeição, a consecução de seu fim, que é o próprio Deus (cf. n. 13). 

Até aqui, consideramos as máximas de doutrina, que podem ser conhecidas pela razão, as quais a Igreja sempre propagou e segundo as quais sempre agiu. A partir daqui, consideraremos o combate da Igreja contra as perverções da liberdade humana. Em primeiro lugar, o Papa recorda que, entre seus principais feitos neste âmbito do livre-arbítrio, a Igreja (cf. n. 14): 

  1. interviu para o desaparecimento da escravidão;
  2. civilizou os povos bárbaros, ou nativos, purificando seus costumes;
  3. estabeleceu por seus princípios a ordem e a justiça na sociedade.

Neste sentido, a Igreja é realmente defensora da liberdade humana. E o Papa Leão XIII o explica de forma cristalina. Com efeito, é um dever real respeitar o poder e submeter-se a leis justas, porque a autoridade vigilante das leis preserva os cidadãos das artimanhas criminosas dos maus. Ora, o poder legítimo vem de Deus. Mas, desde que falte o direito de mandar, ou desde que o mandato é contrário à razão, à lei eterna e à autoridade de Deus, então é legítimo desobedecer aos homens a fim de obedecer a Deus. Assim, quando a Igreja ordenava algo contrário, ela não era inimiga da liberdade dos indivíduos, pois a estes falta o direito de mandar sobre si mesmos; nem era inimiga dos Estados, pois a eles faltava a conformidade com a razão e a lei natural, quando entravam em embate com a Igreja. Se a verdadeira liberdade consiste, como demonstrado, em que cada um possa viver segundo as leis e seguir a reta razão, então a Igreja não era inimiga, mas defensora da liberdade (cf. n. 16).

Mas há muitos homens, chamados “liberais”, que entendem pelo nome de liberdade o que não é senão pura e absurda licenciosidade. Estes vão se dividir em 3 espécies, conforme o grau de adesão às consequências do princípio liberal: o Liberalismo radical, o Liberalismo mitigado e o Liberalismo de Estado   

O Liberalismo radical

Aqueles que aderem aos princípios do “naturalismo” e do “racionalismo” estão para a filosofia assim como os fautores do “liberalismo” estão para a ordem moral e civil, porque introduzem nos costumes e na prática da vida os princípios postos pelos partidários do “naturalismo”. Ora, o “naturalismo” nega a ordem sobrenatural, a necessidade da graça e a consecução da vida eterna, para afirmar apenas a relevância da felicidade na vida terrena. O “racionalismo” afirma a supremacia da razão humana, recusando a obediência devida à razão divina e eterna, e pretendendo não depender de nada que seja diferente de si mesma (cf. n. 17).

Desse modo, na vida prática, os liberais radicais negam que haja um poder divino ao qual se tenha o dever de obedecer, mas cada um é para si a sua própria lei. Como consequência, surge uma nova moral que afasta a vontade da obediência aos preceitos divinos, conduzindo o homem a uma licença ilimitada. Uma vez que não há autoridade sobre o homem, mas cada indivíduo é a sua própria lei, então a causa eficiente ou o princípio da sociedade deve ser a soma das vontades individuais dos seus membros. A origem da ideia de democracia moderna está, portanto, na negação da autoridade divina sobre os homens. A maioria cria o direito e o poder, estabelece o que é certo e o que é errado. E dado que a maioria pode variar, conforme as vontades individuais são formadas ou deformadas moralmente, segue-se que os valores morais da sociedade seriam relativos e poderiam variar com o tempo.

Assim, as consequências mais nocivas decorrem do Liberalismo radical para o indivíduo e a sociedade. Com a afirmação de que o bem e o mal dependem do juízo da razão, nega-se implicitamente a distinção essencial entre bem e mal. Portanto, o que é agradável e conveniente é que será doravante considerado como moralmente bom. Daqui decorrem toda sorte de imoralidade e crime, as maiores perversões que infelizmente são características de nosso tempo.

Na ordem social, como afirma o Papa, “Quando se repudia o poder de Deus sobre o homem e sobre a sociedade humana, é natural que a sociedade deixe de ter religião, e tudo o que toca à religião torna-se desde então objeto da mais completa indiferença” (Libertas, n. 19). E já que as imoralidades são permitidas segundo o juízo particular, sem a religião e os princípios da moral ligados à verdade, só resta ao Estado o uso da força para manter a ordem social, o que não é realmente eficaz para conter as paixões populares. Leão XIII ilustrava este diagnóstico com o exemplo do combate infrutífero aos socialistas, mas podemos hoje perfeitamente pensar nas infrutíferas campanhas de conscientização a respeito dos males das drogas ilícitas, da imoderação no consumo de álcool, das consequências de uma vida entregue à luxúria.

O Liberalismo mitigado

Mas, como salienta o Papa, nem todos são capazes de aderir ao Liberalismo até suas últimas consequências, tão nefastas e contrárias à verdade se apresentam. Assim, há aqueles liberais que admitem como “necessário, portanto, que ela [a liberdade] seja dirigida e governada pela reta razão, e, por conseqüência, que se submeta ao direito natural e à lei divina e eterna”. Mas não julgam digno do homem livre a submissão a leis que não sejam impostas diretamente pela razão natural. Não admitem as últimas consequências, mas permanecem assumindo o princípio: a razão humana é soberana no juízo do bem e do mal, do que é lícito obedecer e do que se deve rejeitar, (cf. nn 20-21).

Liberalismo do Estado

Além do liberalismo radical e do mitigado, há os liberais mais moderados, que defendem que, embora as leis divinas devem regular a vida de cada indivíduo, o Estado, porém, deve permanecer “laico” (princípio da separação entre Igreja e Estado): “é permitido, nas coisas públicas, desviar-se das ordens de Deus e legislar sem as ter em conta alguma” (n. 22). Como se o homem tivesse dois fins últimos totalmente distintos e paralelos e, portanto, cada um deveria ser conduzido ou pela Igreja (felicidade no céu) ou pelo Estado (prosperidade terrena). Ora, a falsidade desta concepção se pode ver pelo fato de que o nosso fim último, desde que fomos chamados à ordem sobrenatural, é no fim das contas o próprio Deus. Assim, devemos procurar nesta vida não a prosperidade física ou material, mas a perfeição moral (tal como a buscavam os sábios da Antiguidade). E esta não é paralela mas está vinculada à beatitude eterna do paraíso. De outro lado, assumir que se pode aspirar nesta vida a algum fim que não seja Deus e, portanto, que se poderia, para isso, procurar meios que não tenham nenhuma relação com a religião… Isto seria, outrossim, uma implícita negação ao próprio Deus!

E bem podemos ver este fenômeno se reproduzir em ambos os lados do espectro político. Adotam-se meios, como a associação com falsas religiões e seitas em torno de “princípios inegociáveis”, a eleição de figuras messiânicas desprovidas dos princípios católicos, como os ensinados por esta encíclica, com o fim de alcançar uma determinada ordem política, ou econômica, ou ainda garantias de direitos individuais. Ora, os verdadeiros “princípios inegociáveis” são a verdade e a lei de Deus (cf. n. 23).

 

Por um membro da Congregação Mariana da Imaculada Conceição e Santo Afonso de Ligório, Manaus – AM

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