Depois da Santa Missa, o Ofício Divino é a oração mais importante na liturgia da Igreja. Trata-se de 150 salmos e antífonas divididos na semana e que variam de acordo com a comemoração do tempo ou com o tempo litúrgico. Como são orações longas, divide-se em partes que são rezadas nas chamadas horas litúrgicas. Nestes três últimos da Semana Santa a Igreja possui um Ofício particular, chamado de Oficio Tenebrarum, ou Ofício de Trevas. Através dele é possível observar a beleza da liturgia da Igreja e sua riqueza teológica.
O Ofício das Trevas é cantado, não como em Matinas, pelo curso da noite, mas ao anoitecer da Quarta, Quinta e Sexta Feiras Santas. Tem início a uma hora que permitirá seu encerramento pouco depois do pôr do sol, quando a escuridão começa a espalhar-se sobre a terra. A diminuição da luz que ocorre durante o Ofício simboliza o eclipse que a glória do Filho de Deus sofreu nas ignomínias de Sua Paixão, o desprezo de Seu próprio povo e as zombarias dos pagãos e o abandono de Seus apóstolos. Finalmente, simboliza também a grande tristeza que se abate sobre a Igreja, durante o aniversário dos dias nos quais Seu Divino Esposo suportou a humilhação e a tortura da Cruz.
Ao início do Ofício, quinze velas de cera são acesas em um grande candelabro triangular, chamado tenebrarium, posto ao lado da Epístola, diante do altar. Ao fim de cada salmo, uma dessas chamas é apagada, alternativamente em cada lado do candelabro, começando pelas mais baixas. A vela posta no topo do tenebrarium é deixada acesa até o fim do Ofício, quando, enquanto são ditas as últimas orações, um acólito a toma e a leva encoberta para trás do altar. Quando o Ofício termina, ele a traz de volta a seu lugar e a apaga. Durante os últimos seis versículos do cântico Benedictus, as seis velas acesas do altar são apagadas também.
O uso do Tenebrarium remonta à Idade Média. Desde muito cedo, em Roma, o Ofício inteiro era recitado nas trevas. Nas Gálias, assim como na Inglaterra, entretanto, considerava-se a opção de dispensar a luz somente com muita dificuldade, particularmente durante o Ofício de Matinas.
Diz-se que as velas apagadas em sequência representam os apóstolos que, um a um abandonaram Nosso Senhor; e que a vela deixada acesa, e então oculta atrás do altar, representa Nosso Senhor em Sua morte e sepulcro. Desaparecido por um breve tempo da vista dos homens, ressurge revestido de luz e glória, no grande dia de Sua Ressurreição.
Outros têm dito que a vela acesa representa a Santíssima Virgem, que permaneceu firme aos pés da Cruz até o fim; e depois do sepultamento de Seu divino Filho, restaurou a coragem dos apóstolos, pela Sua inabalável esperança da ressurreição. Esta seria também uma das razões pelas quais a Igreja dedica o dia de sábado a Nossa Senhora.
O Ofício das Trevas começa “ex abrupto” com as Antífonas e os Salmos. Não há “Deus in adjutorium”, “Domine labia mea”, Invitatório ou Hino. O Gloria Patri é omitido ao fim dos Salmos e do último Responsório de cada noturno. As Leituras são ditas sem absolvição ou bênção. Essas peculiaridades indicam a antiguidade deste Ofício, no qual nada havia sido modificado durante o curso dos séculos — até a reforma da Semana Santa, em 1955, ordenada por Pio XII e levada a cabo por Anibale Bugnini (o mesmo arquiteto do Missal de Paulo VI). Nele são encontrados somente os elementos mais antigos: antífonas, salmos, leituras e responsórios. Para cada noturno há três salmos; segue-se o antigo arranjo adotado pela Igreja para Festas: para cada salmo, a antífona marca a ideia principal que deveria ocupar as mentes durante sua recitação.
O estampido como conclusão da cerimônia, sem dúvidas, era o sinal dado para a despedida. Em seguida, um grande estrépito era produzido por todos os que estavam presentes. Considerava-se este estrépito como uma representação mística dos golpes dados na flagelação de Nosso Senhor. Alguns padres atribuem também outro sentido espiritual para esta aparente atitude desordenada, como uma representação da revolta da natureza, após a morte de seu Criador.
