Verdadeira Amizade

A verdadeira amizade é baseada no amor altruísta por outra pessoa. O que se entende por amor altruísta é o “desejo constante e eficaz de fazer o bem ao outro1. Mas embora o amor altruísta seja a base da amizade, ele não é suficiente. Deve haver algum terreno ou área comum entre duas pessoas que formam tal relacionamento, nas palavras do Doutor Angélico: Idem velle, idem nolleamar o mesmo, rejeitar o mesmo.

Entre as pessoas há pontos em comum suficientes para formar amizades. Cada pessoa tem experiências de tristeza, alegrias, esperanças, etc, para compartilhar com outra pessoa. Ao compartilhar a vida interior com outra pessoa, passamos a viver não apenas uma vida, mas duas. A vida interior do outro, conhecida apenas por Deus, torna-se, em um degrau muito menor, aberta para nós através da amizade. Preenche parcialmente o desejo de nossos corações incompletos de plenitude em outra pessoa. A amizade traz à tona o que há de melhor em uma pessoa através do esquecimento de si mesma. No entanto, é limitada porque não se pode dar totalmente de si mesmo ao outro porque não se tem posse completa de si mesmo.

As amizades são o resultado da virtude. Eles se baseiam na bondade de si mesmo que outra pessoa pode amar. Os amigos descobrem o que há de bom um no outro e assim os laços se estreitam. E assim, importa discernir bem a diferença entre amizade verdadeira e mera companhia de conveniência ou de admiração emocional.

Uma companhia só pode ser considerada uma verdadeira amizade quando possui estas três qualidades:

 

1. É moralmente útil para ambas as partes

Pondo de forma negativa, uma companhia não é uma verdadeira amizade se leva ao pecado, a problemas de consciência, ao rebaixamento de ideais, ao enfraquecimento da fé, ao abandono na prática dos próprios deveres religiosos. Tais efeitos morais prejudiciais violam a ideia mais elementar da verdadeira amizade. A amizade se baseia no respeito mútuo, e é impossível ter um respeito sincero por alguém que tem a influência do veneno na alma. O verdadeiro amor busca o bem do ser amado, e esse bem nunca se encontra no pecado.

A amizade deve ter uma influência positiva para o bem moral. A apreciação do valor do amigo deve inspirar alguém a um valor semelhante. Ele levanta; aproxima ambos de Deus; é uma união em Cristo. Um companheirismo íntimo certamente influenciará ambas as partes, e somente uma boa influência é digna de amizade. Deve haver ajuda mútua para evitar o pecado e inspiração mútua para a prática da virtude.

Isto não significa que, ao formarmos as nossas amizades, devamos buscar necessariamente, de modo cosnciente, por uma melhoria moral, mas significa que não devemos prolongar conscientemente uma companhia que reconhecemos como moralmente má. Isso não significa que ambos os amigos devam ser iguais em virtude, mas significa que ambos devem ter uma apreciação e uma vontade de praticar a virtude e que pelo menos a sua influência um sobre o outro não é um obstáculo à prática da virtude.

Pode-se até ter um apego cego por uma pessoa que afasta de Deus, mas não pode ter um amor genuíno por essa pessoa. “Eu te amo, então vamos juntos para o inferno” exprime uma relação que simplesmente não faz sentido, seja expressa por palavras ou ações; enquanto a contrária, “Eu te amo, por isso quero levá-lo para o céu comigo” é cheia de significado.

 

2. Existe uma base genuína de acordo entre as partes

O amigo é aquele a quem recorremos em busca de simpatia, encorajamento, conselhos úteis e inspiração; ele é alguém com quem podemos compartilhar alegria e tristeza; ele é, em suma, outro eu. Todas estas coisas implicam um tipo de acordo muito especial.

Há alguns pontos sobre o acordo de amizade que podem muito bem ser lembrados: O acordo deve ser genuíno e não artificial. Nisto difere muito do simples fascínio. Se há um forte apego emocional a outra pessoa, muitas vezes se notará que isso leva a gostar apenas do que ela gosta, a querer fazer exatamente o que ela quer, a pensar nas coisas exatamente como ela pensa, mas, ao mesmo tempo, se se pensar com honestidade diante deste apego, poderá se perceber que a semelhança é artificial, que não é a maneira comum de viver e pensar e que não pode durar.

Para saber se existe o acordo de amizade verdadeira, é preciso discernir se existe entre os companheiros base para uma harmonia duradoura. Isso não significa, naturalmente, que ambos devam ter exatamente os mesmos gostos e desgostos naturais em tudo. Esse tipo de semelhança pode até ser destrutivo para uma amizade verdadeira e duradoura, porque torna as coisas demasiado fáceis, limita o intercâmbio benéfico de pontos de vista e reduz o incentivo ao autosacrifício mútuo. O acordo ideal de amizade implica a capacidade de trabalhar juntos de forma harmoniosa, com um acordo saudável nas coisas grandes e fundamentais e um compromisso agradável nas coisas menores, reproduzindo as palavras de Santo Agostinho: “in necessariis unitas in dubiis libertas in omnibus caritas translation”2. As diferenças de opinião e de gosto devem ser pontos de interlocução, e não ocasiões para o rompimento da amizade.