No primeiro noturno de cada dia, as leituras são tomadas das Lamentações do profeta Jeremias; o Canto Lúgubre, como as palavras do texto, expressa o luto e a desolação da Igreja durante esses dias. No segundo noturno, temos um tratado de Santo Agostinho sobre os salmos relacionados à Paixão de Nosso Senhor: a traição de Judas e a prisão de Nosso Senhor no Horto das Oliveiras, no primeiro dia; as calúnias dos Judeus para obter a condenação de Nosso Senhor, no segundo dia; os esforços infrutíferos feitos para guardar o sepulcro e a previsão do triunfo no terceiro dia. No terceiro noturno, em conformidade com a prática observada antes dos tempos de São Gregório Magno, temos excertos das Epístolas de São Paulo, sobre a instituição da Sagrada Eucaristia para o primeiro dia; sobre o ofício do Pontífice vítima para o segundo dia e para o terceiro dia, sobre a necessidade do derramamento de sangue para a redenção do gênero humano.
Os Responsórios marcam os vários estágios da Paixão: a Agonia, a traição de Judas e a apreensão de Nosso Senhor no Getsêmani, no primeiro dia; um excerto de Santo Agostinho tratando de Cristo como a divina Vítima, a fuga dos apóstolos, a preferência dada a Barrabás, a Crucifixão e a desolação de Nosso Senhor no segundo dia; e no terceiro, a descida da Cruz, o enterro de Nosso Senhor e as precauções tomadas em guardar o sepulcro.
Cada dia, o clímax do luto parece ser alcançado na Antífona ao Benedictus, que recorda: Primeira antífona, o sinal dado pelo traidor aos soldados. Segunda antífona, a inscrição na Cruz indicando a razão da condenação de Nosso Senhor. Terceira antífona, a atitude das santas mulheres no sepulcro. Cada dia “Christus factus est” é mais desenvolvido: estabelece a real causa da imolação, a profunda humilhação da morte pela crucifixão e a certeza do triunfo.
O salmo Miserere insta-nos a chorar nossos pecados, os quais são a verdadeira causa da Paixão e Morte de Nosso Senhor. Finalmente, a última Coleta, “Respice”, implora ao Pai celestial que tenha compaixão da grande família de toda a humanidade.
Primeiro Noturno
O primeiro salmo foi escrito pelo rei David, quando foi obrigado a fugir da perseguição de seu filho Absalão, que buscava a sua morte. Há uma referência a Cristo, descrevendo vários incidentes de sua Paixão. O fel e o vinagre, aqui mencionados, nos mostram que este salmo é profético, pois David nunca recebeu tal tratamento de seus inimigos.
Salvum me fac, Deus: quoniam intraverunt aquæ usque ad animam meam.
Infixus sum in limo profundi: et non est substantia.
Veni in altitudinem maris: et tempestas demersit me.
Laboravi damans, raucæ factæ sunt fauces meæ: defecerunt oculi mei, dum spero in Deum meum.
Multiplicati sunt super capillos capitis mei: qui oderunt me gratis.
Confortati sunt qui persecuti sunt me inimici mei injuste: quæ non rapui, tunc exsolvebam.
Deus, tu scis insipientiam meam: et delicta mea a te non sunt abscondita.
Non erubescant in me, qui exspectant te, Domine: Domine virtutum.
Non confundantur super me: qui quærunt te Deus Israel.
Quoniam propter te sustinui opprobrium: operuit confusio faciem meam.
Salvai-me, ó Deus, porque as águas me vão submergir.
Estou imerso num abismo de lodo, no qual não há onde firmar o pé. Vim a dar em águas profundas, encobrem-me as ondas.
Já cansado de tanto gritar, enrouqueceu-me a garganta. Enfraqueceram-se meus olhos, enquanto espero meu Deus.
Mais numerosos que os cabelos de minha cabeça são os que me detestam sem razão. São mais fortes que meus ossos os meus injustos inimigos.* Porventura posso restituir o que não roubei?
Vós conheceis, ó Deus, a minha insipiência, e minhas faltas não vos são ocultas.
Os que esperam em vós, ó Senhor, Senhor dos exércitos, por minha causa não sejam confundidos. Que os que vos procuram, ó Deus de Israel, não tenham de que se envergonhar por minha causa,
pois foi por vós que eu sofri afrontas, cobrindo-se meu o rosto de confusão.
No primeiro noturno seguem ainda o salmo 69 e 70, além de três leituras, intercaladas com antífonas. Após este, seguem o segundo e terceiro noturno, além de já ditos ofícios na quinta e sexta da semana santa, com os demais salmos e leituras. Pela sua grande extenção, torna-se inviável sua publicação em artigo. Para mais informações, pode-se consultar as fontes desta série de artigos, especialmente os escritos de D. Prosper sobre a Semana Santa.
Tradução e adaptação por um congregado mariano.
Fontes: The Liturgy of the Roman Missal – Dom Leduc e Dom Baudot O.S.B
The Rites of the Holy Week – Pe. Frederick R. McManus
The Mass, A Study of the Roman Liturgy – Pe. Adrian Fortescue
The Liturgical Year – D. Prosper Gueranger