Normalmente deve haver algum compromisso, alguma submissão mútua em relação aos gostos e desgostos pessoais, na amizade. Poucas pessoas conseguem ser íntimas por um longo período de tempo e sempre ter os mesmos desejos ao mesmo tempo ou sempre agradar naturalmente uma à outra. Deve haver compromisso, cedência mútua em pequenas coisas; deve haver negligência mútua em relação às pequenas falhas e respeito mútuo pelas opiniões divergentes. Mas o compromisso tem de ser limitado aos acidentes. Não pode entrar na esfera da consciência. Não pode incluir coisas fundamentais como Credo, Código Moral, cosmovisão.

Quanto mais amplo for o campo de intimidade e harmonia entre amigos, mais rica e extensa será a sua amizade. Assim, sendo todas as outras coisas iguais, dois santos desfrutam de uma amizade mais rica do que as pessoas comuns, porque a sua capacidade de partilha mútua é mais profunda. Assim também, sendo todas as outras coisas iguais, uma amizade entre dois bons católicos é mais rica do que uma amizade que existe entre um católico e um não-católico, pela simples razão de que os primeiros têm um campo muito maior de interesses comuns e um alcance muito maior. vínculo mais profundo de simpatia comum. Mas, seja qual for o âmbito da sua intimidade mútua, os amigos devem sempre compreender que podem e devem manter a sua amizade vital e torná-la mais rica através de um esforço constante para reproduzir em si mesmos o bem que encontram no outro. E isso realmente nos leva à terceira qualidade da amizade.

 

3. O seu amor mútuo é caracterizado por um espírito de autosacrifício.

Não é mera poesia dizer que a verdadeira amizade envolve uma fusão de almas. Em qualquer processo de mistura, cada elemento dá algo de si, de sua individualidade, e assim contribui para o resultado comum. A amizade é o resultado de uma união análoga de almas – cada um dá o seu melhor ao outro. Na prática, dar o melhor de si significa um autosacrifício sustentado. A amizade não pode durar sem ela.

Santo Inácio, falando da amizade entre Deus e a alma, dá estes dois sinais simples do amor da amizade: Primeiro, ele se manifesta mais por atos do que por palavras. Em segundo lugar, se um amigo tem coisas boas, ele deseja partilhá-las com o outro. Estas também são boas normas para a amizade humana; indicam a qualidade da doação que é o bojo de toda amizade.

A modo prático, existem, por exemplo, os compromissos já mencionados. Cada compromisso exige uma certa “entrega” graciosa, e a disposição para fazer isso é incompatível com o egoísmo inflexível. Quando se conhece uma pessoa há muito tempo, principalmente quando se relaciona intimamente com ela, é fácil a notar pequenos defeitos que talvez não tenha percebido no início; às vezes, devido à mudança de humor, esses defeitos facilmente levam à irritação. Esses momentos podem ser fatais para a amizade, a menos que a pessoa despreze a inclinação de se concentrar neles e de valorizá-los. Ou ainda, suspeitas e ciúmes podem surgir na mente. A lealdade necessária para a amizade exige que tais coisas sejam banidas de todo.

Esta necessidade de sacrifício pode ser resumida em poucas palavras: é preciso haver paciência com os defeitos, rejeição de suspeitas, execração do ciúme, constância no serviço, um desejo real e um esforço genuíno de compreensão mútua – em suma, a prática da regra de ouro por ambas as partes, especialmente nos maus humores, desentendimentos e mal-entendidos: “Tudo o que você quiser que os homens façam com você, faça o mesmo com eles (Mt 7, 12)”. Em si, estas ocasiões de dificuldade são pequenas, decorrentes do fato de nós, seres humanos, termos muitas imperfeições. Mas a constância em enfrentá-los e superá-los com alegria exige uma alta qualidade de amor.

 

***

Após vermos as  três qualidades da amizade, fica evidente que o amor da amizade não é mero emocionalismo, sentimentalismo ou apelo aos sentidos. É um amor racional, um amor humano. Como seres humanos, diferimos dos animais porque nossas mentes podem ver o que é bom e podemos direcionar livremente nossas afeições para esse bem. Pode haver ou não muita emoção externa em nosso amor; nossos corações podem ou não bater violentamente; mas o essencial, o fundamental, o humano é que a razão também deve ser usada. A amizade é basicamente um amor da mente. Vê-se a bondade, o caráter do amigo e, com base nisso, luta-se pela união.

Talvez devêssemos acrescentar aqui que ao falar de amizade estivemos considerando o ideal. É claro que, em qualquer amizade definida, as qualidades que descrevemos admitem progresso, e pode ser que no início elas estejam presentes apenas de forma muito imperfeita. Mas deveriam estar presentes pelo menos até certo ponto; caso contrário, a amizade dificilmente poderá ser chamada de verdadeira.

Baseado no livro “Castidade”, do Pe. Gerald Kelly S.J.
Por um congregado mariano
da Congregação Mariana da Imaculada Conceição e Santo Afonso, Manaus/AM

 

São Domingos e São Francisco, amigos nos princípios e na verdade

  1. Farrell, Walter, OP, A Companion to the Summa, Volume III (Nova York, 1940), p. 61.
  2. No que é necessário, unidade. No que é dúbio, liberdade. Em tudo, caridade

Artigos Relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *